Dou uma aula de escrita criativa e escrevo. Aproveito o momento em que os alunos - psicólogos, editores de vídeo, estudantes - trabalham um sketch de auto-paródia da turma para esboçar esta croniqueta para o Sinusite – adiada durante um dia que não facilitou o estacionamento. Encontramo-nos em pé de igualdade - temos o mesmo tempo para acabar um texto. Ouço os portáteis a serem martelados e levanto de quando em vez a cabeça para confirmar que pelo menos neste lado da cidade a Apple ganha à Toshiba. Há alunos que, como tantos, de tantas gerações, olham para o ar, gesto vilipendiado mas possivelmente mais produtivo do que se magica. Outros apontam a caneta para a folha como os perdigueiros que farejam a caça sem a vislumbrarem. Daqui vejo melhor: estamos todos ridiculamente azulados pelo projector que procura um computador sem sinal (“Para exibir a Ajuda, use o botão ?”). E pelo calorzinho também.
Alunos e professor exercitam as escritas como podem, como outros, em superfícies mais verdejantes, treinam penaltis e pontapés de canto. É, sei disso, uma actividade que arrepia quem tem com estas coisas uma relação com o sagrado. Escusado será dizer que não há aqui pretensões de Nobel nem ambições de Branquinho da Fonseca. Respiramos todos por escrito, com os recursos que as leituras, a hora e o cansaço nos concedem. (O projector cansou-se e apitou antes de se apagar). Escrevemos. Apagamos. Escrevemos. Apagamos. E comentamos. Não o fazemos num café de Montmartre, entre moças bonitas e intelectuais de gola alta, mas numa saleta lisbonense, com vontade de arregaçar as mangas da tshirt até aos ombros. O "Magazine Littéraire" não se interessaria por nós.
Há um mês, em boa hora, aceitei o convite para fazer - como aluno - um brevíssimo curso do género para pessoas que vivem da escrita. Não encontrei - como ninguém encontra - a divina luz do firmamento da mais alta das literaturas. Fiz mais do que isso: treinei zonas da prosa a que, por vocação, não me tenho habituado - as mais descritivas, por exemplo. Fui analisado, posto em causa, criticado, elogiado, glosado e gozado. Como se estivesse - como realmente estou - a aprender o essencial do que é isto de escrever. Experimentei registos diferentes dos habituais. Forcei a mão onde ela, por comodismo, se recusa a ser forçada. Percebi aquilo que ainda quero e posso experimentar. Mais duas e três sessões e já não passaria sem estas idas ao ginásio.
Penso, sim, penso que faria bem a variadíssimos escritores profissionais sentarem-se numa salinha deste género. Deliro até com a utopia de um curso de escrita destinado a escritores consagrados. Uma série de Lídia Jorges e Lobo Antunes a serem chamados a tarefas simples, quase primárias, da escrita e à partilha daquilo que produzirem em exercícios mais ou menos tramados - são sempre para ontem. A treinarem diálogos, entradas de romances, desenvolvimentos narrativos, a escolharem adjectivos certeiros e a limparem metáforas espúrias. A porem-se em causa, que é aquilo que um escritor mais deve fazer. O professor não seria o mais importante. Fundamental seria ter alguém que desse o mote, que provocasse, que, por umas horas, fizesse desses adultos com carradas de vícios nas estantes crianças em parques infantis da criatividade literária.
Olho de novo para os alunos. A mão que cheirava a presa já ataca a folha. Alguém – topo agora – exerce essa forma suprema de escrita criativa que é o SMS. Um dos escribas, percebendo o desmaio do seu computador, abre um bloco e rabisca-o com a fúria de quem quer cumprir dentro do prazo. Digo-lhes sem sadismo que têm menos de um minuto para acabar. Estou a falar comigo também. Dou uma lida rápida no que escrevi, ouvindo ainda alguém a teclar uma última farpa. O tempo acabou. Últimos a ir à baliza.
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