Na minha última artigalhada sinusítica sublinhei a necessidade de cada um, aqui no bairro, assumir o seu talento criativo, independente dos casulos político-estatais. Reafirmo-a neste dia em que tanto se fala nervosamente de nomes novos a comandar os destinos da Nação - como se a Nação não devesse por si promover os seus próprios mecanismos para se comandar. Sinto que falta uma segunda parte à croniqueta. Que, procurando completar a primeira, se refira um a gesto de, nessa liberdade de arriscar, olhar "os outros" (cidadãos, sim, mas também pessoas) e convocá-los, sobretudo quando estão em atitude ou desistente ou ruidosa, tão típica destas lusitanas esquinas.
Claro que é difícil mudar e melhorar - e bem notou isso Pacheco Pereira numa crónica recente do "Público" em que falava dos agentes políticos e mediáticos mas podia estar a falar da tragédia dos homens: "Com o tempo, vai-se percebendo que há um fundo mais permanente por detrás da espuma dos dias e que esse fundo tem muito lodo, mas também muita biologia, e muda muito pouco. Só quem nele toca com uma vara funda, alterando a ecologia inscrita nas profundezas, é que realmente muda. Costuma ser 'tocado' apenas por gente excepcional, que não abunda e costuma precisar de muito tempo para mudar, ou então de uma catástrofe curta e traumática".
Percebo o pessimismo mas quero acreditar - até porque tenho filhos e não vou já estacionar a viatura e a vontade - que essa gente não é necessariamente tão excepcional. Quando à última frase, pergunto se não estaremos nós a viver justamente uma "catástrofe curta e traumática"? Ou por outra: não será este o tempo? As vias são as de cada um. Há quem chegue lá pela cidadania pura, pela consciência cívico-política que foi desenvolvendo com os anos ou que descobriu nestas horas de indignações mais ou menos vagas mas significativas (porque reveladoras de um legítimo sentimento de inquietude e insatisfação). Há quem prefira - num gesto contracorrente - uma via espiritual, mais compassiva. A atitude está ligada, mais uma vez, a duas visões e a vocabulários distintos: há quem seja pela solidariedade, há quem lá chegue pela compaixão. Miguel Guilherme tocou no assunto da via espiritual numa boa entrevista recente à revista do "Expresso" - e com uma coragem de quem tem consigo e com o mundo uma relação que, segundo se percebe, não foi oferecida - foi sendo aprofundada (aconselho-a por ultrapassar aqui e ali o joguete de superfície em que caem a maior parte das ditas 'entrevistas de vida').
Aqui o escriba de serviço hoje é, permitam-lhe, pelas duas. Sou pelos necessários gestos de civilidade. Mas não só não recuso como reinvidico a necessidade de, passe o Paulo Coelhismo da expressão, um trabalho de casa espiritual. É importante, acho, revolver as entranhas com o máximo de elevação para não se deixar cair na resmunguice quase permanente para a qual se está tão competentemente programado. Calma, não me atirem já pedras e crucifixos escolares: não se defende aqui uma demanda religiosa para todos, como também disse e bem o actor - isso da escolha de uma (única) religião é de outra esfera, mais dogmática, cultural e até muitas vezes clubística, se quisermos. Mas a vilipendiada espiritualidade é um gesto interior que julgo fundamental para não cairmos numa tendência do género humano para se encerrar em si, para fechar as persianas, para dizer que não está para ninguém.
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