Sem grandes demoras, porque o problema é sério e requer medidas urgentes, vamos desde já ao que interessa. Há um novo iPhone no mercado. Obviamente, você quer ter um. Precisa por isso de um bom argumentário para justificar aos outros e a si mesmo a troca do iPhone 4 pelo novo 4S. Vou tentar ajudá-lo.
Primeiro que tudo, falemos dos argumentos a evitar.
1. O design.
Evite dizer que a apple o conquistou pela forma. Até um cego vê que o 4S e o iPhone 4 são praticamente iguais (e você é proprietário do segundo). Não vai parecer mais inteligente ou justificar a sua compra porque se apercebeu de diferenças nos ângulos e nas arestas do objecto. Qualquer tentativa de justificar a compra do 4S através do design será motivo de chacota pela certa, tanto de leigos como de designers.
2. As componentes de hardware.
Vamos aos factos: você não percebe puto de hardware. Se é verdade que, nesse aspecto, é acompanhado pela esmagadora maioria da população, não é menos certo que as novidades do 4S no que concerne o hardware não lhe permitem fazer nada que já não fizesse. Enumeremos as suas actividades diárias no iPhone 4, por ordem de importância: ver mails, enviar SMS, ir ao facebook, tirar fotos, jogar Angry Birds, publicar fotos, comentar fotos, gravar vídeos sem interesse, consultar a temperatura do ar, jogar Zynga Poker, ir ao maps sem um objectivo concreto, instalar apps porque sim, e finalmente telefonar a alguém. Caso não saiba, tudo isto já era mais ou menos possível no velhinho iPhone 3G. Assim sendo, evite falar do novo processador A5 ou da nova câmara de 8 megapixeis. Se tiver mesmo que o fazer, assegure que não há nenhum entendido a ouvir. Antecipe o rumo natural da conversa, que é ter de se justificar, e crie pequenas manobras de diversão como explicar a origem do nome Dual Core, quantas pessoas assistiram ao keynote, ou o nome dos fornecedores das lentes ou dos ecrãs utilizados pela Apple. Se algum espertalhão falar nos suicídios em série na Foxconn, a empresa que fabrica todos os produtos da Apple, trate isso com o mesmo cepticismo com que reagiu da primeira e única vez que viu o Zeitgeist no Youtube. É que francamente. Não há pachorra para estas teorias da conspiração.
3. A autonomia da bateria
Pelo amor da santa: não seja tenrinho. A Apple teve a fina ironia de anunciar que a bateria do novo 4S dura mais 1 hora em conversação do que a versão anterior (ATIREM OS FOGUETES!), e menos 100, repito, menos 100 horas do que o iPhone 4 em modo de stand-by (ESQUEÇAM OS FOGUETES). Portanto, se já é falso que o iPhone 4 dura 7 horas em conversação e 300 horas em stand-by, o panorama não parece muito auspicioso para o novo 4S. Enfim, se o tema tiver mesmo que vir à baila, reaja com aquele misto de serenidade e resignação que caracteriza qualquer utilizador de iPhone – sempre que alguém fala no raio da bateria.
4. “É o melhor iPhone até hoje”
Aqui já estamos a entrar no domínio do patético. Se você justificar a compra do novo 4S com frases proferidas por Tim Cook no keynote, então é um fanboy sem salvação. Não tarda nada estará a dizer algo como “o que está no interior é que conta” e a ser muito justamente gozado por toda a gente.
E agora os argumentos a favor de uma troca imediata do iPhone 4 pelo 4S. Não são muitos, mas são de boa vontade.
1. O interface de voz
Chama-se Siri, é um novo interface de voz, e pode muito bem vir a revolucionar o modo como você se relaciona com o seu iPhone. Viu o que eu fiz? Acabei de o colocar na vanguarda da tecnologia, a si e ao seu novo smartphone. Fazer parte do futuro é um argumento válido na medida em que você for capaz de lhe dar algum substrato funcional, no caso, identificar meia dúzia de coisas que pode passar a fazer de forma mais espectacular (vulgo funcional) com este interface de voz. O vídeo que aparece no início do post é bastante útil nesse sentido: pode perguntar o que quiser e o Siri responde. A malta jovem vai dizer que é brutal. Você vai dizer que lhe daria um jeitaço poder fazer aquelas coisas sem mexer no keypad. Se alguém vier com a lenga-lenga (bastante legítima) de que estas coisas nem sempre funcionam bem e são difíceis de configurar, devolva a crítica com uma ou duas notícias acerca de testes muitos positivos efectuados por alguns dos bloggers que já têm um 4S nas mãos. Ah, mais uma coisa: o Siri só está disponível no 4S. Isto vai desarmar qualquer um.
