Um dia destes, vamos acordar e perceber que passaram tantos anos desde o 25 de Abril como de ditadura. Talvez então deixemos de falar da “longa noite fascista” e da nossa “jovem democracia”. E deixemos de desculpar com esses enganos todos os nossos fracassos.
Temos problemas com a verdade. Tratamos o Estado Novo como qualquer coisa que nos aconteceu. Um meteoro vindo do espaço. Uma catástrofe natural. Uma praga. Como se, um belo dia, tivéssemos todos ido passear e, ao voltar a casa, déssemos com um ditador que, subitamente, se tivesse aproveitado da nossa ausência para tomar conta de tudo.
Não foi assim. Estávamos cá. Muitos de nós pediram-lhe até que viesse, convidaram-no a entrar, deixaram-no instalar-se, colaboraram com ele. A maioria contribuiu mesmo com o seu silêncio e a sua apatia. Ano após ano. Década após década.
E agora recusamos olhar para trás. Negamo-nos a tentar perceber porque vigorou em Portugal a mais longa ditadura do século XX europeu; uma ditadura que, ainda por cima, foi das menos violentas dessa Europa para que, hoje, olhamos com inveja, como se tivesse nascido em melhores famílias do que a nossa.
Às vezes, pergunto-me que terá acontecido a toda essa gente que habitou o país de 1926 a 74 e não foi perseguida pela PIDE – ter-se-á desvanecido no ar aos primeiros acordes das senhas radiofónicas? Pergunto-me também por que não figuram nas fotos e imagens de arquivo todos os milhares que, volta e meia, se gabam de ter feito Abril – para usar os termos com que sói expressar-se nestas ocasiões. E pergunto-me ainda como chegámos a isto, a esta bizarra coexistência onde uns suspiram por Salazar, outros agem como estátuas andantes continuamente à espera de flores e aplausos por tudo quanto fizeram por nós, alguns digam que isto está pior que dantes, outros interrompam clamando que quem o diz não sabe do que fala, uns e outros façam terra queimada de tudo quanto se passou depois.
De vez em quando, parece que Portugal só viveu um dia: o 25 de Abril de 1974. Todos têm um álibi para onde estavam antes e depois. O que aconteceu até dia 24 e para lá de 26 não é para ser pensado. Se estamos melhor, a quem o devemos? Quem são os grandes responsáveis? Se estamos pior, quem devemos culpar? Quem podemos sentar no banco dos réus? Mudámos ou fomos, afinal, sempre os mesmos?
Ao que parece, alguém terá de escrever a nossa história por nós. 37 anos não chegaram para termos idade para encarar o que vemos ao espelho. Ficámos com os cravos e as canções. Que importa se a criança-símbolo da revolução cresceu e emigrou?
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