É muito curioso quando alguém que conhecemos se vê envolvido em querelas públicas. Assistimos a um desfilar de acusações e defesas que vão da psicologia à Dr Phil ao simples insulto. E concluímos que a maior parte das vezes a opinião das gentes não diz respeito ao problema ou à pessoa em questão - é antes uma forma de destilar a própria amargura.
Pensei nisso quando li, por toda a blogosfera, que o Rui Tavares se mantém no Parlamento Europeu pelo tacho. O Rui, diga-se, não é o melhor dos meus amigos. Por muitas razões, duas das quais se podem enunciar assim: primeiro porque ele tem melhor gente com quem perder o seu tempo; depois porque eu não tenho tempo ou paciência para ser o melhor amigo de ninguém.
Presumo que a história seja conhecida: num belo dia Francisco Louçã, que eu não conhecia mas passei a conhecer graças a este caso, resolveu corrigir no Facebook o erro de um jornalista. O dito, num texto, tinha-se enganado acerca dos fundadores do Bloco de Esquerda. Segundo Louçã o jornalista tinha sido induzido em erro por Rui Tavares. Louçã conclui que "é simplesmente uma falsificação a tentativa de retirar o Fernando [Rosas] desta história e de a refazer com novos protagonistas". Tavares reagiu dizendo que enquanto historiador nunca faltaria à verdade e que não conversou com jornalista algum. E exigiu que Louçã se retractasse, o que este não fez.
(O jornalista cometeu suicídio na madrugada seguinte, deixando namorada, namorado, dois gatinhos siameses que sabem recitar a Bíblia em Aramaico e um relógio do Ben 10.)
O argumento do Rui não lhe serve de muito: haverá certamente historiadores capazes de deturpar a história, bem como economistas capazes de interpretar mal números, notícias, ou mesmo a fé dos humanos em demagogos sem escrúpulos. Contudo, para quem conhece o Rui, a história de Louçã não faz muito sentido.
Tentando não me parecer demasiado com o Dr Phill, arriscaria dizer que não está nas moléculas constitutivas do Rui perder tempo a tentar enganar jornalistas acerca da história do Bloco; também desconfio que nunca lhe ocorreria que um jornalista de política não soubesse a história da fundação do Bloco; e menos lhe ocorreria, habituado que está a fazer os trabalhos de casa, que um jornalista não verificasse uma informação; e desconfio que se se desse ao trabalho de tentar manipular quem quer que fosse para atingir a direcção do Bloco não seria estúpido ao ponto de ser tão pouco subtil e tão facilmente apanhado.
Porque - e este argumento, para qualquer tipo que conheça minimamente o Rui, parece óbvio - o Rui não é estúpido nem politiqueiro, em parte porque ser politiqueiro implica ser-se estúpido. Implica acreditar que se é capaz de enganar o povo como quem engana um cãozinho esfomeado. E fazê-lo de forma esteticamente repugnante, como os realizadores que fazem slow motion no momento em que uma bala entra num corpo. Não sendo estúpido, o Rui perceberia de imediato que dar uma informação pornograficamente errada e que facilmente se perceberia só poder partir da sua própria mente tirânica e doentia seria meio caminho andado para destruir toda a sua reputação.
Mas o Rui não é estúpido. É até um tipo bastante inteligente, que tanto quanto me foi dado ver não tem paciência para perder tempo com idiotices - embora, imagino, por vezes tenha de perder tempo com idiotas. Sei isto porque ele já perdeu tempo comigo.
O final da história é caricato: metade dos opinadores acreditam que o Rui se mantém no Parlamento Europeu pelo "tacho". Talvez. Mas nesse caso teremos de corrigir: por dois terços do techo. É que o outro terço o Rui usa-o para criar bolsas de estudo a quem delas precisa. No que é caso único tipo em Portugal.
É curioso também ver historiadores como o José Neves, que é certamente muito mais amigo do Rui, das massas trabalhadoras oprimidas e do Bem que eu - e cuja inteligência não pode ser posta em causa porque recebeu um prémio - afirmar que Tavares não tem legitimidade para abandonar a bancada do Bloco e juntar-se à dos Verdes.
Este género de argumentos é resumível, num mundo de lunáticos, assim: um independente é convidado para integrar as listas de um partido; o líder do partido faz afirmações que, a serem levadas a sério, dariam cabo da reputação do independente; pelo que o independente tem de vir embora, visto que foi eleito para representar aquele partido, aquela ideologia.
Assim dá-se cabo de dois ou três pormenores curiosos: antes de mais, qualquer indivíduo que vá para qualquer Parlamento serve uma nação; depois dá-se o caso de a um líder que não se faz respeitar não se dever respeito.
Vejamos as consequências do pensamento de José Sedas Neves: a partir de agora todo o independente teria de obedecer às regras do partido que o convidou. Note-se que não foi o independente (palavra curiosa) que foi pedir emprego à porta do tacheiro; foi o partido que - porque aquela pessoa rende votos - o chamou. Chamou aquele (como diria José Neves) homem concreto, que pensa de certa maneira, a candidatar-se ao Parlamento Europeu e aí desempenhar determinadas tarefas que - supostamente - servem os europeus e não apenas os achaques de humor do líder do partido. Se assim fosse, não valia a pena haver qualquer tipo de parlamento. Punham-se uns robôzinhos, ou legislava-se de acordo com as percentagens que cada partido teve na última eleição. Os partidos mandavam um fax com ideias e já estava.
