Quarta-feira, 11 de Abril de 2012

Heterossexuais Contestatárias

Depois de me emocionar com a prosa do arquitecto, no Sol, sobre"Os Homossexuais Contestatários", inspirei-me no seu texto para retratar outra maleita dos tempos modernos.




À minha frente, no elevador, está uma mulher de 34 ou 35 anos. Pelo decote, emissão de feromonas e pela forma como balança o pé dentro do sapato de salto, percebo que é heterossexual.

Estamos no elevador do Shopping da Gávea, no Rio de Janeiro, e sim, vou começar com detalhes descritivos como: trabalho naquela zona, subo e desço a rua muitas vezes, gosto muito de subir a rua, e de descer também; bebo um copo de água a meio da manhã; a Gávea é um lugar com muitas mulheres bonitas; não sei porque as mulheres bonitas escolhem certas zonas da cidade, mas, de facto, ali nos cruzamos com muitas mulheres bonitas – quase tantas como gays no Chiado.

(Se eu escrever assim e explicar tudo muito bem explicadinho, contando a minha vida desde que lavo os dentes de manhã até que ato os cordões das meias de dormir à noitinha, fica tudo mais claro e a minha singular voz literária permanecerá para sempre na cabeça dos leitores tal como a minha prosa nobelizável perpetuará sua luz nas bibliotecas do mundo inteiro.)

Julgo ser notório que a comunidade heterossexual feminina tem vindo a crescer não só no Rio de Janeiro, mas em múltiplas metrópoles – e a maioria queixa-se do elevado número de homens hetero imprestáveis para um namoro de verão, quanto mais para casar e ter filhos. Elas estão aí e são insolentes. 

Como todos sabemos, caiu o muro de Berlim, o Fidel patina, eu li muitos livros que explicam isto, a juventude é rebelde e agora já fiz um enquadramento histórico para concluir brilhantemente que: ser hoje uma mulher heterossexual de 30 e tal anos, solteira ou sem parceiro, é moda ou uma forma de contestação. 

Uma amiga minha pensou fazer uma tatuagem, participar numa manifestação a favor da legalização da maconha ou fundar uma banda de punk rock, mas depois, influenciada por amigos e pelas celebridades que assumem a sua heterossexualidade em público, resolveu ser uma trintona nos píncaros da prestação sexual, sem parceiro permanente e orgulhosa da sua condição (ela ainda não decidiu se é uma doença, se é assim porque é assim, ou se é apenas vulnerável às tendências da estação). 

Durante anos, as mulheres heterossexuais de trinta e tal anos tiveram de viver num sistema que não permitia que se assumissem, muitas casavam e tinham filhos para escamotear a sua condição. Conheci umas quantas que, muitos anos mais tarde, largaram tudo e saíram do armário. Sem as lutas ideológicas da Guerra Fria, sem o confronto geracional de antanho, a insolência maior é agora ser uma mulher heterossexual de trinta e tal anos.

Quando olho para a mulher no elevador, para a forma como ostenta a sua heterossexualidade, o peito apertado, as pernas lisas e altas, não posso deixar de pensar que a sua opção é uma forma de negação radical, porque rejeita a relação homem-mulher como ela deve ser. O macho passa a ser o caçado. E a verdade é que, naquele elevador, me senti como a zebra coxa cruzando o território da leoa. 

Esta mudança de paradigma, em que o homem é usado para satisfação da mulher sem fins de procriação, é um caso bicudo de niilismo, uma ausência de continuidade da espécie, como o insecto fêmea que come a cabeça do macho no final da cópula. 

Sempre que uma mulher heterossexual de trinta anos tem relações com um homem sem envolvimento emocional e gravidez subsequente, morre um marinheiro no mar. E se uma dessas mulheres tem relações com outra mulher, então nesse caso morrem três fadas, dois atuns e um unicórnio.

Além de nociva, a exposição da heterossexualidade destas mulheres é, para concluir, uma moda, uma birra, um acessório no kit da noite, uma forma de chamar à atenção. 

Moral da história?

Talvez o que dizia aquele grande gayzão, Oscar Wilde:

“The only thing worst than being talked about, is not being talked about”

Tradução muito livre: ser polémico é melhor que ser apenas nulo.

 

Moral da história 2: You go girls.

 

publicado por Hugo Gonçalves às 14:41
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Quarta-feira, 4 de Abril de 2012

Carta para a sociedade protetora dos animais

Caríssimos senhores,

 

Venho por este meio fazer-vos um pedido. Mas para justificar a minha demanda sou obrigado a falar-vos de Bento, o bulldog francês, que permaneceu em minha casa, durante cinco dias, enquanto a dona viajava para São Paulo. Começo por dizer que não se trata de uma raça de minha preferência, e que sim, discrimino entre as raças caninas porque em criança tive um pastor alemão capaz de dar explicações de matemática a alguns dos meus colegas de escola – além de caçar coelhos, lagartos e obedecer a dezenas de comandos de voz. Rocky era um super cão.

 

Tenho preferências e embirrações, assumo, mas Bento entrou-me em casa tão lampeiro e confiante, cheirando o apartamento e soprando as beiças de alegria, que logo ali comecei a desativar os meus preconceitos.

 

Bento passeava comigo várias vezes e chegou a acompanhar-me para o trabalho – uma bonita casa na Gávea, onde Bento rebolava na alcatifa e explorava o segundo andar cheio de caixotes. Quem o conhecia, gostava dele. Na rua alguns assustavam-se com a sua cara achatada, outros elogiavam-lhe a cabeçona e o corpo musculado, um amigo chamou-lhe, carinhosamente, E.T, cruzámo-nos com outro cão da sua raça, ainda bebé, e descobrimos que tinham o mesmo nome.

 

O dono do outro Bento disse ao seu cão: “Olha aí o seu xará, isso é você daqui a uns tempos.”

 

Dois adolescentes pararam quando eu e Bento comíamos um queijo minas com peito de peru em pão francês e bebíamos um suco de melancia, e um deles fez, a meio da conversa, uma observação que me escapara: “Esses cachorros têm um problema. Como a cabeça é grandona, a mãe sofre muito quando eles nascem.”

 

Dei por mim várias vezes, como agora, a falar dos acontecimentos do dia em que eu e Bento tínhamos sido protagonistas. Partilhei com amigos a destreza de Bento quando, fechados no parque infantil da praça Santos Dumont, lhe lançava um pedaço de madeira e ele regressava com a madeira entre as beiças como se fumasse um charuto.

