Dizem que nós, portugueses, somos um excelente público. Discordo pesarosamente. Não somos um excelente público, somos uns fáceis, umas maria-vai-com-as-outras. É diferente.
Sempre me intrigou esta aparente paixão pela música. Se compramos poucos e, frequentemente, maus livros; se vamos cada vez menos ao cinema e os blockbusters lideram sempre o box-office; se pensamos em teatro e o primeiro nome de que nos lembramos é Filipe La Féria; como poderíamos, depois, ter um coração melómano à prova de bala?
Se o amigo leitor não tiver mesmo mais nada que fazer e estiver, por exemplo, acamado ou de quarentena ou debaixo daquele móvel pesado do Ikea, desde a semana passada, que tentou montar sozinho para poupar nos custos da mão-de-obra, espreite uma edição do “Top +” ou deite uma olhadela à lista de DVD musicais mais vendidos entre nós: no surprises. Estarão lá, à cabeça, num índice e noutro, Carreira-O-Velho e o Avô Cantigas. Procure pelos Franz Ferdinand, Arcade Fire, Sigur Rós, Radiohead, Nick Cave, essa malta toda que enche salas de cada vez que cá vem. Onde estão eles? Não estão. Ou, na melhor da hipóteses, aparecem lá entalados no 15º ou 22º lugar, entre a compilação das novas músicas da Carochinha e os remixes da Shakira.
Então, que multidões são essas que enchem os concertos, mas não compram discos?
Ponto um: é mais ou menos sempre a mesma multidão. Há umas periferias oscilantes, mas o núcleo duro percorre os espectáculos ao vivo das bandas boas como uma trupe de enófilos a rota dos vinhos Alentejo. Ponto dois: é isso mesmo – uma multidão que vai a concertos, mas não compra discos.
Resulta disto o quê? Que, salvo honrosas excepções, a massa vai aos concertos por uma canção. Berra como se a estivessem a esfolar quando a banda sobe ao palco, mas logo se silencia. Aplaude os dois ou três primeiros temas e, depois, perde o entusiasmo. Bate palmas e responde “Yeah! a tudo o que o vocalista disser, seja “obrigado”, “are you havin’ fun?”, um elogio rasgado ao nosso sol e à nossa comida (mesmo que chova a potes e ainda só tenham tido tempo para uma refeição). Depois, canção a canção, de desconhecimento em desconhecimento, a massa vai esmorecendo. Recosta-se, cruza os braços, conversa, tira fotografias com o telemóvel em que nunca se identificará se quem está em palco é o Iggy Pop ou a Romana. Fica um sentimento de ejaculação precoce colectiva. Fica no ar um cheiro a depressão pós-coito, com vergonha e tédio à mistura. Aborrecida, a massa começa a pedir aquela canção. Aquela. O hit lançado há 15 anos e que a banda tem tanta vontade de tocar como de que lhe pisem um pé. Pede. E pede. E pede. Os artistas lá lhe fazem a vontade: “This next one’s called…”. E aí a massa explode de alegria. É golo. Um surpreendente “second coming”. A oportunidade para soltar o grupo coral que há em nós. E pronto. A partir daí, já não é preciso mais nada. Eles que toquem o que quiserem. A obra que fizeram nos 15 anos seguintes e não interessa ao menino Jesus. O melhor é até sair antes do final do concerto para não apanhar muito trânsito.
E muito mais haveria a dizer. Da ditadura do gosto ao atrevimento do preconceito, passando pelo ambiente non-sense dos festivais de Verão. Mas fiquemos por aqui, que isto era só um desabafo a propósito do concerto dos Oasis e de como 9,5 em cada 10 alminhas presentes só lá foram por causa de “Wonderwall”, ainda que tivessem ouvido 20 temas bem melhores.
Voltaremos ao assunto no encore.
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