Uma série sobre o programa animal: comer, não ser comido e dar a comer
Numa das milhares de notas de rodapé que nos deixou, David Foster Wallace sugere que o “beef” e o “pork” do léxico gastronómico da língua inglesa são atavismos de proibições ancestrais, por afastarem da mesa as imagens dos mamíferos (a “cow” e o “pig”) de onde vem a carne, cuidado que não se aplica a outros animais, como os crustáceos – “lobster” é “lobster” – e os vermes – “Dick Cheney” é “Dick Cheney”. Trata-se de uma digressão tipicamente wallaciana, pois o autor de imediato mina a sua tese, recordando que “lamb” não vem com eufemismo e é ainda “lamb” quando chega ao prato, embora um melhor exemplo fosse a expressão “suckling pig”, que combina som e sentido, recrutando as glândulas salivares à segunda sílaba, sem deixar de descrever, com grande rigor e franco poder imagético, a essência de um leitão. Em Portugal, a tese de Wallace seria ainda mais absurda, pois aqui vaca é vaca, porco é porco e uma tripa é uma tripa. Não trocamos significantes por causa de um qualquer tabu milenar, antes os significados, e só devido à pressão do mercado – são os “secretos” anunciados pelas ementas deste país e consumidos a um ritmo incompatível com o da produção de porco preto.
Até à vulgarização dos termos brasileiros “moqueca” e “bobó” (por exemplo, de camarão), o léxico gastronómico luso era muito pouco traiçoeiro. Folhear um índice de um livro de Maria de Lurdes Modesto oferecia pouquíssimas oportunidades para trocadilhos vulgares, o que surpreende, tendo em conta a nossa tradição nos enchidos. Dir-se-ia que o léxico gastronómico luso esteve sob uma longa e constante pressão, contrária à que moldou aquele artesanato rico em falos de cerâmica animados por uma mecânica simples. Não surpreende, pois a comida é para se levar a sério. Esta purga livrou-nos das “moquecas” e dos “bobós” autóctones e não sobrou quase nada. Uma excepção é “túbaros fritos”, nome que foi solução prática, pois conserva uma fonética alusão à botânica - túbaro/tubérculo - mas evita que por engano se lancem rodelas de tomate para dentro da frigideira. Menos pragmática e mais interessante, ainda que simples, é a génese da segunda excepção: o rabo de boi. A subtileza de “rabo de boi” é tal, que só quando nos lembramos da alternativa mais natural se percebe a artificialidade da escolha que vingou. Refiro-me, naturalmente, a “rabo de vaca”. Temos a carne de vaca, os bifes de vaca, o lombo de vaca, a língua de vaca e a mão de vaca, mas o rabo de boi. Não é um mistério insondável. Há uma sinergia que faz com que “rabo de vaca” seja treslido pelo rudimentar cérebro masculino como uma expressão vulgar, capaz de o embalar num silencioso crescendo a culminar no sonoro e boçal “comia-te toda!”, que depois espalharia ondas de choque no jantar de cerimónia e faria do pobre coitado o epicentro da censura social. Isto é trivial, mas arrisco a ideia de que “rabo de boi” constitui uma das obras maiores do génio censor português. Como solução, reabilita-nos inclusive do gesto irreflectido do padre madeirense que mandou capar todos os antúrios dos arranjos florais da sua igreja (true story). “Rabo de boi” não denuncia qualquer pulsão pornográfica do censor. “Rabo de boi” não vem com a infantilidade dos branqueamentos totais – penso num “surpresas de bovino”. “Rabo de boi” conservou ainda algo de vagamente censurável, o que cria uma ilusão de espontaneidade, isto é, de ausência de censura - a este tipo de solução, nos antípodas do radicalismo, não basta querer, nem coragem, é preciso o mesmo virtuosismo que guia o braço do jogador de snooker bem sucedido na intenção de falhar uma tacada por um triz. É um nome tão rico que tem ainda o mérito de nos distrair de um facto irrefutável: aquela sublime carne andou enxotar as moscas que circundavam a poia da vaca. Ou do boi.
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