Quinta-feira, 11 de Abril de 2013

Contra nós temos os dias

Contra nós temos os dias, já o sabemos. São turvos, desconfiados, mil variantes de uma base cor de cinza.

Contra nós temos a tristeza, o desalento que nos morde, a indignação que nos tolda e faz errar. A proximidade do drama do quotidiano, que com violência sai dos noticiários e nos bate à porta: é o nosso amigo, é a nossa família, é o outro a quem nunca prestámos antes atenção que agora é a nossa vida e a nossa ajuda, a boa acção que nunca pensámos fazer. Somos nós.

 

Contra nós, a realidade.

Mas: e a nosso favor? Apenas nós mesmos e a criatura mais mítica que produzimos: a palavra, essa impossibilidade linda. Como nunca, ela está à solta e como sempre, não irá salvar ninguém. Mas ajuda, galvaniza, transmite. Faz lutar, acreditar na perseverança (e notai que evito ‘esperança’).

 

Não acredito que haja lugares onde as palavras devam estar, e muito menos que esse lugar seja a rua. Acredito que devam estar libertas para poderem passar por onde quiserem – num olhar, num prelúdio de um beijo, num livro, no feliz próximo verso do poeta, na voz de uma canção – mas por feitio e convicção sei que a rua tende a retirar das palavras a sua inutilidade para depois definharem lentamente. Os lemas revolucionários são sempre melhores do que as próprias revoluções, como nos ensinou a história. Algumas vezes são a única coisa verdadeiramente relevante, como aconteceu com os famosos slogans do « Maio de 68». 

 

É sempre bom passear pela cidade e depararmos com a surpresa de uma boa frase eternizada numa parede por autor anónimo. Mas não chega, não serve. Se as palavras hoje vivem muito na rua é porque a rua precisa delas – o que não quer dizer que se façam ouvir e muitas vezes que façam até sentido. Há excesso de verbos e poucos substantivos nos nossos dias, uma libertação súbita e compreensível mas que apenas ajuda a dividir. A palavra pela palavra e a rua pela rua ainda valem menos do que valem realmente.

 

Temos de tratar com parcimónia estes bichos que criámos, «animais doentes as palavras», como escreveu O’Neill. Temos de as aconchegar na alma e soltá-las da forma mais agarrada possível à verdade daquilo que estamos a sentir.  E isso, hoje, é difícil. Contra nós temos os dias.

Mais do que nunca, «entre nós e as palavras há metal fundente» (Cesariny). Mas o destino e habitat natural das palavras é o silêncio, onde melhor coincidem com o que queremos dizer. Talvez o silêncio das acções seja agora a forma de lutarmos contra a realidade. E porque há sempre quem tenha escrito mais e melhor, socorro-me outra vez e com topete das palavras de O’Neill «Para dizer/ Queria palavras tão reais como chamas/ E tão precárias / Palavras que vivessem só o tempo de dizer a sua parte / No discurso de fogo».

Aqui termino, falho e farto de palavras.

 

 

 

[texto escrito para o jornal que acompanha o evento Lisboa Capital República Popular, a ter lugar este Abril. O tema deste ano é 'A palavra está na rua']

 

publicado por Nuno Miguel Guedes às 08:23
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Quarta-feira, 27 de Março de 2013

Do desprezo pela história do universo

Quem tem de escrever regulramente, por gosto ou profissão, sabe bem que mais vezes do que o desejado a vida entra pelas palavras dentro e fecha-as num redil chamado quotidiano. E quando este bicho é feio, a agrafia é inevitável e até, quem sabe, desejável. É como quando se está muito feliz ou muito triste: temos mais do que fazer do que perder tempo a colocar frases por ordem, pura e simplesmente porque estamos ocupados a viver. Sempre que se escreve, aquilo que verdadeiramente queremos dizer morre um pouco. É por isso que o desafio é tão utópico como necessário.