Mas isto de - como diria o José Neves, pessoa premiada - haver homens concretos, que querem fazer coisas em vez de brincar ao Watergate no Facebook, é complicado. Deixa as melhores cabeças da nação a pensar na honra, ai a honra, nessa coisa complexa que são os deveres de um deputado (que se resume a fazer o bem, algo que qualquer criança de cinco anos de idade é capaz de entrever, mas enfim), etc.
No fundo a coisa pode ser posta assim: eis um tipo que não se deixa intimidar e que fez um voto de lá nas coisas que lhe interessam (refugiados e o catano) fazer a diferença; sentados nas suas secretárias a mirar os seus prémios, os pequenos génios da nação inventam tretas para desculpar o Chiquinho; e o povo reclama do tacho em relação a um tipo que abdica de parte desse tacho.
Depois admirem-se do país ser medíocre.
da ponta das unhas dos dedos do pé até à raiz dos mais longos cabelos, farto da retórica à volta do Barça, farto da suposta superioridade romântica, estética e moral do Barça e farto da cegueira à volta do Barça.
Que são a única equipa que quer ganhar; que eles sim, sabem jogar e os outros são uns cepos que têm ideias estranhas como, sei lá, de vez em quando experimentar um contra-ataque ou um passe mais longo; que nunca fazem faltas, aliás jogadores como o Mascherano nem vieram de clubes faltosos e duros como o Liverpool; que tratam bem a redondinha; que têm uma filosofia de jogo. Essa é a que eu mais gosto: uma data de energúmenos que se tivessem que ler um texto filosófico eram bem capaz de sofrer uma apoplexia nervosa defendem uma "filosofia".
Porque o Barça, dizem, é diferente. Faz um futebol excitante. Nunca se sabe o que esperar. Por acaso eu sei sempre o que esperar: o primeiro passe sai para o Piqué, que ou faz um passe longo para a direita ou coloca no Busquets ou no Xavi. Se for no Busquets o Xavi abre a seu lado e ou o Messi ou o Iniesta vêm buscar enquanto os outros dois avançados rodam as posições. Depois é fazer circular até ao adversário a) aborrecer-se de morte (tal como eu) e adormecer (tal como eu) ou b) irritar-se (tal com eu ao vê-los) e ir à queima (eu preferia ir-lhes às pernas, ser irradiado e recebido em glória no meu bairro natal).
O Barça, boa gente que não percebe nada disto, é tão excitante quanto um guião de filme pornográfico, tão entusiasmante quanto o relógio interno do cofre de um banco suíço. O que o Barça - o romântico, estético, moralmente superior Barça - faz é, curiosamente, levar ao extremo o que tanto critica aos outros: defender. O Barça defende-se guardando o mais que pode a bola, nunca arriscando um passe a mais de dois metros (excepto o Piqué, mas esse como não é anão consegue ver longe). Na realidade o romantismo do Barça é um pragmatismo feroz: trata-se de evitar o mais possível que o adversário tenha a bola e evitar o mais possível que o adversário esteja acordado.
Mas o Barça tem a vantagem de querer atacar e nunca fazer faltas. O que por acaso é mentira. Se o Barça perde a bola há logo três dos seus anões a chutar as canelas do adversário. Mas como são anões nunca ninguém se lembra de lhes marcar falta. Por contágio, assassinos como Busquets e o Mascherano, imbecis como o Piqué e trogloditas como o Puyol escapam a qualquer punição.
E se um jogador do Barça cai, o que é que acontece? Há onze anões a rodear o árbitro, a empurrá-lo, como se cada homem do apito fosse um Zé Pratas e cada um daqueles anões tivesse em si um Paulinho Santos. E isto sem que nunca nenhum deles veja um amarelo. Aliás, só há uma forma de um jogador do Barça ver um amarelo: declarar em notário que não se sente espanhol e que por si la roja ia para la madre que os los pario. De resto o Messi pode continuar a dar cotoveladas que nucna verá um amarelo.
Só que o Barça é diferente. Não tem patrocínio nas camisolas, por exemplo. O que por acaso acaba para o ano e logo com um patrocínio muito bonito, muito moral.
O Barça é diferente porque nunca largaria 100 milhões de euros pelo Ronaldo. Aliás, dizia o Xavi que o Ron não tinha lugar no Barça. O que é bonito. Excepto se nos lembrarmos que o Barça ofereceu 60 milhões pelo Ron, isto antes do Xavi fazer aquela declaração bonita, romântica e moral. Depois disso o Barça largou 50 milhões de euros mais o Eto'o num total de 70 pelo Ibrahimovic, após o que mandou este passear e largou 40 pelo Villa. O Barça da cantera não larga 100 milhões. Larga 110.
A verdade é que o Barça é diferente. É um clube de desportistas. Que por acaso agridem adversários no túnel. E é liderado por um cavalheiro. Que sempre o foi, mesmo quando sob o efeito de nandrolona. Que é a substância que os cavalheiros - como ele - tomam - como ele tomava.
Viva o romanismo estético dos exemplos da honestidade.
Dizem que a brasileira é que é boa, a espanhola idem, melhor só a americana que está em todo o lado. Que a nossa é perra e parca em prazeres, que não se arredonda nem dança com a mesma gula. Não creio. Temos com a nossa língua a mesma relação que com o nosso bairro: de tanto o percorrermos parece-nos banal. Anda a faltar-nos um pouco de turismo da língua: olharmos de novo os azulejos de um vocábulo, o reboco de um adjectivo, as longas avenidas dos advérbios de modo.