 

“Bento tem cara de gangster simpático.”

 

Dava por mim a pensar estas coisas ou a falar com ele sobre os mais variados assuntos, as suas orelhas de extra terrestre captando a minha voz e os seus olhinhos atentos. Falávamos das coisas do dia-a-dia, nunca nada de complicado, jamais política, muito menos futebol.

 

Na maior parte do tempo, claro, não dizíamos nada. Eu escrevia toda a manhã, depois de um passeio com Bento e de uma ida ao pão – por mais rápida que fosse a compra, ficava sempre em sobressalto, olhando pela janela a ver se Bento ainda estava preso na trela amarrada ao canteiro.

 

Eu escrevia e ele ficava deitado na sala, roncando e peidando-se como um estivador, por vezes alerta para alguma coisa que eu não identificava, ladrando, zangando-se, mudando de lugar.

 

Como disse, na maior parte do tempo, não falávamos. Eu levanta-me para ir beber água, dava-lhe uma fatia de fiambre, um cubo de melancia, ele esperava mais de mim, ficava a olhar-me, e eu cedia em mais um cubo, mais uma fatia.

 

Bento regressou a sua casa, deixando a minha coberta de pêlos. Aspirei-os ontem e hoje, enquanto escrevia de manhã, interrompi o trabalho e virei-me para o lado para comentar alguma coisa com Bento. Ele não estava. Na rua, a caminho do trabalho, e no regresso, cruzei-me com outros cães e outros donos.

 

Bento cheirava a cão, roçava-se no meu sofá como se estivesse em transe, era produtor de uma flatulência maligna e não se podia ver um filme sem o seu ressonar em dolby sorround.  

 

Mas, como acontece quando duas criaturas são capazes de passar horas fazendo-se companhia sem dizer uma palavra, Bento e eu eramos uma boa dupla, podíamos ser uma parelha de detetives ou de aposentados bem dispostos. O bairro era nosso e nós sabíamos aproveitar os pequenos deleites do bairro: a rua das Acácias e sua abóboda de árvores, a relva molhada, ao anoitecer, na praça Santos Dumont, a garota bonita que sorria para Bento, a alegria pateta e encantadora quando dois cães se encontram, os passeios, o silêncio de nada além dos nossos passos.

 

Por isso, caros senhores, vos peço que, tal como cuidam dos animais abandonados por humanos, se prestem a cuidar dos humanos abandonados por animais. Bento foi-se e a qualidade do ar melhorou nesta casa. Mas quem é que me vai ouvir, a meio da manhã, quando perguntar: “E que tal se chamasse Oncinha a uma das personagens do romance?”

 

Com os melhores cumprimentos,

HG

 

Ps – no meu afeto por Bento não deve ser descuidado o facto de ser xará de outro Bento. Manuel Galrinho. O lince do Barreiro. O grande guarda-redes benfiquista da era dos bigodes.

 

Ps - Bento é um cão viajado e urbanita, depois de Nova Iorque e Lisboa esta é a terceira cidade onde vive. 

publicado por Hugo Gonçalves às 23:22
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Terça-feira, 27 de Março de 2012

Pimp up my dream

 

 

Era um bar e isso dava-me algum conforto, uma vez que não sabia como tinha ido ali parar – as garrafas luziam atrás do balcão e a jukebox tocava Billie Holiday. O chão estava limpo embora eu soubesse – não sei como – que aquela era a hora de fecho e que muitos degenerados tinham passado por lá ao longo da noite.

 

Era um bar igual a tantos outros e foi isso que me descansou – o consolo de já ali ter estado, em muitas cidades diferentes. Um bar é um bar.

 

Ao fundo, na mesa perto das casas de banho, um homem seco como um pugilista peso-pluma demorava-se a beber, com estilo e deleite, um bourbon sem gelo. Disse:

 

“If it ain’t the dreamer himself.”

 

Resolvi aproximar-me. Era Frank Sinatra, jovem como quando fazia sucesso entre meninas adolescentes, rufia como o rapaz de Hoboken que largou a primeira mulher para dormir com uma stripper com doenças venéreas. Tentei falar inglês mas não sabia como. Disse:

 

“O senhor aqui?

 

Frank Sinatra passou a falar português. Era estranho, mais ainda porque falava com sotaque de Alfama.

 

“Vai buscar mais uma garrafa e senta-te aí.”

 

Foi isso que fiz – it’s Frank’s world, we just live in it. Estava a regressar com a garrafa quando Batman saiu da casa de banho e ordenou, com sotaque do norte: “Oube lá, ó trongamonga, traz aí um copo pró Batemã.”

 

Sentámo-nos os três e Sinatra disse: “Não sei como consegues mijar com essa merda”, e apontou para as partes baixas da armadura de Batman. “Nem imagino como será na intimidade, com senhoras e senhoritas.”

 

Bebemos a garrafa inteira enquanto as músicas iam tocando na jukebox. Eu disse:“Estamos à espera de quê?”

 

 

Sinatra respondeu: “Do super-homem.”

 

“Vá lá, a sério.” 

 

Sinatra bateu palmas e, na juke box, começou a tocar a música do filme do super-homem. De seguida entraram no bar várias hospedeiras, de farda azul e cabelo loiro, que se sentaram à nossa mesa. Atrás vinha o super-homem e Sinatra segredou-me: “Não entendo aquela paneleirice de o gajo andar com cuecas vermelhas por cima de collants.”

 

“Eu quando era pequeno mascarei-me de super-homem”, confessei, estupidamente, e logo me arrependi.

 

Sinatra encheu o copo e cuspiu as palavras como se manobrasse uma navalha: “Tou fodido, isto hoje é noite para amadores.”

 

“Quem são elas?”, perguntei.

 

Super-homem respondeu enquanto acendia um Camel sem filtro: “São hospedeiras da Icelandic Air.”

 

“Eu vi isto num episódio dos Sopranos, havia uma cena em que o Tony estava numa suite, a fumar charuto, e havia várias hospedeiras da Icelandic Air.”

 

“Estavam vestidas?”, perguntou Sinatra enquanto Batman bajulava, com piropos chapa cinco, uma hospedeira parecida com a Bjork.

 

“É verdade”, respondeu uma voz familiar. “Eu posso validar o testemunho do rapaz”, disse Tony Soprano, no meio do bar, quando a música desapareceu. “E para lhe responder, mister Sinatra, as que se encontravam vestidas não ficaram assim muito tempo.” Todos se riram.

 

Perguntei: “Mas que raio se está a passar aqui.”