 

Também eu não sou excepção e os dentes afiados da realidade ameaçam morder todos os dias, parando inevitavelmente qualquer veleidade criativa. Mas a vida é maravilhosa sobretudo nas suas ironias; e foi há dias, que entre duas cartas das Finanças (quem disse que já ninguém escreve a ninguém?) deparei com esta espantosa notícia:um grupo de génios (pagos, espero eu) conseguiram descortinar como era o universo 380.000 anos depois do Big Bang (vejam aqui: http://www.publico.pt/ciencia/noticia/este-e-o-mapa-mais-detalhado-de-como-era-o-universo-com-380-mil-anos-1588599 ). Vemos uma espécie de planisfério (que reduz a cinzas a infinitude do Universo) e uma série de manchas que identificam zonas quentes e frias. Mais ainda, para que todos fiquemos descansados, os cientistas concluiram que este «ovo cósmico» em que vivemos seria mais cem milhões de anos mais velho do que pensávamos. Todos nós os que perdemos noites a pensar na idade do universo ( e somos tantos que eu sei), suspirámos de alívio.

 

Se até aqui chegaram, por favor não me interpretem mal. Acho bem e mandatório que se estudem estas matérias.Mas francamente, e se conseguir evitar a tentação de lançar a piada que isto é uma conspiração para dar bom nome à astrologia (desculpem, não consegui evitar), não consigo vislumbrar como isto afecta as nossas vidas. Se me falassem de hoje; do futuro e de quando a coisa vai acabar para não apanhar ninguém sem uma roupinha lavada - isso eu percebo e interesso-me. Agora quando vejo um planisfério universal em que só me apetece actualizar o Tratado de Tordesilhas (Merkel fica com as zonas frias, todos os outros salvem-se como puderem) não posso deixar de reclamar que saber outras coisas dava mais jeito. Por exemplo: como se explica o hoje? Como nos safamos? Há planisférios cósmicos que eu possa apresentar na Segurança Social? Isso é que era:«está a ver esta zona fria e todo este processo universal que se desenrola apesar de si, simpático funcionário da Autoridade Tributária?», diria eu. «Vê a nossa dimensão, pó entre o pó galactico? Então para que serve pagar essa divida, se a expansão universal vai dar cabo de tudo?». Francamente, um mapa do hoje e do futuro do universo é que daria jeito. Toda a gente reconheceria a sua verdadeira escala (enfim, Relvas é um caso à parte mas não imune) e todos os dias seriam reduzidos ao tempo a que temos de estar gratos.

 

E aí sim, aproveitaríamos cada olhar, cada beijo, cada gesto, cada verso, cada memória, cada beleza,cada tristeza, cada ser humano na sua justa medida. Todos os instantes para serem sorvidos antes que a coisa feche. E não interessa que possa demorar milhões de anos: a nossa vantagem enquanto bichos humanos é que não houve nem nunca haverá mapa nenhum que nos cartografe os afectos.Eles que tentem.

 

publicado por Nuno Miguel Guedes às 05:33
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Terça-feira, 5 de Março de 2013

É urgente grandolar o coração

É bastante provável que neste preciso momento seja o último dos cidadãos a falar, escrever, alvitrar ou comentar a forma de indignação mais utilizada nos últimos tempos em Portugal: o regresso do programa A Tua Cara Não Me É Estranha.

 

Minto, pronto, piadinha fraca para sacudir o desconforto. Trata-se, evidentemente, da utilização do Grândola, Vila Morena como instrumento de combate político, interrompendo discursos ou funções públicas dos nossos bem-amados governantes. 

É uma excelente ideia, devo dizer. Todas as canções têm uma função e as de combate são mesmo para ser usadas. O Grândola.. parece-me uma escolha evidente e eficaz - excepto quando o coro que protesta desafina em demasia ou o ministro Miguel Relvas se junta à cantoria. 

 

A questão de fazer da canção um hino já não me diz tanto. Prefiro a guerrilha, a performance. Mas como bem viu quem esteve na rua no passado dia 2, a coisa arrepia. E foi bem escolhida: podemos não ter concordado com as posições políticas do seu autor (algumas de um radicalismo e intolerãncia delirante) mas não lhe podemos negar o génio. Digamos, apenas por analogia, que o Sonho de Menino dificilmente obteria os mesmos resultados.E o facto de a canção ter sido um dos sinais para a liberdade é transversal e actual.

 

O poder das canções de combate é incomensurável e prático. Desde a literalíssima A Cantiga É Uma Arma até o protesto dançável de Free Nelson Mandela, dos Specials, vai um mundo de intenções e vontades concretas mas que começavam e acabavam onde eram ouvidas. O que mais me maravilha nesta recuperação do tema de José Afonso é a sua utilização no terreno, servindo para interromper com força e elegância uma voz que não faz sentido.

