No meio destes dias que atravessamos, o superfluo que nos oferece um pequeno prazer quase que se torna essencial.
Tenho a sorte de estar a antecipar um desses momentos: o concerto dos The National no Campo Pequeno, já daqui a nove dias. Os The National são um dos raríssimos colectivos musicais que ainda fazem com que este rabo aburguesado e cheio de ennui se levante da cadeira para ir ver um concerto que não seja de amigos ou por exigências profissionais. Foi assim na Aula Magna, onde não assisti a um concerto mas a uma celebração litúrgica, em que os fieis cantavam mais alto que os sacerdotes; assim será, tenho a certeza, no dia 24. Nada que a meu ver os rapazes não mereçam, dada a excelência da sua produção. Mas não vim para aqui oferecer exegeses. O assunto que me preocupa é outro e em que a banda americana é só um pretexto.
A verdade é que queria muito ver este concerto. Então, alguém que muito estimo teve a bondade e o carinho de me oferecer o bilhete – no Natal de 2010. Recapitulemos: através da oferta de um bilhete para um espectáculo que muito ansiava eu comprometi-me a pelo menos estar vivo e apresentável cinco meses depois. Ora francamente acho isto contra-natura. Não é que não o perceba: as novas plataformas de informação, a crescente profissionalização da indústria do espectáculo e a grandeza planetária das novas estrelas pop fazem que este fenómeno seja prático e desejável. Mas não será a sua funcionalidade que me irá fazer compreender qual a razão que leva um adolescente a prometer estar de saúde daqui a ano e meio para ver os Tokio Hotel.
Pode ser que isto ainda sejam vestígios de um tempo de que não tenho saudades, um tempo em que os concertos em Portugal eram tão raros e incipientes que os bilhetes apareciam de véspera e mesmo assim ninguém os comprava até uma hora antes. Esses eram os tempos em que a verdadeira glória não era assistir ao concerto de x ou y mas sim ter assistido sem pagar – tendo para isso suportado uma (justa) carga policial sobre as filas caóticas e em desacato que se alglomeravam junto aos pavilhões e estádios. Sofri na pele duas, pelo menos: uma no Restelo, enquanto esperava, bilhete na mão, para ver o lendário programa Heróis do Mar/King Crimson/Roxy Music; outra em Vilar de Mouros, onde corri em frente aos equideos da GNR durante um concerto de - e esta é a parte humilhante – António Vitorino d'Almeida. Não, não quero que estes tempos regressem – e suspeito que artistas e produtores também não. Houve muita luta pela dignidade profissional desde o dia em que o grupo de Rui Reininho pediu para o seu PA mais ligação à terra e como resposta obteve no recinto do concerto um camião cheio de areia. True story, Portugal anos 80.
Para mim, que vivo fiel ao carpe diem, este contrato implícito assusta-me, incomoda-me. Posso não saber o que irei fazer daqui a uma hora mas já sei o que fazer dia 24. Sinto-me um iogurte ou um medicamento: os bilhetes comprados com esta antecedência temporal são um prazo de validade. No meu esforço de racionalização romântica ainda tento ver a coisa como uma espécie de bravata ao destino, uma revolta contra os deuses, o legado de Prometeu a que temos direito. Mas depois chega a realidade e é ela que me diz para fazer o favor de não ser atropelado até ao dia 24 de Maio.
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