Terça-feira, 12 de Junho de 2012

Enquanto dormíamos

Sempre achei que uma das mais adversas consequências da crise, para além das questões associadas ao poder de compra [e a juntar à hesitação no contributo para a natalidade] era retirar-nos a capacidade de sonhar. De aspirar a mais. De dar de vez o salto de Quarteira para Vilamoura. Piscar o olho a, pelo menos, mais duas assoalhadas e uma marquise. Fazer um upgrade de umas dezenas de cavalos, com bagageira mais espaçosa, numa cor vistosa. Ou optar pela versão desportiva.

 

Em termos de crise ando escaldado. Logo eu que sempre fui um português atípico, no que à pré-crise diz respeito. Atinadinho. Dos que não andou a viver por conta. Que resistiu à ideia de que as horas num relógio Cartier devem em termos de tempo ser diferentes. Embora desconfiado. Que se escusa às edições em capa dura e se fica pelas de bolso. Ando aterrorizado com a crise. Com o sono ameaçado. O sonho hipotecado.

Não ajuda ver a mui ilustre Constança Cunha e Sá tremelicando no ecrã sempre que comenta, perspicaz, a crise. Ou o, também, mui nobre Medina Carreira com as glândulas salivares sobreaquecidas pela ira, sempre que tacteia os interstícios político-económicos portugueses.

Da mesma maneira que só serve para me abespinhar saber que madame Christine Lagarde, directora geral do FMI (a das malas Louis Vuitton), aufere o apreciável vencimento de 438. 940 euros por ano.      

 

O exôdo das cegonhas e o encerramento da Maternidade Alfredo da Costa preocupam-me menos, uma vez que para esse peditório tenho assegurado o contributo com duas unidades são os sonhos que me desassossegam.

Devo padecer de um inconsciente contido, pelo que o meu icebergue psicanalítico é controlado, no que aos sonhos diz respeito. Parece temer represálias de um qualquer Titanic vingativo e repressor.

 

O meu caso torna proporções gravíssimas pois nunca fui saudosista e vivi durante anos com a convicção de que o melhor estava sempre para vir. Sem sonhos a minha vida fica completamente sensaborona. Insossa. Uma desenxabida versão macrobiótica.

 

Resignado, concluí que como para a maioria dos portugueses para mim não há sonho, sem sono. Pelo que se não conseguir recuperar os outros (os das ambições) me fico pelo regime onírico forçado, na horizontalidade do travesseiro.

É nesses que ando concentrado. Os outros exigem conjuntura apropriada. Voltar a mercados. Exportações. Moody's, Standard & Poor's e Fitch. Taxas, níveis, ratings e rankings.

Quando me deito tento não tomar nada de estimulante. Cafeínas e afins. Continuo num passo discreto para a facção fundamentalista dos não fumadores recentes. Numa tranquilidade de seleccionador nacional.

Pernoito solidário com D. Januário Torgal Ferreira. Acato as imposições da Troika. Acredito na boa índole de Relvas. Embora concorde com o Hugo Gonçalves quando diz que ele tem sangue de Dantas. Espiões para mim só os de Ian Fleming em exigência Shaken, not stirred (no que ao Martini diz respeito) ou ou em ambiance John le Carré. Vítor Gaspar sabe o que faz.

Hesito entre uma posição freudiana ou neo-freudiana e acabo evocando um mantra-lengalenga:

 

   - Freud é bom companheiro, Freud é bom companheiro…

 

E adormeço. Em paz. Num mundo cor-de-rosa. Sem feriados. Com um povo que deixou de ser piegas. Ordeiro. Paciente. Orgulho de quem o governa.

 

Sonolento, em tom de epifania percebo a tranquilidade dos outros. Enquanto dormem. Como se impõe. Pergunto-me:

 

   - Andamos todos a dormir?

 

Seguindo o conselho do Dr. Passos Coelho, apelando à mudança dos portugueses, com o coração ao pé da boca pingando amor patriótico pela nação confirmo no meu Maurice Lacroix que adormeci e estou atrasado para o emprego. Em espírito de natais passados vejo o meu chefe à minha frente. Confrontado com o meu absentismo, pouco preocupado com a crise, digo-lhe:

 

   - Reparei que estava um dia lindo e não me consegui despachar antes.

 

Percebo que nos sonhos para além de não se morrer, também não se é despedido.

E continuo a sonhar. Agradecido por ter emprego. Como qualquer bom português. Lá fora a crise. Que não nos deixa sonhar.

publicado por Carlos M. J. Alves às 12:33
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