Os meus próximos, esclareço, são meu dealer de comprimidos para a hiper-tensão, a sado-masoquista de 83 anos que passa as minhas camisas a ferro e um anão a quem arrendo a cave a troco de fazer-me mensalmente um napron para o topo da televisão.
Infelizmente as traduções não são o meu únic,o prob,lema: n,ão consi,go por ,exemplo a,certar com um,a vírgul,a e tenho-tendência-a-escrever-à-pressa-o-que-prejudica-a-legibilidade.
A isto junte-se a minha implicância com nomeações. Não, não me refiro à promoção deste meu amigo a sub-director da Caixa Nacional de Aposentações. Refiro-me a dar nomes às coisas. Não a filhos, não a obras de arte de Duchamp. Mas a títulos, nomeadamente principalmente e especificamente a títulos sociais. Também abuso imensamente dos advérbios de modo.
Leio crónicas de – imaginemos – Vasco Pulido Valente, Pacheco Pereira, Rui Ramos e Rui Tavares e no fim dos textos lá está: “Historiador”. Não percebo: no momento em que escrevem aquelas crónicas os mencionados senhores não estão a “historiar”, embora os três primeiros tenham tendência a contar-nos histórias.
No instante em que teclam para jornais os três pilares da democracia e o Rui estão a ser cronistas. O título que embaixa as crónicas deveria, portanto, ser “cronista” ou eventualmente “Cronista”. O meu pr,oblema a,qui n,ão é co,m vírgu,las nem com-a-minha-tendência-para-escrever-à-pressa, antes com o verbo “ser”.
Ninguém “é”. Temos uma vaga memória do que fizemos e das mudanças no nosso rosto.
O "ser" é um prémio de regularidade, a média dos actos que mais vezes repetimos da mesma forma. Nada de grave, não fosse a nossa constante necessidade de sabotarmos a memória - a nossa história - para nos justificarmos. A História (nossa ou dos outros) é uma tentativa de fazer uma pega de caras com pinças. Tarefa inglória e falhada, portanto.
Não se é, está-se. Por exemplo: neste instante estou a escrever uma crónica pateta. O que não quer dizer que seja “Escritor de crónicas Patetas”, como não quer dizer que seja “Pateta”. (Sou apenas pateta.)
“Historiador”: esta palavra, mesmo colocada no fim das crónicas, encima-as. Domina-as.
Está ali para dizer: este texto pode estar neste jornal porque este senhor sabe e sabe porque É Historiador.
E como tal tem direito a, por exemplo, num dia dizer que é preciso desrespeito em Portugal e noutro afirmar que já não há respeito nas escolas portuguesas, numa curiosa demonstração de ignorância histórica – ou, se quisermos, num ataque cerrado ao verbo “ser”.
O que interessa aqui é o verbo “ser”. Fulano pode ser historiador e não ser Historiador. Pode ser Historiador e ao escrever crónicas escrevê-las enquanto – por exemplo – calimero, benfiquista, ou cidadão incapaz de distinguir factos da sua própria necessidade de amargar o mundo (para o tornar mais compatível com o grau de acidez do seu sangue).
Há nesse “Historiador” uma desnecessária tentativa de legitimação dos textos – como se estes apenas fossem válidos porque os sujeitos que as escrevem são legítimos portadores do saber.
Não ocorre aos senhores dos jornais – e aos leitores – que, imaginemos, um Historiador possa não ser um bom intérprete da mundanidade diária, que, imaginemos, um Historiador, fora do seu lento processo de interpretação da História, tenda a narcisar o mundo ao ponto de o tornar irreconhecível.
Devíamos retirar aquele “Historiador” que paira sobre os textos como um dedo divino acusador da nossa ignorância.
Porque um homem pode erudito e não ser inteligente. E um homem pode ser inteligente e não ser erudito. Um bom teórico pode não ser um criativo talentoso e um talentoso criativo pode não ser um bom teórico.
Exemplo: sabemos como Pacheco Pereira é óptimo a fazer retratos da nossa época, usando para tal os recursos do academismo. Mas isso não impede que outros, sem formação académica, não possam ser bons retratistas. Dou como exemplo um genial autodidacta - que me recorda imenso, na capacidade retratista, Pacheco Pereira:
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