A pessoa com quem vivemos foi, frequentemente, o nosso melhor público. No início mitológico de cada relação, o outro ri-se de todas as nossas piadas, acha violentamente interessantes todas as nossas observações, quer saber tudo sobre o que fazemos e acompanhar de perto cada novidade. Depois, isso passa. É natural. Mas faz espécie – passe o palavreado técnico – que, um belo dia, a contraparte se torne o exacto oposto do que fora outrora, isto é, passe de maior fã da nossa arte a público mais difícil de todos. Ou seja, um tipo começa a namorar com o arraial de Alfama e dá por si a acordar com o grande auditório da Gulbenkian.
Nem sempre acontece. Há casos – não sei se motivados por alguma doença – de velhinhas que continuam a gargalhar em decibéis desaconselháveis ao tímpano humano a cada graçola batida atirada pelo seu velho homem. É um acontecimento muito terno, mas com o seu quê de insuportável.
O que mais se dá, pois, é a mariocastrinização da/do companheira(o). Toda a gente ri das nossas façanhas, ela olha as horas. Seguem suspensos as nossas aventuras épicas no escritório, ela boceja. Desconhecidos rasgam elogios a um pedaço de carpintaria ou literatura que tenhamos produzido, ela aponta, fria e sadicamente, todas as imperfeições que parece considerar por demais evidentes.
São paragens menos turísticas do amor, mas estão lá. Descobrimo-las quando vamos para lá viver, quando passamos de estrangeiros em visita a emigrantes com visto permanente.
E, no fundo, só queria pensar nisto: um tipo, se vive em Roma, deixa rapidamente de admirar o Coliseu. O Coliseu, por mais extraordinário que seja, tornar-se-á a sua paisagem habitual, o seu fim da rua a caminho do trabalho, ao final do dia, parte rotineira do cansaço e do tédio. Está lá como está o Pingo Doce da nossa rua, a casa decrépita, a vitrine da loja de loiças para casa de banho. O espanto, o maravilhamento, não foi feito para os dias, mas para um momento triunfal das nossas vidas. Mas, com paciência e realismo, numa manhã qualquer, o Coliseu voltará a revelar-se em toda a sua grandeza. E o tipo que lá vive ao pé voltará a deslumbrar-se e a sentir-se abençoado.
Não que nós sejamos o Coliseu. Mas há uma incompletude que temos em comum.
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