 

Tanto eu gostei da ideia que gostaria de aplicá-la ao meus dias e ao que sinto. Esta é a minha utopia, senhoras e senhores: um tipo está só, lamentando os lados maus da vida  - falta de dinheiro, de emprego, amores que se perderam - e começa a abandonar-se aos pensamentos mais tristes. Nessa altura - zás! - um coro vindo de dentro do coração começa a gritar o Grandola Vila Morena para evitar que um gajo se arme em parvo. Um grupo convicto de micro-seres, teimosos e decididos a calar as inanidades que nos vêm à cabeça para recomeçar com a vidinha, que não há tempo a perder.

 

Dava tanto jeito. Mais do que aqueles bombeiros que se vêem num reclame qualquer e que surgem para apagar as más digestões. A sério: grandolar o coração evitava perdas de tempo e, no limite, textos como este. Quem sabe, pode ser que um dia ainda oiça cá dentro os famosos passos com que a canção começa. Até lá, só o silêncio e o eco estúpido de mim próprio.

publicado por Nuno Miguel Guedes às 02:09
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Segunda-feira, 11 de Fevereiro de 2013

Metafísica do Metro

Quando atravessamos alturas na nossa vida em que o Busque amor novas artes, novo engenho parece abocanhar os nossos dias e alimentar-se deles, tornamo-nos filósofos das pequenas coisas. É inevitável. Pensar – lembrar- torna-nos tristes mas o impensável é que não é alternativa.

 

As pequenas coisas. Uma viagem no metro, por exemplo. Percorrer um caminho mil vezes percorrido, previsível como os carris que o sustentam, sem surpresas até mesmo nos rostos e nos farrapos de conversas que se atravessam à nossa frente. E de súbito, uma voz anónima, vinda não se sabe de que céu da carruagem, a oferecer-nos o pedaço de sabedoria que tudo encaixa e faz redimir, como se alguém soubesse que ali estamos: «Atenção ao intervalo entre o cais e o comboio».

 

E é isso, é exactamente isso. Esse intervalo entre uma partida e um regresso, entre a viagem e o porto. Desejamos entrar no comboio ou sair dele mas nunca nos lembramos que o intervalo existe: o intervalo em que acontecem os erros e as alegrias, em que sinceramente nos iludimos com momentos e pessoas que julgamos terem horizontes mas que afinal medem a vida em colheres de café (deixa-me em paz, Poeta!); o intervalo em que todos os afectos e todas as certezas podem ser abalados mas também ganhos; o intervalo em que o tempo não interessa, apenas a vontade; o intervalo escuro com promessa de luz e tantas vezes ao contrário.

 

Entre uma viagem e outra, muito do que nós somos está nesse intervalo. Muito do que perdemos e muito do que ganhamos também. O que queremos sobrevive a essa pausa vivida.O que nos ama realmente, também. Nem comboio nem cais fariam sentido sem este intervalo. Sábias palavras, ó Deus dos Transportes Subterrâneos. Não dei atenção ao intervalo – ou iludi-me com ele – e ia perdendo a viagem e o cais. Agora não. Não há pressa. Sento-me tranquilamente no banco do Acaso, à espera que chegue a nova carruagem, o novo cais.

publicado por Nuno Miguel Guedes às 17:28
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A Revolução da Esperança

 

Há esta certeza que faz falta proclamar: Manuel Fúria é um subversivo. Melhor ainda: um subversivo com uma missão. Acredita e pratica o que louva - valores e actos que, mais do que anacrónicos, são mal vistos pelo espírito deste tempo. Utiliza sem medo palavras como «pátria», «amor», caridade», «coração», «bondade», «rei», «fé», «rapariga», «noiva», «Cristo», «contemplação», «mistério», «alma». Para ele, tudo se poderia resumir num único vocábulo indizível que tem urgência de partilhar. E essa urgência é a razão de ser da sua arte e da extrema necessidade de fazer.