Houvesse clube dos turistas da língua, com quotas e bandeirinhas e eu estava lá. Não sou um turista sério, não uso guias, não sei nada da cultura local – apenas se me acontece dar de caras com uma expressão e ficar estacado a pensar “Como raio nunca reparei no profundo génio que emana desta expressão?”.
Por exemplo, a expressão “Dar nas vistas”. Parece a frase mais simples do mundo, gasta, velha, prostituída nas bocas de toda a gente. Mas é mirá-la de perto e acabamos a admirá-la. Deixem-me explicar.
O génio começa no uso de “vistas”. Imaginem que o autor da expressão tinha, no momento da criação, optado por dizer “Dar no olho”. Por exemplo: “Este tipo dá muito no olho”. Não era a mesma coisa, certo? “Vistas” tem a exacta dimensão popular que a expressão precisa: atribui-lhe uma certa rudeza, mas ao mesmo tempo uma certa bonomia rústica.
O talento do criador adensa-se no uso do verbo “Dar”. O criador podia ter escolhido “Atirar-se às vistas”: “Este moço atira-se às vistas”. Ou, num momento de confusão, “Este moço atira-se ao olho”. Ou ainda, no momento em que os cogumelos começassem a fazer cócegas nas traseiras do cérebro, “Este moço dá-se ao olho”.
Subtil, o criador recusa verbos como “bater” (“Este moço bate nas vistas”). Opta por um verbo despojado, o verbo “dar”. E depois inverte-lhe a polaridade, tornando a doação um acto não de generosidade mas de uma indesejada generosidade, esmola de que se desconfia num país pobre. O moço “dá nas vistas”, acerta-lhes, mas sem sem atirar contra elas: é como se o desastre entre o moço – que o criador da expressão se abstém de qualificar – e as vistas – puras, puras, puras – fosse inevitável, uma tragédia que o país esperava há muito.
Por vezes passo, digamos, minutos inteiros a tentar imaginar como é que estas expressões surgiram, no apuro do seu tempero.
Terá o criador tentado a expressão com diferentes amigos, como um comediante a experimentar uma piada? Terá a expressão sido recebida vezes sem conta com um silêncio incómodo até que um dia, sem que se notasse, reinava sem par no império infeccioso da língua, enquanto o seu autor se recolhia para sempre na sua cave, humilhado pelos silêncios com que as suas expressões eram recebidas? Ou será que algum esperto ouviu uma forma inicial da expressão e depois a aprimorou?
Nunca vamos saber. Nem com certeza nem sem ela. Porque ao contrário das outras a nossa língua não dá - errr - nas vistas.
À conta de circunstâncias extremas que o pudor me impede de revelar (a modos que mudei de casa), estive três semanas sem net nem têvê. Eu sei, eu sei, é muito bonito estar sem net e sem têvê, pensem só no tempo que sobra para os livros, os amigos, os filhos, a luta pelo ambiente, a c*na da tia.
Mas para ser sincero só leio merdas com figurinhas, não tenho tempo para mais que os meus três amigos, o meu filho é uma peste, o ambiente anda um coche fodido desde há uns milhares de anos e a c*na da tia não me apetece. Manias.
De modos que o que me aconteceu nas últimas três semanas tornou-se uma espécie de estudo de caso. Toda a ilusão que poderia ter acerca dos benefícios de viver sem tv esvaíram-se como o apoio dos reaccionários de direita à administração Bush depois de se descobrir que afinal não havia armas químicas no Iraque. (Espera, há qualquer coisa de errado neste exemplo. Não podem ser os reaccionários de direita, que são gente intelectualmente honesta. Sei disso porque o Pacheco Pereira disse bem de mim na tv, antes de eu ficar sem tv. E eu nunca gozaria com um badocha que disse bem de mim.)
Quando este massacre acabou eu tinha perdido toda a capacidade de comunicar com os restantes seres humanos, isto é: aquela parte ínfima, nanoinfinitesimal de sociabilidade que me restava foi-se à vida e bordejei a insânia.
Os meus amigos têm de si a imagem de intelectuais que vêm filmes inacessíveis, têm dados do INE na ponta da mesma língua que recita poesia e sabem onde se come as melhores patas de formiga de todo o Oriente. Eu não me afasto muito deste universo, ou seja, não sou ninguém sem poder ver o House e não consigo passar sem a minha dose de Gossip Girl, uma série que leva ao absurdo a ideia de vazio.
(Tenho cerca de 50 mil palavras preparadas em que defendo metafisicamente o Gossip Girl, mas resumamos a coisa assim: já toparam bem aquela loira?)
Adormecer no sofá com baba a correr no queixo depois de um episódio do Lie to Me seguido de um festival de três horas de NBA e acordar duas horas depois para atender os pedidos de um garoto mimado que com um ano e meio ainda não se levanta e prepara o seu próprio biberôn, isto é – na minha humildíssima opinião – o mais próximo que um homem pode estar do civismo.
E o que me aconteceu nestas três semanas? Praticamente desci ao nível de vagabundo (sem-abrigo): dei por mim a cirandar por cafés, de ar alienado, a fazer o sinal da conta quando queria pedir mais um bica. Quando entrava num quiosque para comprar A Bola ficava por ali, em lágrimas, a folhear a Tv Guia – e por duas ou três vezes fui convidado a sair do estabelecimento. Desesperado, procurei refúgio na droga – mas entrei num bordel por engano. E não tinha dinheiro, porque não tinha net para trabalhar.
