Acabadinho de me sentar, esperava pelo início do filme Bridesmaids, uma daquelas comédias americanas que levam 3 estrelas do Jorge Mourinha e hífens ou bolinhas dos restantes. Hífen, na escala de crítico de cinema, significa “não vi, não quero ver e tenho nojo de quem viu”. Uma bolinha não preenchida significa que o crítico vomitou na sala de cinema e teve que ser assistido por enfermeiros. A bolinha preta significa que o crítico morreu na sequência do visionamento. Dependendo do círculo social a que se pertence, a reacção a estas pontuações varia geralmente entre “mais uma comédia juvenil... mas o novo kiarostami nem vê-lo!” e “eu quero é que o mário jorge torres se foda.” Eu, admirador confesso da sétima arte, pertenço a este último grupo, apesar de não ter nada de pessoal contra Mário Jorge Torres. Onde lêem Mário Jorge Torres, podem ler Leitão de Barros, Vasco Baptista Marques ou Nuno Carvalho. É tudo boa gente.
Mas ainda não perdi a esperança. Se Deus quiser, há-de chegar lá pra 2020, o ciclo Judd Apatow na Cinemateca - Deus assim o permita, apresentado por um destes caramelos. Nesse dia, o crítico terá o seu momento de redenção, explicando, pleno de historicização e o caralho, que demorou algum tempo a compreender a profunda humanidade das comédias de Apatow, ou o modo como o slapstick de Buster Keaton se cruza com referências de uma transmodernidade fulcral para se compreender tudo o que veio depois (incluindo a sua mudança de opinião).
E, no entanto, quando tudo indicava que poderia vir a ser processado por um dos gajos referidos nos parágrafos acima, eis-me novamente sentado na cadeira, à espera do Bridesmaids, pronto para dar umas 3 estrelas sem ainda ter visto o filme. Mas atenção que isto de ir ao cinema tem muito que se lhe diga. É muito mais do que as pipocas, gajos a rirem-se fora de tempo, e filmes. É uma nova arte, que consiste em bombardear o espectador com aquilo que está mais à mão. Não são as pipocas, não. São os conteúdos! Alguém deve ter realizado um focus group em que se conclui que 71% dos espectadores de cinema não se importam de levar com 20 minutos de merda antes do início do filme. E por causa dessa brilhante conclusão, cinema que é cinema em Portugal, hoje em dia, não começa sem 2 lições de vida e um espectáculo de revista:
Lição de vida 1 - um anúncio de um operador de comunicações móveis em que este nos explica, numa longa sequência de imagens, que a vida é feita de seres humanos, amizades, caminhadas ao pôr do sol, dias de praia, surfistas em convívio, pleno emprego, separações, ataques de choro com óptima direcção de fotografia, lutas de comida gourmet, discotecas onde só estão pessoas bonitas, uma política fiscal justa, e alguém a receber um mms de um amigo que acabou de chegar à festa onde essa pessoa já queria estar, mas não está porque ainda está noutro sítio a receber um mms de alguém que já lá chegou.
Lição de vida 2 – um anúncio de um fabricante de cerveja exactamente igual, mas neste caso termina com alguém a ser recebido por 3 ou 4 amigos e a brindar à vida, numa celebração que, se acontecesse realmente naqueles moldes, fosse em que lugar fosse, faria de nós, um ajuntamento espontâneo de palhaços (os ingleses usam o termo douchebag com elevada taxa de aceitação). Neste caso, os danos à saúde mental do espectador são controlados pelo finíssimo critério de uma agência de figuração.
Espectáculo de revista – esta é a minha nova parte favorita de ir ao cinema, excluindo a reutilização do bilhete no El Corte Inglés e as partes em que estou mesmo a ver filmes. Então, são uns vídeos das Produções Fictícias em que, à vez, o Manuel Marques ou o Luís Franco-Bastos nos oferecem pérolas da comédia capazes, estas sim, de matar não apenas o crítico de cinema como qualquer outro membro do público com um cérebro a funcionar. O Manuel Marques utiliza os mesmos trejeitos de outras 20 personagens da sua já longa carreira, mas aqui interpreta um pica-bilhetes demasiado zeloso. É um espectáculo deprimente e faz com que aqueles 3 minutos me deixem tentado a escrever que foram 7, quando na verdade pareceram 20. Quanto a Luís Franco-Bastos, é um rapaz de 20 anos que faz imitações. Ainda há solução para ele. Eu podia dizer que esperava melhor de ambos, mas ao mesmo tempo achei que devia dizer a verdade.
E pronto, foi isto que fiz no Verão. Espero que as vossas férias também tenham sido boas.
Errata: Soube entretanto que o Jorge Mourinha saiu a meio do visionamento. O mundo está realmente perdido.
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