De repente o mundo inteiro deu em especialista de Darwin. O homem está em todo o lado, desde as capas de revistas especializadas ao bas fond analfabeto das conversas do Snob. Estaco de espanto na gasolineira perante um aumento do preço do combustível e o serviçal incumbido de me segurar na mangueira sai-se com um “É assim, amigo, quem tem dinheiro pode, quem não tem não pode. É a selecção natural”. Diz isto todo enfunado do poder que o seu lugar de segurador de mangueira lhe atribui, diz isto com o sarcasmo que é natural aos observadores privilegiados (como os seguradores de mangueira), diz isto sem reparar que ele próprio “não pode”. Em não tendo dinheiro opto pelo eléctrico, vejo-o passar, vou a correr atrás dele mas sou ultrapassado por um puto novo que o alcança a tempo enquanto eu fico apeado. E aquele monstrinho de acne grita, “É assim, velhadas, é a selecção natural”. E eu fico à espera que o eléctrico descarrile e o esmague.
Darwin pula e repula na língua das gentes, salta de garganta em garganta como uma gripezinha irritante, anda em bolandas na boca dos que o não leram ou tresleram de acordo com o que mais lhes interessava. Homens socorrem-se dessa expressão catchy que é “selecção natural” para justificar o seu direito a disseminar as suas sementes pelo maior número de fêmeas possível; e as mulheres esforçam-se por lembrar que a ciência nunca chegou a provar que a cozinha é seu o habitat natural, pelo que a cozinha não tem direito algum a seleccioná-las para a tarefa de cortar a batata e grelhar o peixinho. Políticos dizem que o povo (o meio) os legitimou (seleccionou); enquanto os seus oponentes bradam que o político enganou o povo, pelo que a selecção é artificial, logo falseada, um horror nunca visto desde que se começou a chumbar dentes para evitar gangrenas.
E todos juntos, unidos por esta nossa incapacidade de ler e calar, recorremos a três frases feitas do velho, porque adoramos citar alguém que é bem citar, lá poderíamos não saber tudo sobre esta coisa que é essencial saber e ainda por cima vai bem com uma saladinha de rúcula? E porque somos sofisticados dizemos coisas magníficas, que a moral não existe, que é só um esquema de acção para a sobrevivência, e cheios de convicção avançamos e extrapolamos (porque já percebemos como esta porra toda funciona) e, da prevalência da táctica sobre a técnica no futebol moderno à proliferação de revistas como a adorável Happy (por falar nisso, hoje já atou o seu marido à cama com algemas, enquanto experimentava as delícias da bissexualidade com uma desconhecida?), passando por aquela simpática luta de espécies ali em Gaza, temos explicação para tudo: é a selecção natural. E depois de dizer estas baboseiras inconsequentes, lá prosseguimos, todos contentes com a nossa lucidez e sabedoria, rumo à próxima discussão infundada, pode ser uma qualquer poque temos opiniões sobre tudo e lemos uma coisa qualquer sobre toda e qualquer coisa.
Isto anda assim porque o barbudo faz anos. E como faz anos volta-se a falar dele e duas ou três ideias tornam-se receituário pop para todos os males. Mas o aniversário do barbudo passará e depois Darwin voltará ao esquecimento natural que é a ordem natural da estupidez humana, enquanto outro desgraçado que trabalhou a vida inteira será resgatado e inapelavelmente distorcido pelo incontrolável papaguear humano até à exaustão. E nessa altura explicaremos Gaza, a táctica e a Happy recorrendo a outro camone qualquer e tudo estará bem no nosso mundo, tudo estará como sempre, muda a citação mantém-se a baboseira, essencial é a que a gente se mantenha a palrar, palrar muito e dar pulinhos também.
Mais vale deixar-me de tangas: também gostava de juntar-me à festa, mas de Darwin (ou outro camone qualquer) não percebo nada. Para mim a sobrevivência foi muito bem explicada por um tipo inglês relativamente céptico, na realidade o único tipo que li com atenção à excepção de Valdano. A coisa resume-se a isto:
“They fuck you up, your mum and dad.
They may not mean to, but they do.
They fill you with the faults they had
And add some extra just for you”.
Àquela parte do “They don't mean to, but they do” eu costumo chamar “Biologia”. Ao último verso chamo “Evolução”. E a tudo isto que escrevi chamo “Não ter nada para fazer e armar ao pingarelho”. (Também tenho direito.)
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