 

Fank respondeu: “It’s your fucking subconscious, kid, how the fuck should we know.”

 

Super-homem acrescentou: “E agora vai contar o sonho à tua terapeuta e arrotar cem pratas no final dos 50 minutos.”

 

Insisti: “Mas não vai rolar nada com as meninas?”

 

Uma delas disse: “Gostas de cordas?”

 

E claro que o despertador tocou no outro lado do espelho.

 

publicado por Hugo Gonçalves às 23:07
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Quarta-feira, 21 de Março de 2012

Reality Van

 

Lá estava eu, metido numa van para fazer cinco minutos de caminho, porque o lugar onde ia ficava a meio de uma subida, e, com o calor do princípio da tarde, não estava para transpirar a T-shirt.

 

Lá estava eu, transpirando a T-shirt dentro de uma van sem ar condicionado, em pé porque não havia lugares sentados, prensado entre corpos porque o cobrador não parava de enfiar gente na van, mas feliz por causa da minha capacidade de adaptação. Eu era o gringo que se diluía entre os locais, o bacano que entra na onda, o observador que não se importa de participar.

   

Estava contente com a minha habilidade de, sem preconceitos ou frescuras, apanhar (mais uma vez) um meio de transporte que alguns dos meus amigos cariocas – por comodismo, classismo ou desinteresse antropológico – recusam utilizar nas suas deslocações pela cidade. Olhei à minha volta (a van ia para a Rocinha), e era o único branco. Depois o cobrador perguntou:

 

“Alguém desce na PUC?”

 

E como ninguém respondesse, uma das senhoras – negra como uma pantera escovada e gorda como uma tia beijoqueira – disparou:

 

“Se ninguém desce, vamos diretos pra Rocinha.” Todos se riram, houve um momento de cumplicidade coletiva, tal e qual como nas longas viagens de carro com amigos, e até eu, nascido e criado a milhares de quilómetros da Rocinha, me senti parte dessa comunhão na van em alta velocidade.

Mas eu não sei o que é ir e vir da maior favela do Brasil (ou viver lá), não sei o que é perder horas no trânsito (dentro de uma van, ônibus ou trem sobrelotados) ou levar os filhos à escola (dentro de uma van, ônibus ou trem sobrelotados) antes das oito da matina para, de seguida, vestir a farda e teclar numa caixa de supermercado ou tratar das crianças dos outros ou trabalhar de ascensorista num prédio do Centro.  

 

Não houve, em mim, culpa burguesa, nem senti que tivesse de abandonar as viagens de van por não pertencer ao grupo. Mas percebi, apesar do meu genuíno interesse em misturar-me, que padecia de um orgulho indefinido, algo que resultava do simples facto de utilizar, nas minhas viagens, sem hesitações ou pruridos, os serviços de uma van.

 

É um prazer egoísta, é sentirmo-nos bem porque julgamos ser (em pensamento) boas pessoas – melhor do que realmente somos na prática. Lembrei-me do comediante Louis CK, que conta como, em várias viagens de avião para o Iraque e o Afeganistão, onde ia atuar para as tropas americanas, pensou em oferecer o seu lugar, em primeira classe, a algum dos militares que viajavam em económica. Nunca o fez, confessa, mas a fantasia do gesto, o desenrolar do filme na sua cabeça, o militar grato, os outros magalas dizendo uns aos outros como o Louis CK era um gajo porreiro, todo esse sonho altruísta lhe deu tanto ou mais prazer que o gesto em si – gesto que, confessa, nunca realizou.

 

Foi exactamente isso que senti na van – um sentimento de bondade, “olhem como sou um cara legal”, tudo isso apenas por viajar numa carrinha que ia a caminho da favela.

 

Rosie Parks had it pretty worst.

 

Essa emoção – sentirmo-nos bem sem ter feito realmente nada de assinalável –, tão sabiamente definido e explicado por Louis CK, é um dos atributos da inteligência humana e da sua capacidade fantasista. Uns criam narrativas em que ganham a lotaria e dão (quase) tudo para instituições de caridade. Outros sonharão em salvar vidas após um acidente de avião, em adoptar duas crianças – uma africana, outra chinesa –, em fazer voluntariado num país fodido por humanos e esmagado pela Natureza. Há em nós esta capacidade para sermos os heróis da nossa própria odisseia sem mexer uma palha. É tão auto-satisfatório como a masturbação, um admirável truque da mente, substituto de psicólogos, drogas e reconhecimento de terceiros.

 

Há uma canção, de Ryan Adams, chamada “The fools we are as man”, foi nesse título que pensei ao saltar da van, muito antes da Rocinha, a meio de uma subida que não me apeteceu escalar por causa do calor. Os patetas que somos enquanto homens…

 

Senti, primeiro, uma certa vergonha. Depois veio o enternecimento com as criaturas carentes e falhadas que somos. E se, pelo menos em fantasias, julgamos ser melhores pessoas, talvez um dia o abstrato se torne material, e haverá pelo menos um soldado, num avião, a caminho de uma guerra, que poderá esticar as pernas em Primeira Classe. 

publicado por Hugo Gonçalves às 13:41
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Quarta-feira, 14 de Março de 2012

Penalti

 Meio século depois de ter defendido o penalti falhado por José no primeiro dia de aulas, João estava outra vez diante do colega de escola, num aeroporto internacional, na mesma sala de embarque.

 

Não se viam há anos, mas sentiram, ao cruzar o olhar, o mesmo eriçar dos cabelos, o dedo no gatilho da testosterona, os dentes arreganhados, tudo aquilo que tomara conta dos seus corpos de rapazes, no campo pelado da escola, após João ter dado uma palmada na bola, que subiu, bateu na trave e ficou a saltitar perto da linha de golo sem entrar, e de José ter investido sobre o guarda-redes, cuspindo palavras e gafanhotos:

 

“Não vale, não vale, tu atiraste-te antes de eu chutar a bola.”

 

O jogo estava prestes a terminar porque, em segundos, iria soar a campainha para se iniciarem as aulas da tarde. A equipa de João liderava por 9-8, e aquela grande penalidade seria a hipótese de um empate, que seria resolvido numa sessão de cinco penaltis para cada equipa, durante o mini recreio da tarde

 

José não parava de fazer a mesma acusação: “Não vale, não vale, tu atiraste-te antes de eu chutar a bola.”

 

Mas não havia repetições e as regras, se as houvesse, foram engolidas pela euforia do falhanço, a equipa de João ganhava o primeiro encontro entre alunos que se conheciam nesse dia, impunha respeito, colocava-se adiante na luta pelo domínio da matilha.

