Os acidentes acontecem, já garantia noutras vidas o nosso Elvis Costello. O problema é que só acontecem aos outros. Até que.
Descansem os leitores que aqui não irei descrever grandes sinistros ou catástrofes mórbidas. A base da crónica é uma historieta pessoal, sem moral ou ambição que não seja lembrar que de vez em quando todos tropeçamos nos nossos dias. Literalmente, caraças.
Comecemos assim: a noite estava linda. Depois de um repasto bem regado de vinho, poesia e virtude (pronto, esqueçamos a última) um tipo decide ir beber mais um copito, one for the road, sorver o que fica da noite e finalmente apanhar um táxi para o local onde deixou o carro. Erro: ao sair do táxi o tipo - chamemos-lhe, de modo fictício, «eu» - não repara no típico desequilibrio entre o alcatrão e o lancil da calçada portuguesa e - zás,queda aparatosa, aconchegada pelo rosto no paralelipipedo, onde está o Cirque du Soleil quando precisamos dele. Baixas: dois dentinhos frontais que dão muito jeito. E uma certeza: o individuo que cunhou o provérbio «ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo» era um irredimivel ateu.
Agora reparai no vicio dos tempos hodiernos, leitores: se «eu» (nome fictício) não fosse um excêntrico que utiliza um telemóvel exclusivamente construído para telefonar e receber telefonemas - «eu», dizia, teria imediatamente colocado no status do facebook, respondendo à lendária pergunta " o que é que estás a pensar?" com "que bati com as trombas na calçada". Mas não.
Tudo se resolveu. Sem as duas dentuças da frente até melhores dias (que são para breve), restava explicar a amigos e colegas de trabalho o que tinha acontecido. «Um acidente», dizia «eu». Mas como, de carro, atropelamento, contacto com os acampados no Rossio? «Uma queda». E aqui, amigos leitores, um tipo perde imediatamente a dignidade. Quem nos estima preocupa-se, mas não disfarça o gentil desprezo: quedas são para crianças e idosos - não para um tipo, hum, na flor da idade. Um tipo («eu», digamos assim) bem se arroga de referencias literário-musicais patéticas, A Queda do Camus, The Fall do Mark E.Smith: népia. Para quem ouve vai dar tudo ao Bucha e Estica ou ao Charlot. É triste, mas é assim. Não existe dignidade no tropeção dos quarenta anos. E não estou a fazer metáforas.
De maneira que cá ando, obrigado por perguntarem. Escrevo esta crónica sem os dois dentes da frente, com um sorriso entre o lactente e o geriátrico.Mas isso resolve-se, mais cedo ou mais tarde. A grande lição que retiro destes dias pós-queda é a descoberta do mais inexplicável fenómeno, que se encontra sempre longe de tipos alimentados a cepticismo de biblioteca como «eu» (nome fictício). E essa descoberta invade os dias, de casa ao café do bairro, do vizinho ao amor da nossa vida, dos amigos aos que nunca nos irão conhecer. «Eu» descobri, de modo estúpido e burlesco, a extrema urgência de partilhar um sorriso.
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