2. Notification center
Esta é de caras uma das coisas mais interessantes que a Apple apresenta no iOS 5, o novo sistema operativo. É um gestor/visualizador de algumas das funções prioritárias do seu smartphone que, acredite, vai mesmo dar muito jeito. Como é que eu já sei isto? Simples. Havia uma aplicação praticamente igual no Cydia, aquele repositório para a malta que fez jailbreak ao seu iPhone. Se quiser dar um cunho mais ético-filosófico ao seu argumento, detenha-se neste ponto e fale de como o novo notification center é, no fundo, a Apple a reconhecer o contributo da comunidade jailbreak – e de como isso é bonito nestes tempos conturbados que vivemos.
3. A iCloud
Você até já tinha ouvido falar desta história da cloud mas ainda não sabia o que era. Agora já sabe: é uma das coisas que o novo iPhone faz. Não que precise de saber mais, mas cá vai: a iCloud sincroniza os seus contactos, músicas, aplicações, fotos e muitas outras coisas entre dispositivos, ou seja, todo o conteúdo que lhe pertence encontra-se armazenado, protegido e prontamente acessível em qualquer um dos seus iPhones ou iPads. Imagine que deixou o seu novo 4S na sala e está no quarto a brincar com o iPad. Tudo o que tiver sincronizado com a nuvem a partir do seu iPhone estará igualmente disponível no seu iPad. É um mundo de possibilidades que se abre aqui, ao mesmo tempo que se resolvem questões de segurança e capacidade de armazenamento de dados – pelo menos é isso que dirá a toda a gente.
4. iOS 5
O novo sistema operativo da Apple apresenta 200 novas funcionalidades. Porque é que você vai trocar o iPhone 4 pelo 4S? Com 200 novas funcionalidades, só não vê quem não quer. Mas não se deixe galvanizar demasiado pelas duas centenas de novas razões para trocar de telefone: é que, no dia 12 de Outubro, o iPhone 4 também poderá fazer o upgrade para iOS 5, e toda a gente acabará por ser informada disso via iTunes. Nesta altura, porém, vai poder exercer a sua nova forma de superioridade A5 Dual Core com câmara de 8 megapixels e dizer coisas como a) “pois, este é mais rápido a fazer isso”, b) “sempre fui early adopter de produtos apple”, c) “bem, as fotos são mesmo super nítidas” ou d) “a sério? estranho, aqui funciona bem”. Você rejubila e a Apple agradece.
Texto publicado igualmente no Contentissimo, blog de tecnologices do autor.
Acabadinho de me sentar, esperava pelo início do filme Bridesmaids, uma daquelas comédias americanas que levam 3 estrelas do Jorge Mourinha e hífens ou bolinhas dos restantes. Hífen, na escala de crítico de cinema, significa “não vi, não quero ver e tenho nojo de quem viu”. Uma bolinha não preenchida significa que o crítico vomitou na sala de cinema e teve que ser assistido por enfermeiros. A bolinha preta significa que o crítico morreu na sequência do visionamento. Dependendo do círculo social a que se pertence, a reacção a estas pontuações varia geralmente entre “mais uma comédia juvenil... mas o novo kiarostami nem vê-lo!” e “eu quero é que o mário jorge torres se foda.” Eu, admirador confesso da sétima arte, pertenço a este último grupo, apesar de não ter nada de pessoal contra Mário Jorge Torres. Onde lêem Mário Jorge Torres, podem ler Leitão de Barros, Vasco Baptista Marques ou Nuno Carvalho. É tudo boa gente.
Mas ainda não perdi a esperança. Se Deus quiser, há-de chegar lá pra 2020, o ciclo Judd Apatow na Cinemateca - Deus assim o permita, apresentado por um destes caramelos. Nesse dia, o crítico terá o seu momento de redenção, explicando, pleno de historicização e o caralho, que demorou algum tempo a compreender a profunda humanidade das comédias de Apatow, ou o modo como o slapstick de Buster Keaton se cruza com referências de uma transmodernidade fulcral para se compreender tudo o que veio depois (incluindo a sua mudança de opinião).