 

«Quero ver Lisboa a arder», anuncia ele no início da nova aventura-manifesto que é este disco, Manuel Fúria contempla os lírios do campo. A referência bíblica, para além de assumida, assalta-nos por uma estranha beleza proselitista, apenas porque pressentimos que ele crê sinceramente e isso é tão raro. O que seduz de imediato na arte e na personalidade do Manuel Fúria (e aqui chegados, permiti que o que assina estas linhas se intrometa ainda mais pessoalmente nesta conversa e confesse a sua amizade) é que tanto numa como noutra a verdade não se sobrepõe à sinceridade: valem o mesmo, e são indissociáveis. Outros criadores ou interpretes são genuinamente sinceros no momento em que transmitem sentimentos  ou intenções, para depois os abandonarem; Fúria é verdadeiro, de uma forma absolutamente sincera.

 

Assim, rodeado de cúmplices de excelência que não por acaso se intitulam de Náufragos (na eterna espera, numa eterna deriva, numa angustiante liberdade), Manuel Fúria canta aquilo em que acredita,  lamenta o que se perdeu mas reclama a possibilidade da esperança. O que esta colecção de cantigas sugere é uma visão de um mundo límpido e espiritual, onde o essencial é possível, e que esse mundo poderia começar em Portugal. Infelizmente, e como chegou a dizer numa entrevista, « Portugal ainda não é».Esta ontologia de Portugal teria assim de partir de um reino de amor e de festa. Se existem tentações - a cidade como Babilónia é assumida logo em Estandarte e lembrou-me uma das minhas passagens bíblicas preferidas:"Não deixes errar os olhos pelas ruas da cidade nem vagueies por seus lugares solitários" (Sir, 9, 7)  - todas serão vencidas pelo Amor e pela Festa (Que Haja Festa Não Sei Onde). Desenganem-se no entanto aqueles que esperam um conjunto de homilias musicadas: este disco está infectado de pop por todos os tempos e todos os temas, que se ouvem, com sinais ostensivos de quem sabe como se faz uma canção e como usá-la.

 

Quem, como eu, assistiu aos rótulos fáceis e injuriosos colocados a um grupo de música moderna no principio dos anos 80  - sim, os Heróis do Mar e sim, uma das inspirações confessas de Fúria - sabe como poderia ser tentador arrumar esta arte numa gavetinha ideológica. Mas felizmente os tempos mudaram e maravilhosamente permitem que a obra de Fúria se revista de uma contemporaneidade (e a perenidade possível na pop) que não oferece dúvidas. Manuel Fúria é um incansável fazedor que embora descontente com o tempo a que pertence exige mostrá-lo com as armas que estes dias lhe dão. A prova - para além da sua música - está na editora Amor Fúria, que tal como a sua quase irmã Flor Caveira, sabem como dizer o que querem dizer. E que é muito e é preciso.

 

Antes de terminar, uma palavra para os músicos que participam no disco, quase todos eles ligados a outras bandas ou iniciativas em nome próprio. Este é um espírito de partilha recente na música moderna portuguesa, impensável no dealbar da década de 80, e que agora surge naturalmente graças a uma nova mentalidade. A saudável promiscuidade artística que pequenas editoras como a Amor Fúria ou a Flor Caveira apresentam são indícios de tempos novos, longe da ideia paroquial de «o meu talento é único e não o divido com ninguém».

Depois da caminhada que fez com Os Golpes, em que tantas vezes foi reduzido a um reflexo voluntário de algo que já foi feito, Manuel Fúria precisava de um disco assim. Onde a sua voz e a sua alma esteja solta como ele gosta: em partilha. Amanhã? Não sei. Como ele, contento-me com hoje e remeto-me à mesma fonte e origem de todos os desafios: «Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã já terá as suas preocupações»(Mt, 6, 34).

 

É urgente alistarmo-nos nesta Revolução da Esperança.