Digo-vos: sim, sim, a tv é muito perigosa, traz informação pouco fidedigna, está ao serviço do governo, do capital, desune a família, já não se fala às refeições, não se sabe quais os trabalhos de casa dos meninos, a net tem pornografia, meu Deus, o que será das nossas criancinhas se se meterem na pornografia, ainda acabam como os pais.
Mas a verdade, não bem a verdade, mas uma coisa amanhada às três pancadas que eu faço passar por verdade porque me dá jeito (visto ser um preguiçoso boçal que inventa teorias baseado em factos inexistentes, o que me habilita a escrever na imprensa), a verdade é que a tv e a net são a nossa âncora, os instrumentos que diariamente usamos para esquecer as pessoas que no dia seguinte vamos voltar a ter vontade de assassinar.
Mas como à excepção dos sportinguistas quem sofre tem direito a uma prendinha, no dia em que a net e a tv voltaram (primeiro abracei-as, depois disse que lhes perdoava terem-me abandonado), liguei-as (chamando-lhes fofinhas enquanto afagava o router) e, ai milagre, estava a começar um episódio novo do House seguido de um episódio igualmente novo do Lie to Me.
Não peço a Deus que entre em minha casa nem que me dê um sinal. Só peço à Zon que não me corte a ligação.
Há discos que não se ouvem de manhã, outros que pela noite se tornam insuportáveis. Alguns só servem acompanhados de pessoas, e uns quantos não permitem companhia. Para cozinhar há discos muito úteis que, em outras situações, se revelariam incipientes. E mesmo para tomar banho há canções mais indicadas que outras (ok, confesso: refiro-me a "Dancing Queen", dos Abba).
Nunca ouço o "Music For a New Society", do John Cale, com as suas gélidas paisagens quase inumanas, antes das duas da matina. Já o "Homem na Cidade" de Carlos do Carmo apetece-me apenas quando madrugo: deixo aquela voz de tremenda hombridade atravessar a neblina e ir buscar a manhã, depositá-la na varanda e os fados tornam-se plena alegria. Não me ocorreria fazer isto com uma canção como o "Girls and Boys", dos Blur, que precisa de copos e gente. O Gardel obriga-me sempre a recorrer a camisas de linho - é curioso como no verão tenho sempre vontade de américas latina: adocicam-me as caipirinhas.
Nisso, os discos são como as pessoas. Não há pessoas, nenhuma pessoa, adequada para todas as horas. Quando muito uma que sabe ser mínimo denominador da maior parte das horas, que sabe a que horas ir e a que horas voltar, difícil ciência de ser âncora sem pesar muito ao barco. Mas isto, quando muito, acontece com uma pessoa. As outras são como os discos: têm dias, e acima de tudo têm horas.
Há aqueles amigos com quem só bebemos copos, e mesmo esses têm um tipo de copos específico. O amigo com quem almoçamos (mas nunca jantamos) e que é íntimo a falar da sua cozinha, mas nunca menciona o quarto. E aquele com quem jantamos (e nunca almoçamos): pouco fala da cozinha, é mais propenso a relatos de quarto. Existem os que falam de cinema, os que só querem falar de livros, os que só falam de discos. A maior parte dos amigos são de rua: vamo-los encontrando. Os amigos de sala de estar estão. E isso chega. Para cada pessoa descobrimos um momento, uma altura, em que nos sabem bem. Fora disso, népia.
Também assim com os discos, mas quando se é pago para ouvir discos descobre-se que nem sempre os discos têm os horários que ao princípio lhes atribuímos. Discos para os quais não imaginávamos hora alguma revelam-se fiés companheiros de solidão nocturna; discos que imaginávamos quase sombrios surgem-nos, de repente, do nada, como partilháveis. E descobre-se que se dermos tempo suficiente a qualquer disco ele lá encontrará uma forma de se encaixar no nosso horário, de se acomodar a uma hora, um momento específico, o que estraga a imagem que um tipo durante anos tinha criado de si: a de um gajo que sabe sempre o que ouvir e não ouvir, em cada situação, a cada hora.
Imaginem que tínhamos este cuidado com as pessoas. Que nos púnhamos a pensar "Se calhar este fulano funciona melhor em almoços mensais que em jantares trimestrais". Seria, pelo menos, confuso. Podia alterar a hierarquia das casas, a lista de compras do supermercado. Ainda daríamos por nós a ter de concordar com gente de direita ou ir à bola com benfiquistas. A descobrir que gente que desprezamos pode parecer-nos sensata enquanto amigos do peito nos parecem egoístas até à medula. Se pensarmos muito nisso, a nossa playlist humana não é tão científica quanto pensamos. Não é nada fácil, isto de escolher um disco para cada hora do dia.
Nos últimos dias muita celeuma se criou quanto à possibilidade do casamento homossexual ser legalizado. Os oponentes levantam os mais apocalípticos cenários como consequência da legalização enquanto os defensores chamam homofóbicos aos antipatizantes da causa, o que muito tem chocado os ditos antipatizantes.
