Sei os riscos que corro ao escrever esta crónica: o Carnaval é provavelmente a única e verdadeira causa fracturante em Portugal. O actual presidente da República teve disso a prova, quando decidiu anular a tolerância de ponto dada na «terça-feira de Carnaval» num dos seus mandados como primeiro-ministro. A razão, alegou o homem certamente em visível delírio, era que não havia motivo para não se trabalhar nesse dia. Assistiu-se a seguir a um tão lindo como raro movimento de união nacional, em que cidadãos de todos os cantos da vida e do país se uniram indignados reclamando o direito inalienável de desfilar mascarados. Cavaco Silva terá assim aprendido a lição: em Portugal, com o Carnaval não se brinca.
Por mim estou com Cavaco, nem que seja por uma vez: detesto o Carnaval. Não lhe vejo razão nem efeitos benéficos, a não ser o legitimar alguns comportamentos desviantes durante alguns dias. A obrigação implícita de nos «divertirmos» em dias marcados liberta o anarquista que há em mim (ou o estalinista, depende da hora). E depois há o que realmente me maça: não compreendo a efeméride e isso irrita-me. Os meus amigos mais lidos e carnavalescos recordam-me a origem da coisa, o adeus aos prazeres terrenos antes do início da penitência da Quaresma. Ora eu não sou nada insensível aos prazeres terrenos: mas ver isso traduzido por roliças moças da Mealhada ou matrafonas de Torres Vedras é coisa que me ultrapassa. Depois lembro-me que os meus amigos mais lidos e carnavalescos são pessoas muito sozinhas.
Como último recurso os mais viajados descrevem o esplendor do Carnaval do Rio, a loucura orgiástica de Salvador da Bahia, as mulheres lindíssimas e alegremente acessíveis que pululam nesses lugares. Erro deles. Sou um tipo antiquado, que acredita nos velhos rituais da sedução: uma mulher bem vestida, um bom vinho, um restaurante simpático, uma conversa estimulante. E assim de repente não estou a ver como poderia fazer isso mesmo com a mais deslumbrante das mulheres se ela estivesse vestida apenas com plumas a sair do traseiro. Chamem-me romântico.
Aqui chegado, é justo dizer que ao longo dos anos a minha atitude em relação ao Carnaval tem vindo a evoluir da fúria pura e dura para uma espécie de melancolia filosófica. Em vez de rosnar insultos à simples visão do desfile de Ovar assola-me uma tristeza que vem da confirmação da natureza humana (de que não sou especial admirador). Vejo o Carnaval português como a prova viva das dissertações existencialistas de Kierkegaard. Tenho a certeza de que um minuto com a escola de samba da Mealhada Bota-Aí-No-Cangaço (repleta de adolescentes tiritando ao frio enquanto cantam) faria com que Sartre escrevesse O Ser E O Nada de rajada (e com A Náusea como prefácio). Até o provérbio «A vida são dois dias, o Carnaval são três» me parece ter sido escrito por Camus, como epígrafe para O Homem Revoltado e denunciador do ser humano abandonado a si mesmo, sem divindade que lhe valha. E é pensando na palidez da condição humana que me sento enquanto vejo uma mulher lindíssima a sorrir para mim, plumas saindo-lhe do traseiro.
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