 

*texto escrito para acompanhar o lançamento do disco Manuel Fúria contempla os lírios do campo

publicado por Nuno Miguel Guedes às 10:02
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Sexta-feira, 25 de Janeiro de 2013

Hipocondria dos afectos

Entre as brumas do presente, fico sempre satisfeito quando encontro leves vestígios do pouco  de bom que tem a raça humana. Não, não falo da solidariedade sazonal colada às circunstâncias, que apesar de saber que existe e deverá sempre existir, não me chega para acreditar em Rousseau. Nem sequer alinho  com as oposições fáceis homem vs.animal, em que a cadela Lilica se torna um modelo de comportamento. Não acho que a natureza humana seja flor que se cheire; mas pelo amor de Deus, não humanizem a bicharada. E parem de dizer que eles têm direitos. O que nos faz humanos é saber que nós é que temos deveres para com eles. Evidentemente, se alguém possuir um cágado que esteja indignado pela forma como os seus direitos são violados, que mo diga, que o meu argumento cai por terra e prometo penitência contínua. E quem diz um cágado, diz, pronto, qualquer ser vivo que mesmo sendo bípede (ou até um golfinho, esses Einsteins do reino animal) não consiga resolver a sua falta de aptidão social ou junte grupos para eliminar parasitas. (quem aí atrás acha que estou a falar do governo pode sair da sala. Obrigado).

 

Voltando a custo ao que aqui me trouxe: há esperança para nós. Vejo-o quando registo provas inegáveis de que, mais coisa menos coisa, o nosso sentir é igual. Reconhecemos sinais, memórias, gestos e jeitos que numa primeira fase julgamos só nosso privilégio e numa segunda - geralmente aquela em que estamos sóbrios ou tristes, que no es lo mismo pero es igual  - damo-nos ao trabalho de generalizar. Há quem tenha dado por isso e transformado a coisa em negócio: por exemplo, desde o inicio deste ano que tenho recebido num mail semi-desactivado missivas urgentes de médiuns do outro lado do Atlântico que me garantem - em separado - ser 2013 o tempo que guarda tudo aquilo que mereço. A única questão seria eu estar atento aos sinais, que são imperceptíveis e fáceis de ignorar. Mas felizmente Sara Freder e outra senhora cujo o nome me escapa perceberam nos astros a minha SCUT para a felicidade. A única coisa que tenho de fazer é pagar a portagem e decorar os números da sorte. Os mails são tão pungentes que apetece dizer «obrigado», mesmo admitindo a possibilidade de haver um desgraçado no Haiti que nasceu com o mesmo signo e ascendente mas que se preocupa mais neste preciso momento em arranjar um tecto para a familia. (Senta, Lilica. Não vale a pena)

 

Se trago a astrologia para a conversa, não é por acaso. No que respeita à ideia de ter planetas a regerem a minha vida, não contem comigo. É pouco. É fraquinho. Eu vi como Plutão acabou, sem estatuto nem poder, desacreditado por um concilio de cépticos que olimpicamente ignoraram a certeza milenar de que Plutão « representa o invisivel, o misterioso».Por mim, jJá tenho suficientes mistérios em que acredito e nenhum ligado a determinismos práticos ou passíveis de serem observados por sondas espaciais. Mas percebo como o conceito funciona: se juntarmos doze arquétipos (os signos) e a sua descrição de personalidade, o resultado é tão vago que é fácil acreditarmos que o sacana do Mercúrio nos lixou a vida e Vénus nos criou tão estetas e diplomatas. Reconhecemo-nos nas generalidades e esquecemo-nos facilmente que conhecemos um tipo porreiro, afável e criativo como os nativos de Gémeos de que o velho Hitler fazia parte.

 

Mas a verdade é que o esquema funciona. Eu não sei como será convosco, leitores (e agora é o momento em que finjo que me importo com isso) mas eu sou um hipocondríaco afectivo. Se falam de emoções, identifico-me logo como paciente. Reconheço sintomas por todo o lado, como aqueles desgraçados que percorrem a internet e deparam com doenças que estão convencidos de ter. Não dá para evitar. Um verso de Camões,«Busque amor novas artes, novo engenho» e zás!, sou eu. O Morrissey a cantar «And if you're so clever/ Then why you are you're own tonight» e pergunto de onde é que este gajo me conhece. Sinatra a oferecer-me o Glad To Be Unhappy e parem de falar de mim. Leio um texto, uma crónica, um ensaio e está lá tudo. E a lista continua, sem fim para quem vive de a saber. Cada um terá a sua.

De modo que aqui sim, estaciono a humanidade. A minha doença (e suspeito que a nossa) já foi identificada e transformada em algo que sentimos mas não conseguimos dizer. A arte não passa de um diagnóstico milenar das nossas maleitas.