Se está confuso quanto a esta situação, o teste que se segue pode ser-lhe útil, visto permitir aferir com escassa margem de erro o seu grau de homofobia. O teste foi feito de acordo com o pensamento médio português e reproduz as grandes correntes do pensamento contemporâneo tuga, no que diz respeito à questão homossexual, sem grande margem de erro.
Quando me quero referir aos homossexuais chamo-lhes:
a) homossexuais;
b) panisgas, mas é na brincadeira, até tenho amigos que são panisgas e eles não se chateiam quando os chamo assim; são uns queridos, todos, por igual;
c) paneleiragem;
d) 'anda aqui fofinho', ou então, 'sai daqui, fufa'
Um homossexual (em português corrente: um panisgas) é:
a) um ser com os mesmos direitos que os cidadãos normais, menos o de se casar com alguém do mesmo sexo;
b) gente de quem eu até sou amigo, porém tenho de reconhecer que são promíscuos, gostam de usar fardas, depilam as pernas, não gostam de futebol, não bebem cerveja, só vinho francês, têm a mania que são sensíveis, vêem documentários coreanos e passam a vida a tentar ter sexo com adolescentes ou halterofilistas em casas de banho públicas;
c) provavelmente inflamável; mas para ter a certeza nada melhor que regá-lo com gasolina e a seguir acender um fósforo;
d) certamente meu amigo e possivelmente meu amante ou ex-amante;
O que mais me irrita na paneleiragem é:
a) quererem destruir a família tradicional; se não fosse a familia tradicional como é que pessoas como eu teriam sexo sem pagar?
b) aqueles gestos efeminados, os gritinhos, as plumas, o disco-sound, as camisas vermelhas acetinadas, a mania das saladas de rúcula; mas gosto deles e até tenho amigos que são panisguinhas;
c) ainda não estarem todos mortos;
d) serem tantos que não terei tempo para fazer amor com todos;
Em termos antropológicos, a homossexualidade é:
a) um desvio da norma da natureza, que atribui primordialmente ao sexo uma função reprodutora; aliás, eu e os meus amigos achamos que só devia ter sexo quem estivesse disposto a sustentar uma criança;
b) uma escolha; só que os eles e elas que escolhem ser homossexuais são gente mal informada, coitadinhos, porque não frequentam a Igreja;
c) uma doença, foda-se; há dúvidas? queres ver que tu também és paneleiro? onde está o meu bidon de gasolina, onde?
d) fofinha;
Os defensores da legalização do casamento gay são:
a) de esquerda;
b) homossexuais;
c) alvos a abater;
d) sexys;
O casamento homossexual devia ser legalizado:
a) errado, porque destrói a base da família tradicional;
b) errado, porque se cedemos quanto ao casamento, qualquer dia eles já podem andar por aí na rua aos beijos, o que é nojento, palavra do Senhor ;
c) errado; porém, se fosse legalizado, um casamento homossexual seria uma óptima oportunidade para matar paneleiros;
d) certo, porque um casamento é uma chance como outra qualquer de fazer mais uma orgia;
Se o casamento gay for legalizado:
a) as nossas criancinhas tornam-se todas rabe...gay, e a humanidade acaba;
b) os panisgas vão obrigar toda a gente a depilar as pernas, e vamos ter de ouvir os Village People 24 horas por dia em altifalantes;
c) emigro;
d) caso-me; só não sei se com o António, com o Joaquim ou com o Manuel;
Por mim, os homossexuais:
a) continuavam a exercer as suas práticas em segredo enquanto publicamente se portavam como gente normal, e já não havia chatices;
b) frequentavam workshops de heterossexualidade para aprenderem a ser pessoas normais, porque eles também são gente, coitadinhos;
c) eram crucificados no pelourinho;
d) podiam fazer-me o que quisessem;
4 ou mais respostas a): Parabéns, você é o Eduardo Nogueira Pinto ou amigo do Eduardo Nogueira Pinto;
4 ou mais respostas b): Parabéns, você ou é a mãe do Eduardo Nogueira Pinto ou é padre;
4 ou mais respostas c) Parabéns, você é TUGA;
4 ou mais respostas d): Você é panisgas;
Várias respostas cruzadas: Você é (argh) bi-sexual.
De repente o mundo inteiro deu em especialista de Darwin. O homem está em todo o lado, desde as capas de revistas especializadas ao bas fond analfabeto das conversas do Snob. Estaco de espanto na gasolineira perante um aumento do preço do combustível e o serviçal incumbido de me segurar na mangueira sai-se com um “É assim, amigo, quem tem dinheiro pode, quem não tem não pode. É a selecção natural”. Diz isto todo enfunado do poder que o seu lugar de segurador de mangueira lhe atribui, diz isto com o sarcasmo que é natural aos observadores privilegiados (como os seguradores de mangueira), diz isto sem reparar que ele próprio “não pode”. Em não tendo dinheiro opto pelo eléctrico, vejo-o passar, vou a correr atrás dele mas sou ultrapassado por um puto novo que o alcança a tempo enquanto eu fico apeado. E aquele monstrinho de acne grita, “É assim, velhadas, é a selecção natural”. E eu fico à espera que o eléctrico descarrile e o esmague.
