Não sei se existe algum estudo científico que relacione a produção de testostrona com o défice de critérios estéticos mas não me admiraria se fosse revelada agora a proporcionalidade directa entre uma e outro. Na ebulição adolescente os gostos musicais masculinos tornam-se ecléticos e utilitários, tendo como único objectivo o aperfeiçoamento do ritual do acasalamento. E no meu tempo, ó felizes púberes de hoje, isso significava não poder escapar a uma terrível prova de iniciação: o slow.
Derradeiro sobrevivente de uma época em que se dançava a dois, o slow era muitas vezes a primeira oportunidade de contacto mais íntimo com o sexo oposto. No alinhamento discográfico de uma festa caseira havia sempre o momento solene do slow, que teria de acontecer nem muito tarde nem cedo demais. Normalmente surgia depois de consumidos e bailados os hits do momento (cuja característica era a total ausência de coerência musical), quando o primeiro gelo começava a derreter e a conversação se tornava mais fluida. De súbito as luzes desciam (em alguns casos, mais radicais, apagavam-se) e ouvia-se a primeira canção lenta. As hostilidades tinham começado. Em regra, eram os casais de namorados já «oficiais» que davam os primeiros passos. Os outros ficavam na sombra, à espera de um assomo de coragem para convidar o par e ir dançar. Eram momentos angustiantes. Mas a certa altura tudo se tornava inevitável, quando se ouvia a canção. Em 1982, em Portugal e em toda a Europa, essa canção era Classic, de Adrian Gurvitz.
Nessa época, Gurvitz apresentava um visual festivaleiro, ao melhor estilo eurotrash , e que incluía um penteado igual ao de Chuck Norris se este fizesse uma permanente.(a confirmar, com cuidado, aqui ) A canção condizia: pirosa, previsível, ridícula. Mas ai do desgraçado que não a dançasse: seria para sempre considerado um pária, um meteco do amor.
Menino e moço me apercebi da distância injusta entre a Arte e a Vida. Aos 17 anos, a minha formação musical avançava em passos pequenos mas decididos. Tinha resolvido com proveito a fase Doors, já tinha sido apresentado a Leonard Cohen, Echo&The Bunnymen , os Joy Division e demais catálogo da Factory e tantas outras coisas novas e seguras, daquelas que pressentimos que irão furar o destino da música popular. A Arte mostrava-me o caminho. Infelizmente, a Vida obrigava-me a dançar Adrian Gurvitz.
A primeira vez foi medonha. Tão nervoso como surpreso por uma rapariga ter aceite o meu convite, entrei desconfortável nos primeiros acordes: primeiro porque a rapariga teria menos 15 cm do que eu, o que tornava enigmática e perigosa a colocação de mãos e braços; depois, porque não sabia o que fazer. E como era recorrente nessas ocasiões, o hermeneuta levou a melhor - mal se ouviram os infames versos que abrem a canção («Got to write a classic/got to write it in an attic») comecei a metralhar a pobre miúda: «Não percebo isto do sótão, porque é que um clássico tem de ser escrito num sótão?», «E este erro? ‘And you was my best toy’? ‘Were’! ‘Were’ é que é!». O meu destino ficou marcado antes do solo de guitarra.
Depois deste desastre tive oportunidade de dançar Classic várias vezes. E aprendi a estar grato a esta balada manhosa, com aliterações patetas e marcação sincopada um-um-dois que permitia o dançar estiloso do um-passo-para-a-direita-dois-para-a-esquerda. Graças a Classic descobri a antecipação da cabeça da rapariga no ombro, o leve aperto em crescendo, primeiro tímido e à procura de resposta e depois, se correspondido, um festim para todos os sentidos. No final, a consagração máxima, o toque dos lábios no escuro e o sabor adocicado do whisky-cola a percorrer a boca. Agora, com a distância e a sabedoria dos anos não consigo ver Classic como uma canção tola. Será para sempre o som e o sabor a whisky-cola dos longínquos primeiros amores.
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