E a minha tragédia pessoal é não conseguir ser médico de mim mesmo, de modo a transmitir em palavras aquilo que toda a gente já sabe: quem sente não tem cura.

publicado por Nuno Miguel Guedes às 04:31
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Sexta-feira, 21 de Dezembro de 2012

Notícias do apocalipse

Escrevo-vos depois do mundo ter acabado. Ou este blogue, ou ambos, não tenho a certeza.

O cenário é terrífico: há trocadilhos com Maias, Eça de Queiroz e a falibilidade da Maya. Há palavras que me ainda ressoam vindas de uma noite de poesia. Há a gratificação de ver actuar amigos com talento. Há a Babilónia do costume, com insultos desmedidos,provocações estúpidas, insinuações com preço, amizade à bruta e gratuita.

 

Há as confidências que nos entregam sem as pedirmos, há o deslumbre pelas pequenas coisas.

Há a saudade inexpugnável que dói de bom que é descobrir. Há o consolo do regresso que se confunde com todos os dias que queremos que venham. Há esta urgência absurda das palavras, que um tipo julgava perdida ou só movida a combustíveis tardios e nocturnos.

Há o que permanece, o que se lê nos livros. Há  a estupidez, a ganância, a fraqueza, a inclinação para o mal. Há o trabalho e a recompensa adiada e sem preço.

 

Há um amigo ébrio que me beija na face e me diz «és de direita mas eu adoro-te, e sempre seremos amigos», a despropósito mas com razão.Há uma rapariga que não conheço que desafia um amigo para quadras improvisadas. Há esse amigo que o faz.

Há o taxista que sabe perfeitamente como governar o país e o Universo em geral e faz questão de o proclamar. Há a saudade, já falei da saudade ?

 

Há listas mentais de prendas que se quer dar ao nosso amor se ao menos ele aqui estivesse. Há a pureza irredutível dos filhos, que usam o perdão como se fosse uma flor comum. Há o orgulho.

Depois do mundo ter acabado, há tudo: as dúvidas, as dívidas, as dores, os amores, os rancores. Há pobres e ricos, espertos e néscios. Há Beckett que parece ter sido escrito depois  do apocalipse, como um sumário. Há tipos pretensiosos que conseguem escrever frases como a anterior.

 

Há um branco desavergonhado que desfia o negro. Há os que dizem «esperança» sem vergonha. Há os que choram enquanto outros vendem lenços.

 

Há ser humano.Há o que apenas há. E goste-se ou não, não há mais nada nem há desculpas para não fazer melhor.Aqui, deste meu lado do fim

do mundo, há Deus.

 

E de repente talvez os Maias tivessem razão: o que somos não vem embrulhado em papeis vistosos. Sem o saberem, e pouco antes de serem massacrados, os sacanas dos índios tinham razão: o fim do mundo acontece sempre que nos esquecemos de quem somos e do que nos podemos fazer. Assim de repente, uma bela definição do Natal tal como o entendemos em que os presentes diluem os dias.

Há o fim do mundo e mesmo assim continuamos humanos. Espero o dia em que mereçamos o Natal.

publicado por Nuno Miguel Guedes às 05:13
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Sábado, 10 de Novembro de 2012

Meia idade comparado com quê?

Eis o aviso, ó posteridade: de repente, a certa altura na vida de um ser humano do sexo masculino criado sob a matriz judaico-cristã, alguém vai prever, constatar, confirmar: «Isso é da crise da meia-idade».

 

Coisa maçadora, esta. Pressupõe um igualitarismo de comportamento que, como todos os igualitarismos, é abusivo; deixa em aberto o que se fala quando se fala de meia-idade; e sobretudo, irrita a presunção de que, sendo tudo isso hipoteticamente verdadeiro, a fase que se critica tenha de ser uma crise. Daquilo que eu deduzo dos estereótipos, não vejo crise, só opulência: fulano separou-se e namora uma rapariga linda com menos 20 anos do que ele: qual é a crise? A menos que haja infracções legais, só vejo alegria. Fulano quer ser jovem e comprou um magnífico descapotável  de uma marca topo de gama. E? Tentei até este dia evitar citar Supertramp, mas não há remédio: crise? qual crise?