Darwin pula e repula na língua das gentes, salta de garganta em garganta como uma gripezinha irritante, anda em bolandas na boca dos que o não leram ou tresleram de acordo com o que mais lhes interessava. Homens socorrem-se dessa expressão catchy que é “selecção natural” para justificar o seu direito a disseminar as suas sementes pelo maior número de fêmeas possível; e as mulheres esforçam-se por lembrar que a ciência nunca chegou a provar que a cozinha é seu o habitat natural, pelo que a cozinha não tem direito algum a seleccioná-las para a tarefa de cortar a batata e grelhar o peixinho. Políticos dizem que o povo (o meio) os legitimou (seleccionou); enquanto os seus oponentes bradam que o político enganou o povo, pelo que a selecção é artificial, logo falseada, um horror nunca visto desde que se começou a chumbar dentes para evitar gangrenas.
E todos juntos, unidos por esta nossa incapacidade de ler e calar, recorremos a três frases feitas do velho, porque adoramos citar alguém que é bem citar, lá poderíamos não saber tudo sobre esta coisa que é essencial saber e ainda por cima vai bem com uma saladinha de rúcula? E porque somos sofisticados dizemos coisas magníficas, que a moral não existe, que é só um esquema de acção para a sobrevivência, e cheios de convicção avançamos e extrapolamos (porque já percebemos como esta porra toda funciona) e, da prevalência da táctica sobre a técnica no futebol moderno à proliferação de revistas como a adorável Happy (por falar nisso, hoje já atou o seu marido à cama com algemas, enquanto experimentava as delícias da bissexualidade com uma desconhecida?), passando por aquela simpática luta de espécies ali em Gaza, temos explicação para tudo: é a selecção natural. E depois de dizer estas baboseiras inconsequentes, lá prosseguimos, todos contentes com a nossa lucidez e sabedoria, rumo à próxima discussão infundada, pode ser uma qualquer poque temos opiniões sobre tudo e lemos uma coisa qualquer sobre toda e qualquer coisa.
Isto anda assim porque o barbudo faz anos. E como faz anos volta-se a falar dele e duas ou três ideias tornam-se receituário pop para todos os males. Mas o aniversário do barbudo passará e depois Darwin voltará ao esquecimento natural que é a ordem natural da estupidez humana, enquanto outro desgraçado que trabalhou a vida inteira será resgatado e inapelavelmente distorcido pelo incontrolável papaguear humano até à exaustão. E nessa altura explicaremos Gaza, a táctica e a Happy recorrendo a outro camone qualquer e tudo estará bem no nosso mundo, tudo estará como sempre, muda a citação mantém-se a baboseira, essencial é a que a gente se mantenha a palrar, palrar muito e dar pulinhos também.
Mais vale deixar-me de tangas: também gostava de juntar-me à festa, mas de Darwin (ou outro camone qualquer) não percebo nada. Para mim a sobrevivência foi muito bem explicada por um tipo inglês relativamente céptico, na realidade o único tipo que li com atenção à excepção de Valdano. A coisa resume-se a isto:
“They fuck you up, your mum and dad.
They may not mean to, but they do.
They fill you with the faults they had
And add some extra just for you”.
Àquela parte do “They don't mean to, but they do” eu costumo chamar “Biologia”. Ao último verso chamo “Evolução”. E a tudo isto que escrevi chamo “Não ter nada para fazer e armar ao pingarelho”. (Também tenho direito.)
Durante dias os senadores americanos reuniram-se para:
a) criar um stimulous bill, isto é, uma lei que providencie a quantidade de dinheiro necessária para aplacar a actual crise e incentivar a economia (os democratas);
b) evitar um spending bill, isto é, evitar gastar uma quantidade absurda de dinheiro com as gentes sem dinheiro, promovendo ao invés novos impostos sobre as gentes sem dinheiro de modo que os ricos não percam os seus bancos (os republicanos).
Enquanto os republicanos se entretinham em jogos de linguagem para adiar o inevitável abrir de cordões à bolsa de modo a minorar a tragédia criada pelos seus amigos, a dita tragédia, farta de tanto rame-rame retórico, abateu-se sobre a minha casa. Sob a forma de (rufar de tambores para criar ansiedade): chuva: borrifou-se para o genial conceito da marquise, desrespeitou os caixilhos de alumínio, infiltrou-se em frinchas que nenhum isolante alcança, esboroou camadas tectónicas de tijolo, cimento e que mais os deuses dos empreiteiros acharam por bem colocar na massa que edifica as paredes desta casa, e nidificou entre os objectos mais preciosos.
O resultado: um ataque terrorista a bens de primeira necessidade: cassetes VHS (incluindo a aula de fitness de Cindy Crawford, oferta da minha mãe nos idos de 80, manifesta demonstração de interesse pelos interesses do filho), DVDs (não, não leva apóstrofo, é plural), CDs, cassetes, livros, livros e livros.
Passei algumas noites a tentar secar a humidade de uma edição bestial (da Penguin) do Tom Sawyer (aquele boneco dos desenhos animados cuja tia tem uma voz nasalada e está sempre a mandar vir com ele por ele portar-se como a criança que é), pousando o livro aberto em cima de um calorífero da década de 70 (que me ficou de herança de uma tia-avó que morreu virgem mas dizia que Cristo a visitava à noite, mas não era Cristo, era o caseiro), enquanto me alimentava de rações de guerra, isto é, uns deliciosos bolinhos de canela da mercearia em frente e ice-tea do Lidl. De minuto em minuto virava uma página e dava uma dentada num bolo. Folgo em anunciar que após cuidados intensivos o livro foi salvo, engordei dois quilos e os Lakers ganharam em casa dos Celtics: Kobe Bryant marcou três triplos seguidos com movimentos estéticos tão perfeitos que eu cheguei a temer surgir-me uma erecção à traição, situação evitada mediante um garrote no escroto que evitou o afluxo de sangue a yada yada yada.