E, no entanto, quando tudo indicava que poderia vir a ser processado por um dos gajos referidos nos parágrafos acima, eis-me novamente sentado na cadeira, à espera do Bridesmaids, pronto para dar umas 3 estrelas sem ainda ter visto o filme. Mas atenção que isto de ir ao cinema tem muito que se lhe diga. É muito mais do que as pipocas, gajos a rirem-se fora de tempo, e filmes. É uma nova arte, que consiste em bombardear o espectador com aquilo que está mais à mão. Não são as pipocas, não. São os conteúdos! Alguém deve ter realizado um focus group em que se conclui que 71% dos espectadores de cinema não se importam de levar com 20 minutos de merda antes do início do filme. E por causa dessa brilhante conclusão, cinema que é cinema em Portugal, hoje em dia, não começa sem 2 lições de vida e um espectáculo de revista:
Lição de vida 1 - um anúncio de um operador de comunicações móveis em que este nos explica, numa longa sequência de imagens, que a vida é feita de seres humanos, amizades, caminhadas ao pôr do sol, dias de praia, surfistas em convívio, pleno emprego, separações, ataques de choro com óptima direcção de fotografia, lutas de comida gourmet, discotecas onde só estão pessoas bonitas, uma política fiscal justa, e alguém a receber um mms de um amigo que acabou de chegar à festa onde essa pessoa já queria estar, mas não está porque ainda está noutro sítio a receber um mms de alguém que já lá chegou.
Lição de vida 2 – um anúncio de um fabricante de cerveja exactamente igual, mas neste caso termina com alguém a ser recebido por 3 ou 4 amigos e a brindar à vida, numa celebração que, se acontecesse realmente naqueles moldes, fosse em que lugar fosse, faria de nós, um ajuntamento espontâneo de palhaços (os ingleses usam o termo douchebag com elevada taxa de aceitação). Neste caso, os danos à saúde mental do espectador são controlados pelo finíssimo critério de uma agência de figuração.
Espectáculo de revista – esta é a minha nova parte favorita de ir ao cinema, excluindo a reutilização do bilhete no El Corte Inglés e as partes em que estou mesmo a ver filmes. Então, são uns vídeos das Produções Fictícias em que, à vez, o Manuel Marques ou o Luís Franco-Bastos nos oferecem pérolas da comédia capazes, estas sim, de matar não apenas o crítico de cinema como qualquer outro membro do público com um cérebro a funcionar. O Manuel Marques utiliza os mesmos trejeitos de outras 20 personagens da sua já longa carreira, mas aqui interpreta um pica-bilhetes demasiado zeloso. É um espectáculo deprimente e faz com que aqueles 3 minutos me deixem tentado a escrever que foram 7, quando na verdade pareceram 20. Quanto a Luís Franco-Bastos, é um rapaz de 20 anos que faz imitações. Ainda há solução para ele. Eu podia dizer que esperava melhor de ambos, mas ao mesmo tempo achei que devia dizer a verdade.
E pronto, foi isto que fiz no Verão. Espero que as vossas férias também tenham sido boas.
Errata: Soube entretanto que o Jorge Mourinha saiu a meio do visionamento. O mundo está realmente perdido.
Jerry Seinfeld disse em tempos que para se ser taxista em Nova Iorque bastava ter uma cara e um nome com 3 consoantes seguidas. Passa-se o mesmo com o exercício de opinião. Hoje em dia, uma conta numa rede social chega. Dá-se inclusivamente o caso, ainda mais curioso, de o sujeito não ter uma opinião, mas transmiti-la na mesma, dando mundos ao mundo enquanto se sujeita ao apertado escrutínio da comunidade. De Barack Obama a Samuel Massas, passando por António José Seguro, todos partilham uma certeza: esse adágio do “penso, logo existo” é um disparate. Existe quem está na rede, de preferência a fazer um figurão.
Ban Ki Moon, secretário geral das Nações Unidas, foi nesta cantilena e diz que é preciso dar espaço à “geração facebook”. Primeiro, é de notar que, pela primeira vez na história das declarações infelizes, alguém me associa a um grupo de pessoas que inclui a minha mãe, os organizadores daquela manifestação contra cenas em Março, e o Hélio Imaginário. Ban Ki Moon foi parco em explicações, o que por um lado é chato, porque adoro ouvir sul-coreanos a falar inglês, mas é também positivo, porque me permite interpretar a sua declaração como bem entender.
