Uma série sobre o programa animal: comer, não ser comido e dar a comer
Para eu ver o tampo da sua secretária, foi preciso que ele morresse. Só então retiraram as compactas resmas de artigos, alinhadas em altura e a fazer uma superfície de trabalho meio metro acima da original, onde ele apoiava os cotovelos e pousava a folha que rabiscava a lápis. Alguém devia ter guardado aquelas resmas sem desmanchar a ordem, pois documentavam o percurso intelectual de Tommaso Meo nos últimos anos, como os estratos geológicos contam a história de um lugar - na base estavam as leituras mais antigas, talvez ainda do tempo de Mitterrand, e no topo as mais recentes, governava Alain Juppé. Nunca mais voltei a ver tão impressionante sinal de curiosidade e desorganização. Tommy Meo tinha sempre pressa de chegar a algum lado e quando fui para Paris e comecei no seu laboratório ele estava mais vezes no futuro do que por lá, embora sempre o encontrássemos a rabiscar à secretária.
Isto não é um elogio fúnebre. Seria mais fácil escrever sobre um morto querido, porque há nisso um elemento arrebatador e a empatia traz autoridade. Também não é um ajuste de contas que o lento passar do tempo fez urgente; apesar de o desaparecimento de Tommy ter sido uma surpresa e de a conta corrente entre doutorando e orientador nunca estar no zero, o essencial não ficou por dizer. Creio que ainda penso na morte de Tommy por ter sido a primeira que senti já adulto e me ter faltado a naturalidade da criança que se põe a chorar com a morte dos avós e o desespero avassalador de quem perde um amigo. Terá sido a primeira sensação complexa perante a morte, mas que não chegou ao cocktail de contrários que por estiramento nos deixa relativamente quietos e extenuados, sendo antes a mistura de impulsos sem contrapeso que nos faz dar voltas aos quarteirões num estado de inquietação. Quem vinha comigo perguntou: "como estás?"
Estava triste, sobretudo quando depois parei durante uns segundos diante da cova com o caixão ainda por cobrir de terra, mas não tão triste como um dos seus amigos mais próximos. Pensei no mistério da sua morte e atribuí propriedades premonitórias à tabela de esperança média de vida de um tratado antigo que ele tinha exposta no seu gabinete. Não deixei de estar estupefacto, talvez até hoje, como se aquela semana em que não sabíamos dele tivesse incubado a possibilidade de uma tragédia que sobreviveu inclusive à confirmação da sua morte. Fiquei perturbado quando me surpreendi a pensar no desaparecimento dele como desculpa para o meu futuro falhanço académico. Senti-me mais próximo dos meus colegas, com a lúcida sensação de se tratar de uma intimidade de circunstância. Houve ainda direito à indignação do egoísta: "Tommy, porque me abandonaste?"
Tommy ensinou-me a sangrar animais e o teste de Ouchterlony, uma técnica, à época já algo arcaica, que detecta interacções entre anticorpos e antigénios que se difundem num gel de agar. Ensinou-me também, ainda que involuntariamente, os perigos do enamoramento prolongado com as ideias, e passou-me para as mãos a primeira experiência bonita em que trabalhei. Foi um legado parco, mas antes dele nunca tinha trabalhado sobre uma ideia bonita e desde então, para o mal e para o bem, creio que a resposta a uma pergunta me interessa tanto como o modo de responder.
Quando tento reconstruir aqueles últimos dias, lembro-me sempre do almoço de Domingo de Páscoa de 1997. O anfitrião e o seu filho receberam o seu amigo Tommy e eu apareci também, ao abrigo da solidariedade entre os expatriados. Foi a única vez que estive com ele fora do instituto onde trabalhávamos. Ainda recordo pormenores da casa, mas já não sei o que comemos e qual o tema das conversas. Duvido que Tommy me tivesse posto à prova como no nosso primeiro almoço e encontro, em que me testou a esperteza com tricky questions, pois trabalhávamos juntos há mais de um ano e, fosse qual fosse a sua ideia a meu respeito, não devia ter grande vontade de reavaliar as suas convicções. Talvez tenhamos arrumado a questão de Deus com aquele tratamento sumário dos ateus, embora a competência de Tommy para a bioquímica e a estatística não o fizesse necessariamente descrente. Não sei se o voltei a ver depois daquele almoço; há uma série de imagens, sons e até cheiros (a água de colónia) a que falta uma data precisa: Tommy falando com o cambodjano Thong na sala dos computadores; Tommy irritado ao telefone, quando lhe digo que a experiência estava feita e não tínhamos destruído o dogma; Tommy comendo pistácios compulsivamente; Tommy especulando com agilidade durante as reuniões de laboratório.
Morreu poucos dias depois daquele almoço e foi enterrado no cemitério de Montparnasse. Num sonho acordado recorrente, viajo até Paris e vou ao cemitério com a intenção de deixar umas flores na sua campa, mas não a consigo descobrir.
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