Dizem que a brasileira é que é boa, a espanhola idem, melhor só a americana que está em todo o lado. Que a nossa é perra e parca em prazeres, que não se arredonda nem dança com a mesma gula. Não creio. Temos com a nossa língua a mesma relação que com o nosso bairro: de tanto o percorrermos parece-nos banal. Anda a faltar-nos um pouco de turismo da língua: olharmos de novo os azulejos de um vocábulo, o reboco de um adjectivo, as longas avenidas dos advérbios de modo.
Houvesse clube dos turistas da língua, com quotas e bandeirinhas e eu estava lá. Não sou um turista sério, não uso guias, não sei nada da cultura local – apenas se me acontece dar de caras com uma expressão e ficar estacado a pensar “Como raio nunca reparei no profundo génio que emana desta expressão?”.
Por exemplo, a expressão “Dar nas vistas”. Parece a frase mais simples do mundo, gasta, velha, prostituída nas bocas de toda a gente. Mas é mirá-la de perto e acabamos a admirá-la. Deixem-me explicar.
O génio começa no uso de “vistas”. Imaginem que o autor da expressão tinha, no momento da criação, optado por dizer “Dar no olho”. Por exemplo: “Este tipo dá muito no olho”. Não era a mesma coisa, certo? “Vistas” tem a exacta dimensão popular que a expressão precisa: atribui-lhe uma certa rudeza, mas ao mesmo tempo uma certa bonomia rústica.
O talento do criador adensa-se no uso do verbo “Dar”. O criador podia ter escolhido “Atirar-se às vistas”: “Este moço atira-se às vistas”. Ou, num momento de confusão, “Este moço atira-se ao olho”. Ou ainda, no momento em que os cogumelos começassem a fazer cócegas nas traseiras do cérebro, “Este moço dá-se ao olho”.
Subtil, o criador recusa verbos como “bater” (“Este moço bate nas vistas”). Opta por um verbo despojado, o verbo “dar”. E depois inverte-lhe a polaridade, tornando a doação um acto não de generosidade mas de uma indesejada generosidade, esmola de que se desconfia num país pobre. O moço “dá nas vistas”, acerta-lhes, mas sem sem atirar contra elas: é como se o desastre entre o moço – que o criador da expressão se abstém de qualificar – e as vistas – puras, puras, puras – fosse inevitável, uma tragédia que o país esperava há muito.
Por vezes passo, digamos, minutos inteiros a tentar imaginar como é que estas expressões surgiram, no apuro do seu tempero.
Terá o criador tentado a expressão com diferentes amigos, como um comediante a experimentar uma piada? Terá a expressão sido recebida vezes sem conta com um silêncio incómodo até que um dia, sem que se notasse, reinava sem par no império infeccioso da língua, enquanto o seu autor se recolhia para sempre na sua cave, humilhado pelos silêncios com que as suas expressões eram recebidas? Ou será que algum esperto ouviu uma forma inicial da expressão e depois a aprimorou?
Nunca vamos saber. Nem com certeza nem sem ela. Porque ao contrário das outras a nossa língua não dá - errr - nas vistas.
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