Uma série sobre o programa animal: comer, não ser comido e dar a comer
Deixei de frequentar a igreja ao domingo por volta dos 14 anos e, desde então, só acumulo missas do galo, de casamento e de sétimo dia. Mas na terça passada acrescentei um novo tipo: uma missa explicada. Foi na capela do Rato e daqui agradeço a experiência ao padre Tolentino Mendonça, pois revelou-me o caminho a seguir no Sinusite.
O ponto de partida para a homilia vem relatado por João e é o episódio do enfermo prostrado há 38 anos, a quem Jesus pergunta: “queres ficar são?”. O homem sai curado, beneficiando daquela mestria sobejamente conhecida, e nem tem tempo de perceber quem esteve diante dele, pois Jesus desaparece na multidão. Mas depois, caminhando já pelo seu pé, ele reencontra o seu salvador e então fica a saber que é Jesus. Ao padre Tolentino Mendonça ocorreram dois comentários. O primeiro: que a pergunta de Jesus não era simples retórica, pois nem 38 anos de enfermidade garantem uma resposta exclusiva e inequívoca, devendo cada um não ter medo de se confrontar com as vontades que o guiam. O segundo: que o reencontro, a repetição, é uma forma de aprendizagem essencial, por fazer coincidir o distanciamento da primeira experiência com o estímulo da segunda. Os dois comentários são relevantes para o que agora relato. Há uns dias, o Nuno Costa Santos fez de Jesus (não por acaso, anda guedelhudo), perguntando-me se eu queria mesmo escrever aqui. Após uma primeira resposta, demorei uns dias a chegar a uma conclusão definitiva, contrária à decisão mais sensata e que julgava corresponder também à minha vontade. Por isso aqui estou. E é um reencontro com antigos companheiros, com um eventual leitor e com este espaço, onde há precisamente três anos comecei a assinar entradas como o “Homem do Pullover Amarelo”. A aprendizagem traduziu-se já num primeiro gesto simbólico. E de novo agradeço ao padre, pela teatralidade luminosa que me inspirou, como se ele desse as aulas teóricas e também as práticas. Passo a explicar.
Tolentino Mendonça subiu ao altar à paisana. Foi assim que se dirigiu aos fiéis. Só a seguir, diante todos, se foi transformando em padre: primeiro a alva, depois a estola, por fim a casula. Já de roxo, concluiu a explicação dos paramentos litúrgicos, em que falou do código das cores, da forma como diáconos e padres colocam a estola e do acto de vestir a casula , metamorfose que faz do indivíduo um representante de algo que o transcende. Percebi tudo e fui consequente, ou seja, fiz o inverso: despi o pullover amarelo, a casula que envergava aqui, e renunciei ao transcendente, que era a crítica de restaurantes, assumindo-me como alguém que nada sabe de gastronomia e que por convicção tem apenas o gosto de comer. Abandonado o boneco, restou só o desejo de continuar a escrever sobre comida, mas usando a restauração como na missa se recorre à bíblia : um pretexto para o comentário sobre o que realmente me interessa.
O padre, num instante de ingénua vaidade e genuína imodéstia, disse que lhe pesavam os elogios à eloquência das suas homilias e que mais valia a missa do colega desprovido do seu dom palavra, chegando ele a sentir como heresia uma grande homilia que esmague os textos canónicos. Enfim, suspeita na capela do Rato, no Sinusite a afirmação seria absurda, pois blasfemo é o cronista que não assume estar no centro do seu mundo. Só que isto não é programa, é apenas condição.
Ainda Tolentino, mostrando o caminho. Erguendo a hóstia e confrontando em três poses marcadas toda a plateia que o ladeava, já depois de ter dado a beber o sangue de Cristo a um punhado de eleitos, naquele que seria talvez o momento mais fácil de associar à mesa, fosse eu um dos ateus militantes que se horrorizam com a partilha do corpo de Cristo, menos por incapacidade de compreender a ritualização de um gesto já simbólico na sua origem do que pela oportunidade rasteira de fazer os católicos selvagens aos olhos dos idiotas, Tolentino, que conseguiu arrancar de mim um Pai Nosso, embora por capricho de memória e não arrebatamento espiritual, deixou-me ensimesmado, mesmo quando saudava os vizinhos na Paz de Cristo, a pensar no que realmente me interessa, como se aquela hóstia de apreciável diâmetro não tivesse desaparecido e pairasse, agora sozinha, um foco para onde convergia o meu pensamento. Mas só mais tarde percebi, já na rua, ainda sob efeito da graça deste padre, forte o suficiente para censurar a inevitável reminiscência táctil capaz de colar a enorme hóstia a um céu da boca hoje apropriadamente mais amplo, que interessa renegar isto e recuperar aquilo. Que no Sinusite, cada restaurante só pode ser pretexto para escrever sobre mim mas a propósito de alguém querido, a quem cedo o lugar nobre da mesa, sendo essa a nossa comunhão. Com os vivos e com os mortos.
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