 

Porque ninguém o ouvia e alguns colegas de equipa já começavam a olhá-lo como culpado pela derrota, José puxou João pelos cabelos e começou a esmurrá-lo, parando apenas quando o professor de Educação Física o agarrou pelo cachaço, tal e qual um pastor alemão abocanhando um gato, e o segurou com dedos firmes que lhe deixaram nódoas negras nos braços.

 

José seria punido, suspenso, levaria uma coça do pai. Mas, para o resto da vida, todos aqueles miúdos se lembrariam do seu poder, da forma como triunfou, entre poeira, suor e cuspo, perante um adversário que nem conseguiu lançar um murro. O jogo de futebol, a defesa do penalti, seriam notas de rodapé numa história maior – aquela em que José partiu a boca a João numa arena esgotada.

 

Tinha passado meio século e ali estavam eles, fingindo mandar mensagens escritas ou fabricando um interesse nas notícias financeiras que passam num plasma. O voo estava atrasado. Mesmo que não quisessem, acabavam a olhar um para o outro, disfarçando logo de seguida. Não se viam há mais de uma década, talvez desde o final da adolescência, mas o tempo não tinha qualquer efeito apaziguador naqueles homens. Durante anos, após o incidente, se por acaso estavam no mesmo grupo de amigos ou se encontravam numa festa de aniversário, se por acaso trocavam cromos do Mundial ou olhavam para as miúdas na matiné de uma discoteca, José sentia a jactância dos vencedores com título vitalício e João, embora disfarçasse, sentia um fervor nas orelhas e o estômago recuava para mais perto das costelas.

  

Não interessava nada o que acontecera entre a última vez que se tinham visto e aquele encontro no aeroporto. Não importava quem era agora mais rico, famoso, aquele que tinha os filhos mais bonitos e a saúde mais intacta. Essas disputas seriam coisas de criança se comparadas com a rivalidade que nasceu no momento do penalti.   

 

O voo tinha atrasado muito. José levantou-se para passear pelo aeroporto. João tinha ido à casa de banho.

 

Encontraram-se na loja de uma marca de desporto. Não precisaram de dizer nada. João abriu os braços e apontou para a sua esquerda e a sua direita, explicando aquilo que é praxe nestas coisas do futebol jogado na rua: a baliza vai dali até ali.  

 

José pegou numa bola e contou nove passos a partir da linha da baliza. Respirou fundo, imitou a pose de algum jogador que idolatrou na infância, e meteu a bola lá no cantinho onde nem os gatos acrobatas chegam.

 

José celebrou como não pôde celebrar há vinte e cinco anos. Mas não teve muito tempo para festejos. João deu-lhe um soco no nariz, fazendo-o cair sobre um expositor com ténis de mulher.

 

O voo era longo e tanto José como João não precisaram de comprimidos para dormir – cerraram pálpebras e apagaram o sistema central como se após uma tarde de domingo a esfolar joelhos e a cansar coxas na peladinha de rua.

 

Chegados à cidade onde viviam, José cancelou a terapia e foi correr junto do rio. João comeu a mulher – após um ano sem lhe tocar.

 

Nessa noite, José e João tiveram mais fome que uma praga de gafanhotos. Teriam participado em orgias imperiais, conquistado cidades com muralhas, decidido a final do campeonato do mundo no último segundo da partida.

 

José pensou: “Que grande golo.”

 

João pensou: “Parti-lhe o focinho.”

 

Há muitos anos que não desfrutavam, com tamanho entusiasmo, de coisas tão simples. 

publicado por Hugo Gonçalves às 21:29
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Quarta-feira, 7 de Março de 2012

Sobre as crónicas que não querem ser crónicas ou A pieguice do cronista

 

Já se sabe, até ao enjoo, que todos os cronistas, em algum momento, começam uma crónica falando da falta de assunto. Nunca o fiz e prometi que não o faria, embora as minhas resoluções nem sempre tenham a abnegação de um general dos antigos, vacilam nos joelhos diante de uma tentação como adolescentes japonesas no camarim de um ídolo pop teen. Como se diz por estes lados: “Sou facinha.” Mas não será ainda hoje que venho para aqui compadecer-me da falta de assunto.

 

O meu problema são as crónicas que não me apetece escrever – por preguiça, aborrecimento e procrastinação patológica –, mas que se vão empurrando contra a minha pele, seres alienígenas que germinam dentro de mim, esperando poder saltar cá para fora a fim de se mostrarem, vaidosas como são as ideias, as impressões e os bitaites, mas permitindo-me dessa forma seguir adiante com outras obsessões. E por isso há um alívio quando se emancipam, cruzando derme e epiderme, e seguem seu caminho. 

 

Essas crónicas que não quero escrever começam do nada, um grão, um microfilme, pode ser uma frase, uma imagem, um gesto. Por exemplo: há umas semanas, numa noite desse calor que faz estalar os insectos, caí nas águas voluptuosas da piscina de uma amiga. E estar ali, no verão, rodeado de crianças que faziam bombas e garotas que falavam e davam risinhos literários nas espreguiçadeiras, estar ali, banhado no azul e no cloro, olhando as árvores, o céu, as estrelas e todas as cenas que fizeram das nossas noites de verão algo de memorável, estar ali foi motivo para que a imagem de uma piscina noctívaga se acendesse dentro de mim, desde então, como as luzes debaixo de água. Talvez porque tudo o se parece com as férias grandes, quando as férias grandes iam de uma ponta à outra do verão, nos leve a pensar em viagens épicas no dorso de bicicletas e beijos em miúdas e alguém que partia um braço a fazer qualquer coisa estúpida como saltar do muro para a piscina.

 

Guardei a imagem da piscina para outros escritos. Mas havia mais um bicho a crescer dentro de mim, uma criatura que nasceu da observação do comportamento dos zombies da tecnologia – amigos que cruzam um almoço passando o dedinho na telinha do iPhone, as crianças que me foram apresentadas num jantar, mas que nem levantaram as carinhas robotizadas do jogo no iPad, o adolescente que, no elevador do meu prédio, fitava qualquer coisa no seu gadget prateado com o mesmo olhar de uma vaca com quem, há alguns anos, me cruzei nas planícies verdes da Dordogne.    