E nisto perdi as notícias mais importantes e só com atraso soube que Michael Phelps foi fotografado a fumar ganza e além de pedir muita desculpa por ser um puto de 23 anos normal, parece que vai ser suspenso (por ser um puto de 23 anos normal) e perder os patrocínios (por ser um puto de 23 anos normal). Por acaso encontrei a seguir um vídeo no Youtube (apenas com som) em que se ouvia Christian Bale (o actor de Psicopata Americano) no set de um filme qualquer, irado, a descascar um director de fotografia qualquer por passar a seu lado enquanto ele se concentrava para uma cena (diz-se que) particularmente emocional. Bale berra, urra, grita, ameça, faz de conta que vai às trombas ao homem, diz-lhe que ele nunca mais volta a trabalhar em Hollywood, uma briga a sério, digna de filme, juro que gostei.
Parece que há um filão de cenas semelhantes no Youtube: realizadores e actores em desmanchos de puxa-cabelos e atira-objectos-pelo-ar, irados, irascíveis, iracundos (tive de ir ao dicionário para esta). Dá-me impressão que ninguém (nem mesmo os Republicanos, nem um que seja) está a perceber que há um negócio nisto: esses out-takes são bastas e assaz vezes melhores que os próprios filmes. Há fitas que eu não compraria excepto se houvesse um dvd extra com as zangas dos actores. Imaginem uma edição do "Apocalipse Now" com as mútuas cabeçadas entre Copolla e Harvey Keitel; de "A Desaparecida" com Ford a humilhar Wayne; de qualquer Hitchcock a pregar partidas às actrizes que queria levar para a cama mas não conseguia (derivado de excesso de gordura). Ou mesmo de Oliveira a perseguir Leonor Silveira. Não pagavam para ver isto? Claro que pagavam.
O clipzinho do Youtube do irado Bale suscitou veementes protestos de gente boa e sã que achou inadmissível o comportamento da estrela, provavelmente a mesma que acha inadmissível o comportamento de Phelps. Eu pessoalmente gosto de uma boa briga e assusta-me esta mania contemporânea de filmar tudo, gravar tudo e julgar tudo. E tenho pena que haja câmaras no Senado americano. Caso não as houvesse imagino Obama, se soubesse que podia passar impune, a sair do Canil Oval onde passa os dias a tentar ensinar um cão de água português a rebolar e saltar, a descer ao Senado e a dar uma de Psicopata Americano nos republicanos cordatos e educados que pretendem combater a crise que criaram com a exacta mesma política que levou à dita crise. Trocava a minha edição da Penguin do Tom Sawyer para ver um vídeo de Obama iracundo a desabar (qual chuva desmedida em marquise de tuga de classe média) sobre os eleitos do Senhor que se sentam no Senado. Está em perfeito estado, a cópia do Tom Sawyer, caso estejam interessados.
Passei um Natal agradável, obrigado. Reduzi a habitual quantidade de doçaria ingerida de 'absurdo' para um mais aceitável 'exagero irracional', disse muitas vezes 'Pois' e 'Sim, claro' quando me perguntaram se as minhas sobrinhas não estavam muito lindinhas, treinei um sorriso doce para o momento de receber prendas inanes e quando recebi prendas inanes sorri docemente e agradeci. E aborreci-me muito.
Para fugir ao tédio pus-me a ler o blog do Mexia, onde encontrei um post curioso. Escreve o Pedro, a 22 deste mês, que uma moça disse a um amigo: "Gosto de ser bem fodida". O amigo ficou excitado, mas isso pouco importa: um homem excita-se até com o vento a soprar nos canaviais. O interessante está na interpretação do Pedro: "tirando o vocábulo, ela não disse nada do outro mundo. Toda a gente gosta de foder ou ser fodida, de preferência bem." O Pedro tem razão quando escreve que ela não disse nada do outro mundo tirando o palavrão - mas é o palavrão que faz toda a diferença, não a afirmação contida na frase. Eu explico.
Imaginemos que a senhora tinha tido: "Gosto que saibam fazer amor comigo" e posteriormente tinha procedido a uma longa e detalhada explicitação dos movimentos de anca, língua e dedos que o aspirante a amante teria de executar para a deixar feliz. Ainda seria uma afirmação de si enquanto ser desejante (tipa que fode) e também desejável (tipa fodível), mas a frase teria caído no esquecimento e o amigo do Mexia, em vez de ficar excitado, ter-se-ia entediado. Porque a frase teria sido expurgada do seu factor entesoante, que é o uso do calão. O calão serve para reconduzir ao pornográfico o que antes as mentes púdicas achavam ser pornográfico. Serve para tornar ainda mais afirmativa uma afirmação de si.
Claro que isto é tudo treta, porque qualquer ser minimamente adulto sabe que qualquer ser minimamente adulto e saudável gosta de foder e ser fodido, "de preferência bem", como o Pedro refere (não sei onde o descobriu, deve ter lido). Além disso, a frase é hoje repetida ad nauseum por qualquer fêmea aspirante a liberal e dona e senhora do seu nariz (também se fazem coisas interessantes com o nariz, e não estou a falar de drogas): toda a santa cachopa já a disse pelo menos uma vez a um qualquer tenrinho deslumbrado com o potencial entesoante do calão. Ora isto é uma constatação do óbvio disfarçada de diferença, pelo que a proposição deixa de ser uma irreprimível afirmação de vontade para ser roleplaying, o que faz da mocinha uma poseur.