Ponto um: é necessário dizer que sim, a minha mãe parece muito mais nova do que é, mas já tem idade para ter juízo. Há um abismo geracional entre nós; prova disso é o facto dela gostar verdadeiramente do Demis Roussos e eu apenas gostar ironicamente, preferindo antes os sábios ensinamentos de um Morrissey. Por outras palavras: a minha mãe pertence a uma geração essencialmente feliz, ao passo que eu pertenço a uma geração que cultiva a infelicidade, ou desassossego, se quisermos soar mais complexos quanto ao facto de estarmos fodidos com a vida. Demis Roussos, 1 – Morrissey, 0.
Depois, há os manifestantes de 12 de Março, pessoas que simbolizam o novo empreendedorismo português, e das quais não me poderia sentir
mais distante, tanto no que diz respeito à ideologia como à dificuldade em explicar essa mesma ideologia, se alguém me perguntar. Quem me conhece sabe bem que pertenço a uma outra leva de indivíduos, pessoas também na casa dos vintes e trintas disponíveis, isso sim, para substituir os mais velhos na função de responsável por-esta-merda-continuar-como-está. Enquanto o país não andar para a frente, estou eu a progredir. Processem-me.
Por último, Hélio Imaginário, um ajudante de cozinheiro anafado que caiu a andar de skate. Segundo a imprensa especializada em notícias com um piadão dos diabos, sensivelmente toda, a resposta das Caldas da Rainha a Johnny Knoxville já é o vídeo português mais visto de sempre. A coisa, para quem ainda não viu (e respira), retrata de forma ímpar os últimos 35 anos da história económica e política portuguesa, até ao mundo globalizado de hoje (ver sodomia e saudade na Wikipedia). Uma estrada inutilizada, provavelmente paga com fundos da UE, e um tipo com demasiada bazófia e uma duvidosa ausência de temor, vulgo esperança/optimismo, espeta-se ao comprido num terreno propício à exploração agrícola, uma técnica de subsistência popular no século passado. Ban Ki Moon sabia, afinal, do que falava, e eu seria doido e imprevisível se não terminasse este texto com um absoluto e sonoro “SOMOS TODOS O HÉLIO.”
Não sei quantas canções de amor foram explicitamente dedicadas a cães, mas hoje, por motivos tristes, lembrei-me de uma. Ainda me recordo de ouvir a letra pela primeira vez – há mais de 10 anos atrás, era eu um puto estúpido – e de ir acompanhando verso a verso. A minha primeira impressão – “there’s something with the way you walk / there’s something there that sparks” foi de que o autor estava claramente apaixonado, e que seria porreiro imitar o ímpeto adolescente e dedicar isto a uma miúda. Pouco depois, dei por mim perplexo quando o vocalista diz “you sit by me and i scratch your back”. Podia tratar-se de alguma expressão idiomática do foro amoroso, não fosse o verso seguinte “you lick my hands / then i get a rash, but that’s ok”. Ou se tratava de um fetiche bizarro, ou de uma declaração de amor a um animal. Logo a seguir, a letra parece regressar a uma definição de amor entre humanos - “because we, we are a team / you make a mess and then i clean” - mas, meia dúzia de versos depois, as piores suspeitas confirmam-se: “there’s something with the way you act / makes me laugh when you chase the cats”. Então o gajo está a falar sobre um cão.
Depressa abandonei a ideia de dedicar a canção a uma miúda; também nunca tive um cão. E é aqui que suspendo todo o meu cinismo (na verdade já o tinha suspendido ao escolher este tema para uma crónica). Não vos sei dizer como é a relação com um canídeo, mas, pela tristeza que vi hoje nos olhos de quem o conhecia, pelas histórias que os mesmos olhos me foram contando, e pelo lugar incontornável que essas histórias ocupam da vida das pessoas, sei que andava algures entre a recuperação diária da infância e um verdadeiro amigo que se tem. E esta cantiga absolutamente esquecida e irrelevante, que não ouvia há 11 anos, da qual não sei bem como me lembrei hoje, a cantiga que jamais consegui dedicar a uma miúda, segue hoje finalmente com uma destinatária.