 

Consegui refrear, até agora, o crescimento desse bicho – sei que quer atingir a maioridade e ir por aí, decretando sentenças sobre o uso dos telemóveis, lamentando o impulso que nos leva a querer saber tudo a toda a hora sobre toda a gente, sobrecarregando-nos e poluindo-nos com informações tão dispensáveis como ruidosas. Turn it down a notch. Vão com calma. Tirem o dedo da telinha.  

 

Talvez tudo o que escrevi até aqui seja tão inconsistente como a longa desculpa do aluno, que não tendo feito os deveres, tenta adiar a previsível confissão: “Não fiz.” Talvez todo este engonhar, esta ladainha de empata-crónicas, este deixa ver onde isto vai dar, tenha sido apenas vergonha de dizer que, há semanas, há outra coisa a crescer dentro de mim, outra ideia, imagem e alegria.

 

Quando saio de casa para correr, de manhã, entro na rua que tem árvores e casinhas e duas escolas. É tão tranquila como se no campo. E ali estão as mães, dezenas delas, esperando as escolinhas abrirem, brincando e dando colo aos seus filhos de creche, todos vestidos com t-shirts e calções vermelhos, simpáticos e espantados com o mundo inteiro: com os cachorros, os insectos, as pessoas que eles não conhecem mas a quem dizem adeus. Tudo é novo e bom.

 

Hoje um dos rapazes dava festinhas numa menininha e ela retribuía – as mães encantadas, eu feliz por estar ali e ser de manhã cedo e ter o mar tão perto. Pensei se me acontecera o mesmo que a Stephen King: depois do atropelamento, o escritor chorou ao ver o filme Titanic, e questionou-se se alguma coisa no quartinho das emoções, lá no andar onde mora o cérebro, não teria sido afectada com o acidente.

 

Mas não bati com a cabeça em nenhum lugar nem tomo medicação. E se para me livrar desta criatura adocicada que acabou de sair cá para fora, escrevendo sobre a sua felicidade matinal diante do decorrer mundano e, no entanto, tão pungente, tão cintilante e leve, da vida normal dos outros, se para evitar a pieguice de falar, no futuro, do sorriso das crianças e das manhãs de verão, tenho mesmo de sacrificar esta crónica, então seja.  

 

Bem cedo, quando saio para correr e os termómetros ainda não alcançaram os 30 graus, passando naquela rua, vendo as mães e os seus filhos, percebo que sou muito mais piegas do que gostaria de ser. Resta-me o consolo que, para chegar a esta conclusão, não precisei de ser atropelado.

publicado por Hugo Gonçalves às 20:09
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Quarta-feira, 29 de Fevereiro de 2012

Me beija que sou escritor

Na quarta-feira de cinzas não se matam os modos exagerados nem há parcimónia. Na praça Santos Dumont, pai da aviação, os foliões do bloco “Me beija que sou cineasta” disparam para os céus com a música, a maconha, a temperatura a bater nos 30 e muitos, os sakolés chupados entre bisnagadas e beijos na boca a desconhecidos. Vi pelo menos um actor, que já fez de bandido, tripando na multidão – seus olhos faziam adivinhar o outro lado do espelho, onde as pessoas e as plantas e até o lixo eram muito mais bonitos. 

 

Mas nada que se compare com o grupo de amigos, homens e mulheres, que, todos os anos, vestidos de noiva, desfilam no bloco Boitatá sob o efeito de ácidos (ao pé disto saltos de pára-quedas são para meninos).

 

O “Me beija que sou cineasta” é um bloco de artistas e, já se sabe, essa gente gosta de explorar e experimentar. Não é Sodoma nem Gomorra, nem os beijos são tão vulgares como no carnaval de Salvador. Mas a galera é livre, bonitinha e procura emoções.

 

Como os artistas são adeptos do ócio, este bloco não desfila, fica sempre no mesmo lugar, o que transforma a praça numa festa a meio da tarde, ao ar livre, onde aquilo que muitos consideram exageros, são, para outros, uma expressão da sua natureza, uma celebração do belo, um palco para as coisas boas que a vida e o corpo nos oferecem – uma amiga disse que, passada uma semana a vestir fantasias, regressou ao seu guarda-roupa de sempre e percebeu o aborrecimento dos dias comuns.

 

Não era o Eyes Wide Shut. Mas eu tinha uma máscara e entrei num restaurante onde o empregado, português e solidário com o seu patrício, me abastecia e reabastecia de rum porque a cerveja de lata vendida na rua devia ser placebo.

 

Foi então que ela apareceu, brilhando como as princesas, morena e de lantejoulas douradas, cabelo longo, caminhando na minha direcção em fast forward. Vinha da fila do banheiro e, mais bélica que lasciva, trotou para mim. A minha educação e respeito pelas mulheres impede-me de usar as dimensões da princesa como efeito cómico, mas há coisas que têm graça, por isso que se dane a diplomacia entre sexos: ela era pesada, massiva, com ombros de nadadora. E ainda que, como Mandrake, eu ame todas as mulheres, não esperei que o meu primeiro beijo de sempre no Carnaval carioca fosse um atropelamento.

 

Voraz e sem dar-me tempo para dizer o que fosse, a princesa não acertou com a boca na boca, dando-me uma queixada e um encontrão que me fizeram cair, qual Kramer, sobre a mesa de comensais lambuzados de picanha e chope.

 

Quando me levantei, ela já não estava lá. Mas toda a sala olhava para mim e sorria.

 

Fiz uma pequena vénia para sacudir a vergonha e entrar na onda. O garçon português esperava-me com um rum. Sempre soube que os escritores perdem para os cineastas, os músicos e os Dj’s. Mas não passava ainda das duas tarde e a quarta-feira de cinzas parecia sábado de Carnaval. 

 

 

publicado por Hugo Gonçalves às 15:17
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Quarta-feira, 15 de Fevereiro de 2012

This is how it goes

dizem que a paixão o conheceu mas hoje vive escondido nuns óculos escuros

 

Al Berto

 

 

 

Ele tinha o coração arrancado da caixa torácica, que é muito pior para a saúde do que ter o coração partido. Ele tinha frio em casa – puta Europa e as suas frentes frias, uma cidade amarrada pelo vento, um apartamento apenas com um radiador que, numa noite de whisky solo em demasia, caíra sobre a carpete, iniciara um churrasco de ácaros, colapsara o electrodoméstico. Por isso, ele tinha frio, mas também tinha frio porque, com um buraco no peito e outro na carpete, estava mais susceptível a ser túnel para correntes de ar.