Se a cachopa tivesse dito: 'Gosto que ejaculem na minha cara enquanto trauteiam A Cavalgada das Valquírias' ou 'Aprecio sobremaneira que me assentem com cintos de couro no lombo enquanto me descrevem a vitória de Kasparov sobre Karpov em 1983 com aquela toma do peão pelo bispo à traição', isto seria notícia. Assim é apenas mais uma repetição sonsa da mesma história, com os mesmos capítulos e final conhecido, apenas uma nota de rodapé num banal tema de capa da revista Happy.
O Pedro escreve "Hoje em dia uma mulher perdoa tudo a um homem, até violências e traições, mas não perdoa ser mal fodida", o que é um manifesto exagero: toda a gente pode perdoar uma certa dose de violência; uma certa dose de traição; e igualmente uma certa dose de má foda como se perdoa uma certa dose de más refeições ou de conversas aborrecidas ou de almoços de família neuróticos ou de roupa desarrumada. O que não se perdoa é a absolutização da violência, da traição ou da má foda.
Quando o Pedro acaba o post a exclamar "Abençoadas" às senhoras que gostam de ser bem fodidas mas não se importam de ser maltratadas ou traídas está apenas a descrever um imaginário feminino que lhe interessa para confirmar a sua imagem de si. Mas está a fazer um mau serviço às mulheres (como aliás ele certamente confirmará), porque está a descrevê-las como seres que procuram a autonomia unicamente pela foda - pior: pela foda que recebem e não pela que dão. E que por ela são capazes de se submeter a tudo, inclusive à violência - da mesma forma que antes o fariam (suponhamos) pela segurança.
E isto reduz a autonomia da mulher a uma caricatura. Porque raio a autonomia tem de passar pela foda, porque raio se "afirma" a foda? Antes a sexualidade não passava pelo prazer feminino? Tirando certas excepções (a corte japonesa no século XI parece exemplo demasiado rebuscado), não, não passava. Mas também é certo que antes eram as mulheres que cozinhavam; que passavam a ferro; e que se ocupavam da educação das criancinhas. E é tendo em conta todas essas anteriores manifestações da primeva submissão feminina, que rogo pelo dia em que ouça uma mulher a dizer: "Eu gosto é de ser bem alimentada", ou "Homem que me queira tem de me passar bem a ferro as saias plissadas". Isto seria uma afirmação de individualidade original. Até lá, é só folclore.
A primeira vez que me falaram do Bruno Aleixo usaram o termo "génio" de forma tão desbragada para o qualificar que automaticamente desmereci o bicho. Não uso o termo "bicho" de forma gratuita: fui à procura da figura no Youtube e dei com um bonequinho saído da Guerra das Estrelas que debitava conselhos sem sentido. Não fiquei propriamente fascinado, mas retive um sotaque geograficamente localizável entre a Mealhada e Viseu que me pareceu louvável, porque sou muito boa pessoa e amo o povo. Acresce dizer que tenho a certeza que estas coordenadas estão certas, particularmente porque nunca estive nem na Mealhada nem em Viseu.
Num zapping nocturno descobri o programa do Aleixo na Sic-Radical. O programa do Aleixo permitiu-me praticar o meu desporto preferido: não gostar. Tento sempre não gostar de tudo o que toda a gente gosta, e esforcei-me muito por não gostar do Aleixo. Infelizmente, o programa é brilhante, o que me leva a odiar o Aleixo.
Desde que o tinha visto no Youtube o Bruno Aleixo mudou: já não é um bonequinho da Guerra das Estrelas - agora é um cãozinho e tem uma mantinha. A seu lado está um busto, denominado Busto. O Bruno Aleixo é um ser lamentável. Sabem aqueles tipos que são iguais à avó? Pois bem: esse é o Bruno Aleixo. Um tipo (um cão) que apenas abre a boca para rezingar, mandar vir, reclamar e mostrar, por argumentos insondavelmente insanos, que todos os outros são idiotas. Eu amo o Bruno Aleixo.
O imaginário do Aleixo apenas comporta conversas sobre os méritos das pegas em baquelite ou as notícias do Diário de Coimbra. Tudo o que o Aleixo diz e faz é apenas e só em mérito próprio. O Aleixo é provinciano, mesquinho, rebarbado, inculto, machista, fanfarrão e tem sempre de ganhar. O Aleixo é a única pessoa que eu gosto em Portugal. É alguém que oferece maçãs da sua macieira, desde que as apanhem do chão. Alguém que oferece uma arca frigorífica a um espectador do programa, em particular porque a arca está estragada. Amável, avisa para levarem uma vanete porque aquilo ainda é grande. O Aleixo é um poço de amor.
Não sei se já alguém disse isto, mas o Bruno Aleixo é o Larry David português. Conversa sobre nada e implica com tudo. O seu único objectivo é conseguir o que quer, mesmo que o que queira seja ganhar uma discussão insignificante ou provar que é o maior. Que o Larry David português seja um cão que parece uma velha a falar só pode fazer todo o sentido. Estou quase a ir mais longe e a dizer que o Aleixo é a pátria toda mas ainda me aparecem uns tipos do PNR a dar-me porrada. Mas eu, pelo Aleixo, até era capaz disso.
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