Alguém, algures, por qualquer razão, sentenciou que Portugal era um país de poetas. Nunca compreendi. Haveria algum estudo que concluísse, estatisticamente, que existiam aqui mais poetas por quilómetro quadrado do que em qualquer outra parte do mundo? Não seríamos antes, dependendo do século, um país de marinheiros, jogadores de futebol, politólogos? Não contrastava aquela certeza com a garantia de qualquer editor livreiro segundo a qual a poesia não vende em Portugal?
Anos de observação atenta nunca me permitiram concluir pela veracidade da descrição. Fui, contudo, constatando uma ideia um pouco diferente: que Portugal é um país de artistas. De cineastas, fotógrafos, documentaristas, instaladores e outros génios à espera de reconhecimento mundial.
Certamente que o caro leitor ainda é do tempo em que o artista era uma espécie rara. Havia um por terra e era tratado com o devido exotismo. Ele escrevia uns contos que o jornal depois publicava. Ou actuava nas festas da aldeia com as suas canções originais. Ou migrava para Lisboa, onde expunha os quadros, só voltando à vila anos mais tarde para descerrar a placa da rua aberta em seu nome. Todos tínhamos uma tia que sonhava ser pianista. Acabou por fazer carreira na função pública, mas, nas tardes de domingo, arriscava um Haydn tocando tecla a tecla com um dedo só o órgão comprado por 20 contos pelo marido por ocasião dos 40 anos. Ou um avô que, em tempos, escreveu umas rimas em folhas soltas de sebenta, arquivadas mais tarde pela avô na despensa, debaixo dos álbuns de fotografias e dos manuais dos electrodomésticos. A vida nem sempre foi fácil, mas o tédio dos dias ia-se vencendo, em grande medida, pelo fulgor daquela paixão não consumada. Aquela deliciosa incerteza de que se poderia ter sido grande.
Algures, tudo isso mudou. O português meteu na cabeça que nasceu especial. Agora, é só escolher a arte que melhor se adapte à canalização do seu génio em algo real. Começa nos poemas da adolescência, passa pelas fotografias desfocadas tiradas em Erasmus que põe na rede social, acaba na curta-metragem que escreve, interpreta e realiza. Ele até queria dividir tarefas, mas todos os amigos estavam ocupados com as suas próprias curtas-metragens, os romances pós-modernos, a instalação-pastiche-colagem, a intervenção-happening-teatro-do-absurdo, a música samplada composta ao computador sem saber uma nota, que isso era uma coisa quadradona do antigamente, ter de saber música para fazer música, aonde é que já se viu.
Soterrado no processo criativo, o novo português não tem tempo de ver o que os outros fazem – e eis porque a poesia não vende em Portugal. Está tudo demasiado ocupado a criar – como teriam tempo de ver criações dos outros? O tempo que tenha livre será passado a tagarelar sobre a sua obra no café ou no chat, estendido ao sol numa praia qualquer ou em viagem turística, que é quando o artista parte à procura de si mesmo, questão fundamental a que depois tentará responder numa futura curta-metragem / instalação 3.0.
Ser artista em Portugal é, hoje, pois, a coisa mais habitual do mundo. As vilas já não poderão descerrar placas com o nome de todos porque não haveria ruas para tanto.
De modo que as vocações secretas que alguns vão descobrindo aos poucos são, agora, diferentes daqueles tempos idos. Garanto-lhe, leitor, que, em certos cafés da moda de Lisboa, oiço por vezes um documentarista imberbe confessar que gostaria de jardinar, uma artista plástica sem idade para votar sussurrar que se inscreveu num curso de culinária, um músico pós-niilista vestido de sem-abrigo procurar no Macbook Pro de 15 polegadas informações sobre bordados.
Portugal talvez não seja país de poetas nem de artistas. É um país de portugueses, destino bem mais especial e incompreensível.
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