 

Ele não tinha coração e vestiu um sobretudo, calçou as luvas, saiu para a calçada escorregadia de uma cidade que parecia um banco de nevoeiro, aqui e ali um prédio ou um candeeiro público, o som dos bares e das casa de passe, talvez uma coxa com liga a assomar numa porta, apunhalando a nebulosidade que não parava de se instalar no buraco que ele tinha no peito.

 

Humidade. Ele era um homem cheio de humidade nos cantos e nos recantos, como a casa de uma velha junto ao mar.  

 

Passou perto do rio e as coisas pioraram. Por trás de neblina que tinha sabor de sal e diesel, ouviam-se marinheiros ao estalo com travestis nas ruas com caixotes do lixo tombados e traficantes providenciando droga marada.

 

Fazia tanto frio na cidade e atrás daquele sobretudo, fazia tanto frio que ele levantou o braço para um táxi, procurando o aquecimento e os estofos. Mas já se sabe que por vezes as coisas estão irremediavelmente fodidas e o taxista explicou que o aquecimento se escangalhara há duas horas. Por trás do sobretudo sentiu algo viscoso, não uma dor escorrendo mas uma falta.

    

Ele enfiou a mão dentro do sobretudo, atravessou o corpo, tocou nos estofos. Nada de nada e, no entanto, a rádio tocava When you’re smilling, por Louis Armstrong, The Majestic Years.

 

“Suck my cock”, disse ele para o Universo, numa língua que não era a sua mas que, por ser franca, chegaria aos ouvidos do Buda ou da Mãe Natureza ou do Jezzy Creezy ou de quem fosse responsável pela cena fodida do amor que arranca corações.

 

Ele entrou no aeroporto, comprou uma passagem, sentiu-se como uma mula colombiana de cocaína quando os seguranças pediram que tirasse o sobretudo. Apreenderam o isqueiro que ele trazia no bolso das calças, mas foram indiferentes ao buraco que estava no centro daquele homem que apertava o cinto nas calças, com dificuldade, tal e qual a criança que se debate com os cordões dos ténis.

 

Um espectáculo tão triste como a mulher que ele vira semanas antes, chorando dentro de um carro, no parque de estacionamento de um hospital. Mas ele já tinha a sua dor e, como diz a canção, a dor é minha, a dor não é de mais ninguém.

 

Quando aterrou noutro continente nevava e os táxis eram iguais aos táxis dos filmes. Primeiro caminhou pelas ruas ventosas, jornais voadores despenhavam-se na cara das pessoas, havia muitos homens a beber álcool em garrafas pequenas, enfiadas em sacos de papel, ao mesmo tempo que esfumaçavam beatas e anunciavam o apocalipse.

 

Ele entrou no bairro onde não se ouvia um carro. As árvores, tão brancas de neve, tinham sido copiadas de um livro de banda desenhada japonesa. Ele subiu os degraus e tocou à campainha.

 

Fazia menos frio dentro daquele apartamento. Ela não disse nada. Foi ao frigorífico, afastou os chocolates e o queijo light, tirou o embrulho de papel, algo que se traz de um talho, um pedaço de qualquer coisa. Depois entregou-lhe o embrulho e disse:

 

“Devias ter vindo buscar isto há mais tempo.”

 

Ele abriu o papel melado como se fosse uma bomba. Passara demasiado tempo com aquele buraco. Como seria ter outra vez um coração a bater no peito? Por mais que a pergunta lhe parecesse um título de romance para mulheres mal fornicadas, o seu cinismo não era capaz de vencer a necessidade de sobrevivência. Ele pegou no coração e meteu-o dentro de si, encaixou aurículos, sintonizou ventrículos, apertou-o várias vezes para que voltasse a bombar sangue e calor. Disse:

 

“Já está.”

 

E a cidade rebentou de luz como um fogo-de-artifício, em vez de neve as árvores eram mais verdes que uma selva tropical, havia cães na rua e as crianças andavam de triciclo, pais amavam os filhos e visitavam os progenitores em lares de terceira idade.

 

“Hoje será um bom dia”, disse ele.

 

“Isto está a ficar um pouco piegas”, disse ela.

 

E o coração dele falhou um batimento.

 

Ele abriu o sobretudo. A pulsão dela foi tão poderosa e veloz como a dentada de um bicho: arrancou-lhe o coração outra vez.

Ele saiu para a rua e sentou-se nos degraus. Estavam de volta a neve e o frio. Levantou as golas do sobretudo, pegou num cigarro e, com ele na boca, percebeu que não tinha lume. Ela apareceu na janela e atirou-lhe uma carteira de fósforos. Conseguiu acender o cigarro depois de cinco fósforos e olhou para cima, onde ela lhe dizia adeus.

 

Puxou o fumo e sentiu os pulmões substituindo os prazeres do coração.

 

Talvez regresse, em pouco tempo e com efeitos definitivos, para recuperar aquilo que é seu. 

 

 


publicado por Hugo Gonçalves às 15:21
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Sexta-feira, 10 de Fevereiro de 2012

Ora pois, bigodes femininos e outro lugares comuns

Não foi a primeira vez nem será a última que ser português no Brasil provoca reacções como “Ora pois, pá”, “Então e a terrinha?” ou apenas as piadas de sempre sobre as limitações do raciocínio lusitano. Sou paciente e compreensivo. Mas ontem, numa mesa da Academia da Cachaça, um publicitário brasileiro começou a conversa comigo dizendo: “Estive em Lisboa, não gostei muito.” Não sendo representante do Turismo de Portugal, tentei defender a minha cidade sabendo, como sei há muito, que todos temos as nossas razões e que cada um come do que gosta. Seguiu-se mais uma queixa: “Trabalhei com um português, ele era um pouco…”, e fez o gesto de meter as mãos junto da cabeça, perto do olhos (as palas dos burros?), e desenhou um caminho a direito, como quem diz, “incapaz de sair fora de um pensamento linear.” Também falou da falta de sentido de humor dos portugueses. Considerei a possibilidade de, em seguida, ouvir que a minha namorada tinha bigode e o meu pai era padeiro.

 

Depois de viver em vários países – melhor dizer cidades – percebi que há uma permanente comparação entre o lugar de onde vimos e o lugar onde estamos, uma espécie de confronto, de conflito, que também experimentamos, de maneira mais suave, num fim-de-semana prolongado em alguma capital estrangeira: “Isto é o Chiado cá do sítio”, “Estes gajos conduzem muito pior que nós”, “Em Portugal não há disto.” Talvez seja insegurança, talvez seja falta de pé, mas por mais viajado que seja um ser humano, desconfio que, em algum momento, vai ceder ao impulso das comparações, das generalizações e dos lugares comuns.

