Comigo, foi o verbo refulgir. Descobri-o, ou ele descobriu-me a mim, enquanto folheava um dicionário de sinónimos. Não há, aliás, segundo amor como o sinónimo. Foi por isso que, da noite para o dia, tudo deixou de brilhar e passou a refulgir. Não havia refulgência que eu não visse onde refulgência não houvesse. E que importava isso? Nada. Foram muitos dias passados a aguardar a oportunidade de martelar o verbo refulgir. Martela com eloquência (podia perfeitamente ter escrito loquela em vez de eloquência mas a minha humilde verbosidade aconselhou moderação na facúndia) aquele que se faz valer de um vocábulo desnecessário ou balofo para destituir de inteligência uma afirmação lexical e gramaticalmente correcta. O que faz de muitas conversas interessantes aquilo que na verdade sempre foram: pequenos suplícios.
Para muitos uma minudência da interacção, é na verdade o momento que melhor a define: uma palava incorrectamente utilizada e passamos de uma tertúlia nos Encontros da Arrábida para um mano-a-mano taberneiro em Brejos de Azeitão. Às tantas, damos por nós ali estacionados, com vista panorâmica para o nenhures do analfabetismo funcional, sem saber o que fazer, na tal terra onde os autóctones se assoam à gravata por engano. No Portugal profundo do falar caro, está-se lindamente entre iguais até alguém ter a coragem de nos corrigir ou, se tiver bom coração, fazer pouco dos nossos tiques. Ora bem. Foi muito assim que nas conversas me fiz portento: a refulgir para aqui e a refulgir para ali. Refulge-porque-repara-só, epá-tu-não-me-venhas-para- aqui-refulgir, vejam-senhoras-e-senhores-como-refulge, era-meia-de-refulgência-se-fizer-favor.
Tudo isto me fez esquecer durante anos a ancestral arte de ficar-mas-é-caladinho ou o engenho necessário para falar-mas-é-como-as-pessoas-normais. Mas lidar com a banalidade do nosso próprio discurso nem sempre é fácil. Às vezes precisamos de sobressair, temos mesmo que falar anormalmente. Bem ou mal, logo se vê. Muitos amigos meus, imbuídos de formação e feitio variáveis, serviram-se desse apelo da língua para cunhar uma social versatilidade com que, desde há muito, se fazem apresentar ao mundo. São gajos que sabem falar. Eles agora são assim. Porreiros, espirituosos, bem falantes, mas pouco representativos da nossa diversidade cultural. Na malha esburacada dos armazéns Regojo que é o tecido social português, encontramos outros tipos sociais, bem mais interessantes e complexos, que, imbuídos de formação e feitio variáveis, se serviram do apelo da língua para cunhar uma prosaica ignorância – não confundir com humildade – vulgarmente concentrada em duas ou três expressões. Pessoas que mandam a língua portuguesa às urtigas - não é que o façam por mal – desde que deram por elas a findar analiticamente que, para se dizer ao mundo que se sabe falar, chegam perfeitamente dois ou três exemplos cirurgicamente aplicados em todo e qualquer momento oportuno, leia-se, por tudo e por nada.
Às vezes um só exemplo basta. Que o diga uma secretária chamada Filomena que tive o prazer de conhecer e a quem optei por dar o nome verdadeiro para salvaguardar a sua identidade. Enquanto secretária, Filomena cumpre a promessa dos honorários pagos pelo patrão: uma “problem solving attitude” impecável, “analytical thought” cinco estrelas, “multitasking abilities” de um gajo ficar banzado, e “interpersonal skills” como há muito não se via. Do que carece então a talentosa normalidade de Filomena? De uma marca registada de inteligência. Faltava a Filomena patentear uma outra forma de secretariado. Não lhe chegava o sorriso, ser expedita, tratar de coisas. Filomena quis salvar do esquecimento os seus préstimos diários e foi por esse motivo que começou a usar a expressão a priori. Hoje, seja o que for que Filomena tenha para nos dizer, cabe lá a expressão a priori. Liga-se para lá e o doutor, a priori, não está. Mas não desespere aquele que tenta falar com o doutor, porque a priori foi só ao dentista e é coisa para demorar pouco. Se porventura ligar para lá em Agosto, a priori o doutor há-de estar a torrar na Praia do Vau, por isso volte a ligar início de Setembro. Quando Filomena emprestou a sua voz para gravar a mensagem do atendedor de chamadas, saiu-se com um ‘a priori a sua chamada é importante para nós’. Quem quisesse que aguardasse uns minutinhos a posteriori.
Segundo a Wikipédia, a priori, do latim ‘partindo daquilo que vem antes’, traduz uma anterioridade lógica e não cronológica. Nada mais correcto. Quando Filomena começa uma frase fazendo uso de ‘a priori’, parte daquilo que precede toda e qualquer afirmação sua: as muitas aulas de português a que faltou, aquele pragmatismo tão português de quem passou um exame sobre Os Maias sem os ler, ou a leitura das partes que interessam do Cavaleiro da Dinamarca. Ao consagrar esta forma de portugalidade, Filomena forja uma nova história, daquelas que não encontramos na Wikipédia. Assim, a priori não terá sido usado pela primeira vez por Alberto da Saxónia no século XIV, mas sim pelo Alberto do talho, coleccionador de dizeres invulgares que jamais algum carnívoro de Ramada ousou corrigir. A teoria foi afiada ao longo dos anos por Alberto, vulto filosófico-cortante do séc. XXI, e demorou pouco a consolidar-se entre os atentos: mais ou menos o tempo de se raspar a gordura de uma pá de porco. E é assim que a língua há-de perdurar e desdobrar-se, até ao dia em que formos obrigados a regressar à gramática - Deus nos livre – ou conhecermos um talhante que leu Os Maias. O que seria brilhante, mas refulge muito pouco.
Vasco Mendonça
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