Gostava do Português Suave. Gostava da embalagem azul e branca às risquinhas fininhas com o padrão dos descobrimentos no meio. Gostava dos cigarros pequeninos que se fumam com a mão em concha como se estivéssemos a esconder o vicio. Gostava de cuspir os pedacinhos de tabaco que fogem para a língua, lembravam-me as coisas boas e o bocadinho de badalhoquice sempre associado a elas. Cigarro de poeta, sem filtro, a queimar os lábios como devem ser as palavras.
Já não os fumo há muito tempo, nem sei sequer se ainda se vendem. Troquei-os por uns cigarros internacionais, daqueles à venda na D. Irene aqui da esquina ou no café do sr. Mohamed perto da casa do diabo mais velho. Cigarros cujo único atributo é aplacarem o vício, como o Macdonalds mata a fome ou a Coca-Cola mata a sede.
Há uns anos, quando ia para algum lado para lá do Marão, levava sempre um volume comigo, mesmo já não os fumando habitualmente.
Achava que não havia nada mais português, nada que me lembrasse mais aquilo que nunca deixarei de ser: português. O bacalhau, o pastel de nata, a bica são símbolos de Portugal mas não têm nada a ver com a nossa alma. São demasiado intensos.
Pequenito; discreto; apurador de palavras escritas, causador de pigarro e rouquidão, mas suave. Como nós, Portugueses Suaves.
Andam-nos a vender, há demasiado tempo, a conversa de que temos de ser mais agressivos, mais assertivos, mais duros. Os tempos modernos não estão para suavidade, para discrição, para poesia, dizem-nos. É a época da confrontação, do nós ou eles, da prosa militante.
Querem-nos tirar a alma, querem-nos mudar, querem que sejamos alemães, ou suecos ou a senhora que os deu à luz, é o que é. Querem-nos Camelos ou Marlboros. Têm conseguido, e é essa a nossa desgraça.
“Pode alguém ser quem não é?”, cantava o Sérgio Godinho. Mesmo que se pudesse, para quê? A gente vai andando, umas vezes melhor outras pior, mas chegamos até aqui. Velhinhos de mais de 1850 anos, é certo, mas quem se aguentou melhor que nós? Quantos foram, quantos? Ninguém. Quem tem mais histórias para contar do que nós? Quem andou pelo mundo inteiro e nunca se perdeu?
Pois claro, passado. E que somos nós todos, eles e nós, se não passado, se não memória?
Nós fomos construindo a nossa memória, os nossos sonhos, devagar, como arrancamos com cuidado o plástico do maço de portugueses suaves, como gentilmente descolamos o selo e como tiramos o cigarro. Discretamente, acendemo-lo e deixamos que o fumo inunde, sem pressas, os nossos pulmões. Temos tempo, todo o tempo do mundo. Nós sabemos que as coisas levam anos, décadas, gerações, séculos. Nós ainda cá estamos e estamos para durar. O tempo prova-o. Portugueses suaves e eternos.
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