 

Eu já o fiz, claro, e ontem, diante daquele publicitário, o meu esforço para não ser essa pessoa foi inconsequente. Tentei perceber quão profundo era o conhecimento do meu interlocutor sobre Lisboa – nitidamente inferior ao meu conhecimento do Rio de Janeiro. Talvez essa bazófia tenha feito de mim pior pessoa e um companheiro de conversa menos interessante. Mas eu, tantas vezes crítico do meu país – dentro e fora de fronteiras – senti o meu pundonor lusitano manchado. Talvez isto me sirva de atenuante: o meu despeito não era tanto o espumar da boca de um skin head, o nacionalismo primário de achar que somos bons porque sim, era antes um desejo de verdade e uma hipótese de destruir todas as ideias feitas do meu interlocutor. Que se faça justiça.   

 

Disse-lhe que os portugueses podiam ser mais fechados que os brasileiros, menos abertos à mudança e à novidade, mas que não podiam ser acusados de falta de criatividade ou sentido de humor. Como pode ser linear e pouco criativo um povo que inventou instrumentos e técnicas de navegação marítima, que produziu poetas com múltiplas personalidades e que aplica amiúde a palavra “desenrascar”, vocábulo original e desconhecido em terras de Vera Cruz, ainda que aqui se tenha herdado um certo jeitinho para o desenrascanço.

 

Sobre o humor português, disse-lhe, mais altivo do que gostaria: “Então e Eça de Queirós?”

 

Ele insistiu, contando uma história que julgo ter ouvido antes na boca de outro brasileiro – por vezes torna-se difícil perceber o que é um episódio real e o que é uma piada que entrou no leque de histórias tidas como verdadeiras. Disse-me que um amigo brasileiro perguntara num restaurante, numa aldeia de Portugal, se fechavam ao domingo. O dono disse que não. Claro que o brasileiro foi lá no domingo e o restaurante estava fechado. Voltou dias mais tarde para descodificar o mal-entendido e perguntou: “O senhor disse que não fechava.”

E o português, supostamente de palas nos olhos, pisando a linha a direito, incapaz de pôr o cérebro a carburar fora da caixa, respondeu:

“Se ao domingo nem sequer abrimos como é que vamos fechar?”

 

O que eu não disse na altura – porque só me lembrei agora –, é que o episódio só favorece o português. A sua resposta não foi resultado de um pensamento rigidamente linear. Era mais: “Os brasucas andam a fazer piadas com a maneira como interpretamos as coisas? Então eu já trato disso." E quando o brasileiro lhe perguntou se fechavam ao domingo, ele pensou, “É já este. Vens cá bater com o lombo no domingo que até arrotas a presunto. E quando cá chegares ainda te presenteio como um belo e irrefutável exercício de lógica: Se ao domingo nem sequer abrimos como é que vamos fechar?”

 

The joke is on you, duderino.

 

O que eu, de facto, disse ontem à noite: que era injusto caracterizar todo um povo com base numa história como aquelas. Se assim fosse, os brasileiros seriam como a garçonete que bloqueou a moleirinha quando ouviu as palavras “vodka tónica”.

 

“Oi?”

 

“Vodka e água tônica” - mudei a fonética do “o” para sotaque brasuca, não fosse esse o motivo da interrogação.”

 

“Tem não.”

 

“Mas eu estou a ver ali uma garrafa no bar. Vodka tem” – o cardápio do restaurante oferecia uma longa lista de bebidas com vodka. “Não tem tônica, é isso?”

 

“Tem tônica, sim.”

 

Depois de mais alguns momentos de incompreensão mútua, a empregada foi lá dentro e regressou com um copo com gelo, um copo com vodka, um copo vazio e uma lata de água tónica.

 

Na semana seguinte aconteceu exactamente a mesma coisa, embora com outra garçonete.

 

É fácil generalizar a partir de episódios como este. E da mesma maneira que hoje recuso as generalizações sobre portugueses no Rio, muitas vezes em Lisboa iniciei discussões após ouvir as habituais queixas sobre os brasileiros: são todos bandidos, putas, vão-te enganar, não são teus amigos verdadeiros, é tudo superficial.”

 

Sim, é verdade que tento ser o cavaleiro da justiça entre povos, mas também é verdade que não sou ainda o homem, livre do jugo do orgulho, que gostaria de ser.

 

Reconheço agora que a história da vodka tónica foi uma pequena vingança contra o meu interlocutor e tudo o que desgosto no Rio. Confesso agora que, por mais que tente relativizar as diferenças entre países e culturas, por mais que recuse as generalizações, também eu sou vítima desse campeonato, mais ainda quando alguém começa a conversa comigo (acabáramos de ser apresentados), dizendo que os portugueses não eram a faca mais afiada do faqueiro – mais ou menos como receber alguém em casa pela primeira vez e dizer de entrada: a sua mãe é lerda da cuca e um bocado perra de ideias.

 

Tudo piorou quando ele disse: “Você pode passar trinta anos em Lisboa e nunca ser lisboeta, mas você mergulha nas águas de Ipanema e passa a ser carioca.”

 

Fosse isto uma série cómica e teria soado a buzina da resposta errada. Se há cidade que converte estrangeiros em seus, é Lisboa. E ainda que o jeito de ser carioca seja muito apelativo e fácil de aceitar, também tem um lado obscuro de desleixo, laxismo, uma desatenção pelo espaço urbano e pelo outro, um lado que não seduz de imediato todos os gringos que caem nas águas de Ipanema.  

 

Ontem, aconteceu comigo o que aconteceu, há dez anos, em Nova Iorque. Nessa noite, tinha um interlocutor americano crítico feroz de Portugal – muito mais feroz que o publicitário brasileiro. Durante a discussão, apontei o dedo a algumas coisas que me desagradavam nos Estados Unidos – estávamos na era Bush filho. O senhor perdeu as estribeiras. Como podia um estrangeiro criticar a nação que o recebera. Escusado será alongarmo-nos aqui sobre questões de liberdade de expressão num país que tem a liberdade de expressão entre os fundamentos da sua nacionalidade, que ainda faz bandeira disso, e que foi levantado do chão por emigrantes.

 

O que me interessou nessa noite em Nova Iorque foi erguer, por fim, a guarda e contra atacar, seguro que a minha capacidade crítica e de intervenção não tem nacionalidade nem poderá ter fronteiras.