 

O que a meia-idade dá, na melhor das ambições, é sabedoria. Infelizmente, a maior parte de nós - em que me incluo - apenas pode aspirar a reconhecimento e gratidão. E já é tanto. Escrevo-vos depois de ter passado por isso, sem descapotáveis ou ninfetas envolvidas. Perceber que existe  em cada minuto tanto  para estar grato só vem com a vida agarrada. Numa só noite tive a dádiva da amizade reencontrada, da conversa evanescente que aquece o coração ao ponto da lágrima, do pormenor que só quem vive o suficiente pode agradecer. Olhares, silêncios, serenidade que apazigua sem receita nem remédio. Um fim de noite em que se é convidado a sair de um casino no meio de uma discussão sobre McLuhan; um amigo ausente que é intimado, à força de afectos,  a estar presente. Um agente da polícia que sai do seu posto de trabalho e oferece o seu carro pessoal («cuidado com a cadeirinha da minha filha, peço desculpa») para ajudar um casal perdido a horas impróprias.   

 

Eu sei o que vivemos, o que estamos todos a viver. Mas se a crise de meia-idade significar o reencontro com o que estava esquecido no melhor de nós, venha ela. Quem sabe ,qualquer dia até me converto em optimista. Até lá, continuarei a combater a realidade com a realidade.O desfecho desta luta só pode terminar bem.

 

publicado por Nuno Miguel Guedes às 06:15
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Sexta-feira, 2 de Novembro de 2012

O dom das lágrimas

Há alguns dias vi um homem chorar.

Podia ter sido numa manifestação, ou numa destas recentes catarses colectivas organizadas onde se lamenta e se protesta os dias que correm. Podia ter sido num funeral. Podia ter sido um indigente, à mercê do amor de ocasião.

Nada disso. O que rodeava este homem, de cabelos grisalhos e olhos cinzento-avermelhado era uma atmosfera de festa. Uma conjuntura improvável para algo raríssimo nestes dias: apresentar as lágrimas em público, perante estranhos e sem medo nem vergonha. De facto, com gratidão.

 

O cristianismo primitivo está cheio de apelos a essa água salgada que nos escorre dos olhos. As lágrimas, para os primeiros cristãos, sempre foram uma bênção que era necessário pedir. Algumas das mais belas e poéticas orações suplicam justamente pelo dom da lágrima. A natureza humana, na sua patética soberba, sempre se recusou a si própria: daí o recurso à intervenção divina.

 

O tempo, esse monstro por nós criado, tratou de anular o poder da lágrima. Sinal de fraqueza, de cobardia. Excesso de romantismo reservado a literatura histérica ou, mais recentemente, adaptado e difundido apenas como consequência de situações catastróficas ou dramáticas, de preferência com um directo televisivo às oito da noite.

 

O valor da lágrima – o dom de chorar – parece ter-se perdido para uma qualquer obrigação de sofrer ou rejubilar para dentro e em privado. Não choramos as nossas perdas – amores, mortes – quando elas acontecem e como deveríamos fazê-lo. Preferimos o luto civilizado na ilusão de que tudo dói menos. Mas dói e não passa. Desconfiamos dos adultos que choram ao ver um filme ou se sentem atingidos por uma canção. Toleramos o choro dos outros, com o insuportável paternalismo e relação de poder que este verbo traz.. Mas tolerar é suportar.E suportar não é respeitar, que é algo que obriga a uma atitude de olhos nos olhos, de igual para igual.

 

As lágrimas, sobretudo se vertidas em público, incomodam. Subvertem, fazem-nos passar ao lado, interpelam-nos ao ponto de mudarmos de passeio como evitamos o bêbedo que sabemos que nos vai incomodar. As lágrimas despem-nos.

 

E sabendo isto, ver um homem, com cerca de sessenta anos, chorar no meio de um bar, no meio de um ambiente de festa desbragada. Não se está preparado para isso. Eu não estava, pelo menos. Consegui perguntar porquê, oferecer o consolo estúpido de quem não entende. O homem – um irlandês de meia idade, de férias em Portugal – respondeu naturalmente, com um sorriso já húmido:«Porque esta música [uma balada tradicional irlandesa] e vocês [portugueses] me fazem sentir em casa e com saudades de casa. Nunca senti nada assim. E ainda não bebi nada!» .As lágrimas corriam, já misturadas com o riso.