Como é habitual quando tenho que escrever qualquer coisa e antes escolher um tema, passei os últimos minutos a olhar para um ponto qualquer aqui em casa na esperança de encontrar assunto. Hoje, o alvo da minha atenção foi uma prateleira cheia de livros que li ou planeio ler. Os temas são os mais variados. Vejo ali o Alain de Botton estacionado ao lado do Roberto Bolaño, que por sua vez divide poeira com o Andrew Ross Sorkin e o G.K. Chesterton. Consigo explicar-vos como é que estes gajos vieram todos aqui parar (basicamente influência deste ou daquele tipo que aparenta saber mais do que eu, e são muitos, quase todos), mas não vos sei dizer o que é que estes livros acrescentaram à minha vida, para além de encherem as prateleiras cá de casa. Podem ter-me ajudado a raciocinar durante uns minutos, talvez a escrever um pouco melhor, mas nenhum deles me deu mais do que algumas horas de entretenimento e muitos momentos de tédio enquanto o respectivo autor não chegava a um corolário qualquer. Não trouxe de lá nada a não ser a consciência de que pouco ou nada absorvo, mesmo tendo acesso privilegiado a muita coisa (por comparação, por exemplo, com um labrego qualquer que não sabe que o é). Nem grande distracção, nem apaziguamento. Geralmente, chego ao fim com a certeza de que não percebi o objectivo do autor, a não ser num parágrafo ou noutro, mas percebi desde cedo que ler aquilo não ia mudar nada em mim ou no mundo. É assim com quase tudo.
A coisa mais relevante que retirei do livro do Alain de Botton sobre o Proust foi o comprimento de uma frase do gajo, um apontamento que já usei vezes demais em conversas mundanas. O Bolaño demora 10 páginas a dizer alguma coisa memorável. Quando chego ao fim de um desses sprints, ainda tento fingir que percebi o que ele estava a fazer com todos os seus recursos literários, como se também eu fosse escritor e só pessoas como eu pudessem perceber realmente o que está ali em causa. Não sou, e não percebi. Mais uma vez, acabo por assumir que dali não levo grande coisa a não ser um “ok, então era isto que querias dizer. próximo capítulo. falta muito para chegarmos?”. Foi assim com o Detectives Selvagens, e posso dizer que regressei da América Latina igualzinho a mim mesmo.
O Andrew Ross Sorkin explicou-me o que uma cambada de pulhas bem colocados em Wall Street andou a fazer durante décadas, mas, e depois? Um gajo fica com a sensação de que sabe um bocadinho mais do que os outros sobre aquela merda, mas não se lembra de metade das coisas que leu e vai continuar a não saber explicar à malta do café o que são credit default swaps. O Chesterton diz coisas muito bonitas sobre a religião e a loucura, mas às tantas um gajo está a ler aquilo e a pensar que aquela merda, ao nível dos valores, é uma espécie de língua morta. Não trouxe de lá uma única ideia que me ajude a não insultar taxistas no trânsito, e não há-de ser por causa dele que volto a entrar numa igreja. Vou responder ao Chesterton como se fosse um amigo: meu, podes ser bué citável, mas ainda não foi desta. Como dizia o Burrell, "It's Baltmore, gentlemen, the Gods will not save you." Não pensem que acabei me contradizer com esta citação saída do The Wire, uma série sobre pretos altamente sobrevalorizada porque, pronto, tem uma consciência social e por isso justifica a nossa visão pretensamente justa das coisas, quer acreditemos na espécie humana ou achemos que o ser humano é uma merda. Não se enganem, dizia eu, porque acabei de desencantar a tirada no meu newsfeed do Facebook. Não fazia ideia de que o Burrell tinha dito esta merda e na altura em que vi a série não achei que fosse assim tão importante. No entanto, nesta era do conhecimento pronto a exibir, achei que vinha mesmo a calhar. Chesterton e The Wire num só parágrafo. Qualquer dia sou o Rogério Casanova.
Faço 30 anos daqui a 1 mês e ainda não percebi o que é que andamos todos aqui a fazer, a não ser por via das coisas imediatas e da satisfação que estas nos dão. Cada vez tenho menos capacidade para atentar nos problemas da vida que precisam de um diagnóstico aturado, de uma estratégia planificada ou de uma resolução gradual. De um interesse duradouro, em suma. De profunda reflexão - cruzes credo. A não ser que me paguem para isso. De resto, bardamerda. Faz mais sentido para mim que um gajo assuma que o grande objectivo da sua vida é beber um café e fumar um cigarro todos os dias ao acordar, até ao fim dos seus dias, do que um gajo acreditar que será por via de estímulos mais difíceis de digerir do que uma dieta à base de cozido à portuguesa que vai sentir-se completo e verdadeiramente são. A não ser que convivamos diariamente com pessoas que procuram a sua validação na estratosfera das relações, e aí é obrigatório uma pessoa acompanhar. O que dá um trabalho do caraças, se, como eu, não se for capaz de procurar muito mais do que entretenimento, coisas imediatas, sinais efémeros que mantenham um gajo ligado ao mundo, mas que não impliquem uma gigantesca reflexão sobre o Grande Rumo das Coisas ou, pior ainda, sobre nós mesmos. Um indivíduo não se supera por isso. Aliás, um indivíduo não se supera a não ser que viva obsessivamente para um só objectivo. Não tendo a obsessão nem o objectivo, as coisas tornam-se muito mais fáceis e, como diria o Alain de Botton de uma forma mais literata e por isso credível, um gajo passa a fazer aquilo a que no mundo da auto-ajuda se chama “visualizar o resultado". Os problemas passam a resolver-se: a) em meia hora, com uma ida ao Pingo Doce, b) em uma noite, regada rumo ao êxtase, c) em uma semana, passada de papo para o ar em Punta Cana, ou, d) em um ano, com uma doença filha da puta que conseguimos fintar. Pode ser que me engane, mas acho que isto vai ser assim até ao fim.