 

Quando chegamos a um país estrangeiro, há um período de latência, uma certa vergonha, a incapacidade de falarmos de igual para igual. Não sabemos como funcionam as coisas, não temos a informação suficiente, mais ou menos como quando estamos diante de um médico ou de um técnico informático. Mas chega um momento – aquela noite em Nova Iorque, a noite de ontem no Rio – em que saímos das cordas, qual Muhammad Ali no Zaire, e percebemos que temos o direito e a obrigação de dizer “Alto e pára o baile”.

 

Sempre que me mudei para outra cidade foi por amor (e tesão) por essa mesma cidade. Nunca isso foi impedimento para ver o que estava errado e o que gostaria que fosse diferente. Nesse combate já caí, como ontem, na disputa mesquinha, nas comparações desnecessárias, nos ataques fundamentados em clichés e generalizações.

 

Mas ontem trataram Lisboa com desdém, e ainda que aceite tranquilamente que nem todos se enamorem da cidade, é melhor que mostrem um pouco de respeito. É que eu posso ser parte menino da Linha, parte nova-iorquino, parte madrileno, parte carioca ou mouro ou até de Ayamonte. Mas a parte no meio – o dentro mais dentro – sei-o agora, como nunca soube antes, é de Lisboa.

 

A guarda está outra vez em cima. Come out and let’s dance ou, por outras palavras, vai uma cabeça à Caixodré?

 

 

publicado por Hugo Gonçalves às 13:22
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Quarta-feira, 1 de Fevereiro de 2012

Casa

 

“Vê se vês terras de Espanha

areias de Portugal

olhar ceguinho de choro.”

 

 

para  Gonçalo Salgado

 

 

Não lhe chamemos visão que, de místico, isto não tem nada. Digamos antes que, na ribanceira do sono, me apareceu a memória de algum lugar onde já estive sem saber ao certo qual. Era uma rua de pedra, uma rua cor de terra como só há em Espanha, com luzes acesas nas casas, nos bares, nos corações da gente callejera que oferece cigarros e bebe e conversa até altas horas. Um desses lugares onde parávamos nas viagens pelo sul da Europa, comendo franguinhos assados numa pensão para poder beber cervejas em discotecas da moda. Por exemplo, o fiasco de um final de ano em Cáceres, com baratas a subir as paredes de um bar – Faunos – que rapidamente se revelou um prostíbulo da subcave do bas-fond, o que levou um dos nossos amigos a disparar porta fora receando as investidas de uma marroquina que, até hoje, suspeitamos chamar-se Muhammad ou mesmo José Luís. E aquela estação de comboios onde se comiam churros a desoras, o portuga da malandragem que nos serviu de guia e que, soube-o anos mais tarde, montou um negócio de sites porno. E a erva de produção caseira, transportada numa lata de Herbalife, quando eu ainda não fumava – soubesse o que sei hoje e esses dias em Cáceres teriam sido muito mais doces, mais de fumo e risota imparável.

 

Esta semana falámos, por email, e quando tu devias ir deitar os teus filhos e eu devia estar a cozinhar os bifes de frango, estávamos antes a trocar emails disparatados exactamente como quem troca piadinhas na aula de Biologia da Dina – numa dessas aulas, com a barriga em desarranjo, fui duas vezes à casa de banho para, no regresso, ouvir o coro: “Cagão, cagão”. Tenho a certeza que também gritaste. Eu teria feito o mesmo.

 

Nesses emails falámos de trabalho mas logo te puseste a dizer que tinhas um treinador igual para cada um dos nossos amigos – e até foste buscar o Marinho Peres ao fundo do baú.

 

O que ter quero dizer é isto: esqueci-me, durante muitos anos, o que era uma casa. Sabes que andei por aí, de cidade em cidade, de pessoa em pessoa, dizendo que a minha vida cabia em duas malas de viagem, um slogan de t-shirt que achava tão dogmático como acessório para conversas de engate. Talvez seja da idade, talvez seja o segundo acto disto que andamos para aqui a fazer, talvez tenha sido o inferno de alugar um apartamento no Rio, quatro meses e cinco casas depois, um nomadismo que me traumatizou, fui enganado, enrolado, fiquei especado, perdi, preyboy.

 

Mas exactamente no dia do teu aniversário, entro por fim na casa onde viverei, espero, por uma longa temporada. É um dia importante para mim, o céu amanheceu tão azul que uma nuvem se dissolveria caso arriscasse aparecer no horizonte. Uma daquelas manhãs em que sabemos que tudo rolará impecavelmente, manhãs com o mesmo aroma das manhãs de praia quando éramos crianças e a maré baixa era campo de futebol, cenário de guerra de areia, território de piscinas. Numa manhã destas sabe bem ter uma casa, ser parte de um bairro, falar com o vizinho quando vamos ao pão, como aconteceu há umas horas, assim que pus o pé na rua e me lembrei que era o teu aniversário.

 

Nessa viagem matinal pensei em ti e soube, já o sei há algum tempo, que ter uma casa me fazia falta. E não falo apenas do apartamento na Gávea que, espero, visitarás e onde repetiremos as mesmas histórias de sempre – os estaladões do professor de francês Sales Gomes, o capotanço de tequila  algures no Algarve, as desventuras do Guilherme Pancadas, do Fernando Jabum, do senhor Herculano que tomava conta dos balneários e transpirava bagaço.

 

Não falo apenas do meu apartamento. Falo de todas essas coisas, das conversas sobre o Marinho Peres às cenas de pancadaria com forcados de Santarém, mas também aquilo que, ao longo dos anos, por orgulho macho ou apenas porque sim, não foi preciso dizer.

 

É nas tais ruas de Espanha que cruzámos vezes sem conta de copo na mão e a esperança de algo extraordinário, no pelado do Vale de Santa Rita onde as tuas qualidades de central incluíam golos em cantos e pontapés de canela, nos reencontros em que a parvoíce é o veículo de comunicação mais usado, nas recordações do senhor António da mercearia, que conduzia de cabeça à banda, do senhor Henrique, que nos treinou com a famosa táctica do fole, do setôr Bagaço, que mandou a turma inteira para a rua, é em tudo isso que também se encontra agora alicerçada a minha casa.

 

Talvez tenha sido necessário ter viajado milhares de quilómetros, durante anos, para perceber a importância de um porto de abrigo. Tu já o sabias muito antes de mim.

 

Parabéns, com cadeiras pelo ar e gajos pendurados nos candeeiros.

publicado por Hugo Gonçalves às 12:46
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