 

Acredito que as lágrimas são as jóias visíveis da alma. Acredito, mas não o pratico à vista de todos. Chorar é reduzirmo-nos ao pouco que somos no maior que poderemos ser, e é por isso que é tão difícil como necessário. Daí esta crónica surgir como pobre redenção, ao mesmo tempo que lembro a inveja e a lição que este homem me deu, e que me fez chorar com ele cantando o Wild Rover

Parafraseando uma velha canção, a vida é a nossa festa e podemos chorar se quisermos. É tempo de querer, fazer e agradecer, sob pena de algo humano desaparecer de nós.

 

 

 

publicado por Nuno Miguel Guedes às 19:01
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Domingo, 21 de Outubro de 2012

Famosas últimas palavras

 

                                                                                                                                                        Ao Filipe Homem Fonseca

 

 

 

Estes são os dias de Gaspar: por todo o lado, tudo o que se escreve é profundo, sério, sentido, indignado. A realidade cresceu sem darmos por isso e não há nada mais feio do que uma realidade adulta, que assina papéis  e nos empurra para a «unmagnificent lives of adults» (para citar os The National).

 

Esta crónica não escapa a este zeitgeist cinzento (ou se calhar escapa, mas  para isso terão de lê-la até ao fim). Para já, proclamo esta coisa leviana: deveríamos preocupar-nos mais com a nossa fugaz mortalidade. Palavra de honra. Não é que não tenhamos sido avisados: na Bíblia, o imperativo "Vigiai!" exorta-nos a viver cada dia como se fosse o último, frase aliás cunhada pelo  filosófico imperador Marco Aurélio nas suas Meditações. O livro do Eclesiastes insiste que a vida não passa de «vento e ilusão». Zenão, Epicteto, Séneca: os Estóicos passaram a sua vida a preparar-nos para a morte. Não há desculpas, enfim.

 

Mas, mesmo assim, não chega. Descobri há pouco que é preciso ter cuidado com o modo como somos lembrados. São muitos os exemplos de gente que pensou nisso antes e mandou gravar nas suas lápides epitáfios notáveis: Mel Blanc, o homem das mil vozes, de Bugs Bunny a Daffy Duck, tem no seu túmulo "That's all, folks!". Sinatra, o optimista "The Best is Yet To Come"; um anónimo o brilhante "I told you I was sick"; um pistoleiro do Velho Oeste teve direito ao genial "Here lies a man named Zeke, the second fastest gun in Silver Creek"; ou o meu preferido, do grande W.C.Fields: «All things considered, I'd rather be in Philadelphia".

Só que isto não nos prepara para os dias. Se é verdade que podemos ir desta para qualquer outro lado a qualquer momento, devemos ter cuidado com o que poderão ser as nossas últimas palavras. Esta extraordinária constatação - que apresento aqui em rigoroso exclusivo mundial - surgiu em animada conversa de amigos, em que a dada altura um de nós, que confessara a sua admiração por uma bonita mulata que estava nas redondezas, disparou: «A mulata bazou?»

 

Ora bem. Acompanhem-me aqui, por favor. Imaginemos que este querido amigo, pouco depois de proferir esta espantosa frase, era vítima de um AVC fulminante (longe vá o agoiro). Qual o seu legado, o que iria ficar? «A mulata bazou?». Não pode ser. E logo a seguir, mesmo depois de termos concordado com o cuidado que devemos ter, alguém deixou escapar um «Da última vez que me entusiasmei acordei em Santo António dos Cavaleiros». Inadmissível. Imagine-se o velório: «Estávamos a beber um copo e ele disse Da última vez que me entusiasmei ,etc...». É feio, é feio.

Cuidado com as últimas palavras, meus queridos amigos. São últimas por alguma razão. Tentem florear, dar um ar barroco e memorável a cada fraseado. Ou então, que o façam com força e raiva, para compensar a injustiça desta nossa breve passagem. Eu estou a pensar seguir esse modelo no próximo ano, quando me for pedido o pagamento do IRS e eu disser, para a História, «pago mas é o caralho!".

publicado por Nuno Miguel Guedes às 20:29
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