Luís Filipe Vieira - Um presidente com mais promessas falhadas do que eu tem que ser tido como responsável por mais uma temporada desastrosa. Era giro se o Benfica um dia conseguisse ter um presidente que soubesse quando devia estar calado e tivesse menos ar de malfeitor e/ou gajo essencialmente manhoso.
Jorge Jesus - Um treinador sem a mais pálida noção de como virar um resultado, sempre disponível para receber os louros nos dias bons, entra em modo de negação sempre que as coisas correm mal. Masca pastilha elástica de boca aberta e é analfabeto. Cansativo mas ao mesmo tempo enternecedor, como quase todos os portugueses.
Rui Costa - Há já alguns anos em formação on job, o ex-maestro ainda não parece ter estofo para desempenhar o cargo. Apesar de tudo, as melhores contratações do Benfica foram suas e não do catedrático da bola. Dou-lhe mais 6 meses a recibos verdes, sem revisão salarial após o torneio do Guadiana.
Cardozo - Ponta de lança de créditos firmados cuja expressão facial parece indiciar um problema algures entre a depressão crónica e o mongolismo. Aos 28 anos de idade, já sabe que o seu pé direito lhe permite andar e, em raras ocasiões, correr. Falta alguém explicar-lhe que aquela merda também serve para marcar golos. Vendam-no àqueles russos que iam salvar o Sporting.
César Peixoto - Um gajo que ao longo dos últimos anos se deitou todas as noites ao lado da Diana Chaves ou da Isabel Figueira e que nem assim conseguiu encontrar o ânimo e o talento necessários para vestir a camisola do maior clube do mundo. Não sei mesmo o que dizer. Rua com ele.
Luís Filipe - Tinha tudo para ser um falhanço, mas o destino resolveu bafejá-lo com a sorte de dois contratos de trabalho pagos a peso de ouro, primeiro no Sporting, agora na Luz. Mais de dez anos volvidos sobre o início da carreira como futebolista profissional e o único gesto técnico que domina é o lançamento de linha lateral. Poderá servir os interesses de algum clube cipriota.
Felipe Menezes - As farmacêuticas deviam pensar em explorar um novo princípio activo: a felipemenezulida, ideal para quem sofre de insónia crónica. Efeitos garantidos ao fim de 10 minutos. Não misturar com minis, licor beirão ou qualquer outra bebida de tasco com sport tv, podendo provocar estados de frustração e irritação.
Alan Kardec - O novo Jardel parece o velho Martin Pringle. A despachar assim que começar um campeonato estadual no Brasil. Agradece a Deus de cada vez que marca um golo. Espero que também agradeça de cada vez que recebe um salário de futebolista europeu.
Roberto - Protagonista daquela que é a mãe de todas as improbabilidades estatísticas: 3 derrotas nas 4 primeiras jornadas do campeonato. Uma espécie de trade-off ao contrário: por cada defesa impossível, comete pelo menos 3 erros que dão vontade de chamar nomes à mãe dele. O valor do seu passe é um bocadinho como as acções da SAD: começou cotado a 8 milhões e meio e já vale menos de metade, registando ligeiras variações positivas quando não faz merda. Alguém que monte um DVD com as boas defesas que fez, a ver se recuperamos qualquer coisinha.
Fábio Coentrão - Culpado de não ter pedido aos pais para lhe darem mais irmãos. Tivéssemos mais dez iguais a ele e talvez não nos sentíssemos tão perdedores na derrota.
A história que se segue é um exercício em racismo social, por isso, se acreditam num mundo melhor, na tendência natural do ser humano para praticar o bem ou em outras bacoradas existenciais do género, escusam de ler. Adiante.
"But his soul was mad. Being alone in the wilderness, it had looked within itself and, by heavens I tell you, it had gone mad."
Joseph Conrad, Heart of Darkness
Uma infecção no ouvido levou-me no outro dia ao coração das trevas (do atendimento ao público). Se Joseph Conrad algum dia tivesse dado por si nas urgências do S. José, acho que reescreveria o romance de uma ponta à outra. Não me obriguem agora a pensar muito, mas imaginem que o Kurtz dava entrada nas urgências com uma intoxicação alimentar e quando o Marlow lá chegava, isto depois de uma xaropada de páginas a descrever o estacionamento em segunda fila na Almirante Reis, os pretos do Intendente and whatnot, encontrava o Kurtz numa cama em pleno corredor, por via de paludismo contraído enquanto esperava por uma consulta. O resto inventam vocês, não me pagam para isto.
Para quem não sabe, o serviço de urgências do S. José é uma das mais conhecidas ETHR (Estação de Tratamento de Humanos Residuais) da cidade. Há outras na área metropolitana de Lisboa, e mais podia ser dito sobre o conceito, mas é como vos digo, o objectivo aqui é escrever textos não muito longos e fazê-lo de borla, por isso, se querem mais, façam de conta que isto é o New York Times e arrotem qualquer coisinha.
Para começar a experiência, fui atendido por um gajo sem farda, todo cheio de tiques urbanitas. Perdoem-me os leitores por eu não ser holandês ou o caralho, mas ser atendido na chegada a uma urgência por alguém que se vestiu como se estudasse design de moda no IADE não é uma merda que me caia bem. A pessoa que nos recebe no hospital, quando temos 38 de febre e uma otite, não devia ter um corte de cabelo no valor de 7 taxas moderadoras. Correu melhor do que esperava, na medida em que foi rápido, indolor e que, se Deus quiser, nunca mais o volto a ver.
Seguiu-se a triagem, “inspirada no modelo de Manchester”. Isto é uma daquelas alturas em que o meu cérebro pensa simplesmente “LOL!” (tenho 29 anos, nenhuma ambição de ser lido daqui a um século, e cresci a usar o mirc). A triagem de Manchester é uma invenção curiosa na medida em que parece ter sido descoberta em Portugal: lixa o esquema aos que são honestos e premeia os chicos-espertos. A coisa passa-se assim: se o paciente chegar lá e disser a verdade sem dramatizar, pior, se o fizer em português escorreito, estilo “sinto dores no ouvido e padeço de uma febre ligeira”, recebe uma pulseirinha verde, que é a melhor forma que a instituição de saúde tem de nos dizer “agora esperas aí sentadinho umas horas que é pra não seres flor de estufa”. Isto foi o que me aconteceu. Por outro lado, se um gajo chegar lá e disser que tem 39 graus de febre e não consegue encostar o queixo ao peito, epá, pára tudo, dêem uma pulseirinha laranja a este fulano que ele vai morrer! Esta é a forma que o hospital tem de dizer que o nosso caso é importante, o que não significa que sobrevivamos. Como isto não é um episódio de Grey’s Anatomy, vamos esperar umas horas na mesma (entretanto há mais 50 gajos com sintomas de meningite ou gripe A). Quando chegar a nossa vez, também não vamos ser atendidos por uma neurocirurgiã charmosa, nem mesmo por uma chinesa com sentido de humor, mas sim por um calhau qualquer, cujo ar empedernido deve ser atribuído à vida miserável que os salários no público e no privado lhe proporcionam. Portanto, foi este o doutor que me calhou em sorte. Nem a Grey, nem a chinesa: um calhau falante.
Mandou-me fazer análises ao sangue como quem faz um favor, e voltar para a sala de espera. Lá fui, todo eu pulseirinha verde de resignação. Ocupei um lugar na sala de espera, onde pelo menos 3 pessoas esperavam agora pela sua consulta deitadas, duas em cadeiras e uma no chão, mostrando de forma cabal a diferença entre estar doente e ser-se doente. Alguns minutos passam e a impaciência aumenta, mas eis que alguém do lado de lá parece pronto para chamar o próximo. Depois de alguns segundos de feedback em que não percebemos se as pessoas que usam microfones nos hospitais são extremamente tímidas ou apenas estúpidas, todos ouvimos o mesmo nome ser chamado: Coronel Urso. Eu gostava de ter uma graçola melhor para terminar a crónica, mas não tenho. O senhor Coronel Urso, que eu vira algumas horas antes rasgar 2 páginas de uma TV 7 Dias, levantou-se e lá foi. Fora atendido antes de mim e preparava-se agora para regressar à vida activa com uma receita de anfetaminas, imagino. A pulseirinha era laranja, claro. Mais uma história feliz na luta contra a meningite. Quanto a mim, passei as 2 horas seguintes à espera que um calhau me receitasse Clavamox. Obrigado, Manchester. A sério.
É provável que nunca mais nos livremos do FMI. A previsão podia ter sido feita por um analista sénior da Fitch ou por aquele turco espertalhão que anteviu a crise, mas a verdade é que não é preciso ser-se um génio da economia ou trabalhar numa agência de rating para dizer coisas alarmistas com um carácter absoluto e permanente. Basta ser português e achar que o país não tem remédio. Aliás, basta ser português. Assim é que é.
Mas, da mesma maneira que o país precisa do FMI, também o FMI irá descobrir que não passa sem nós. O timing da chegada não podia ser mais oportuno. Exceptuando uns poucos dias de chuva que transformaram Abril no mês de águas mil (é uma pena não podermos patentear o nosso saber popular), aquilo que a equipa do FMI constatará é que Portugal é um sítio encantador, e não o pântano anunciado nos media. Estes senhores vão perceber rapidamente que Portugal não tem obrigatoriamente que ser a terra do funcionário cansado, tal como descrito por António Ramos Rosa. “Débito e crédito, débito e crédito”, a sua alma vai dançar com os números, enquanto a exibem desavergonhados. Pudera. A culpa não é deles.
A seguir vem um verso em que o funcionário é apanhado pelo chefe com “o olho lírico na gaiola do quintal em frente”, o que, como sabemos, não irá acontecer. Neste caso, o funcionário é também ele chefe e, se por acaso o seu olho lírico reparar na gaiola do quintal em frente, é porque se trata um organismo público a extinguir.
A esta malta, ninguém vai “debitar” nada na “conta de empregado”. Serão pois funcionários des”cansados dum dia exemplar / orgulhosos de terem cumprido o seu dever.” Ora, o que faz qualquer português que se julgue exemplar e merecedor do melhor que a vida tem para lhe dar? Geralmente, uma de duas coisas: vive uma vida pacatamente feliz, recheada de pequenos grandes prazeres ao dispor de qualquer indivíduo com uma maquia decente no fim de cada mês, ou abraça uma vida inteira de ressabiamento. Muitos portugueses optam por este último caminho, com elevado sucesso e reconhecimento entre os seus pares existenciais. Quanto ao funcionário do FMI, vai perguntar a si mesmo: o que é que um gajo faz nesta terra quando não se está a queixar? Esta pergunta será colocada a si mesmo porque nenhum português lhe dirigirá a palavra.
É aqui que as coisas se tornam preocupantes. Terminado o dia de trabalho, o funcionário descansado terá um mundo de possibilidades à sua disposição. Longe vão o inverno de Dublin ou a dieta de iogurte e queijo feta. Com o Ministério das Finanças localizado a 20 minutos do mar e do maior outlet da Europa, e uma infinitude de bons restaurantes, esplanadas charmosas e casas de diversão nocturna no intervalo que os separa, o funcionário descansado vai passar por dois estados de alma. O primeiro, próprio de quem está de passagem, é o deslumbramento. Tanto drama e afinal é este o melhor país da Europa. Depois vem a fase da aculturação, em que o funcionário, tal como Passos Coelho, percebe que o problema de Portugal afinal é muito maior do que aquilo que nos tinham dito. Isto é coisa para se prolongar por anos e anos. Aliás, o melhor mesmo é não marcar data de regresso. Vamos ver como corre. É trabalhar afincadamente e depois logo se vê.
Voltamos ao poema de Ramos Rosa e continua a fazer sentido. Já em vias de se naturalizar, o funcionário do FMI aprende agora a língua: “flor rapariga amigo menino / irmão beijo namorada / mãe estrela música”. São as “palavras cruzadas” do seu “sonho”, “palavras desenterradas” de uma nova vida, não mais prisão. Se a vida de um funcionário puder ser isto, “todas as noites do mundo numa noite só comprida”, ele nunca mais sai daqui. Nós também não, mas por razões diferentes.
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