Posso afirmar que nunca estive a mil e, se tudo correr bem, nunca virei a estar. Estar a mil é uma condição característica da sociedade moderna, não tanto enquanto verbalização destemida e assertiva da compressão espacio-temporal que faz galopar a nossa cultura, mas enquanto tema que me lembrei de abordar há poucos dias atrás.
Estar a mil é ser-se mais alto. É ser-se maior do que os homens. Infelizmente,
estar a mil é, também, dizê-lo cantando a toda a gente. Quando alguém nos diz que está a mil, não nos remete apenas para a velocidade a que a mundanidade da sua vida se processa. Estar a mil é também dizer muito acerca daquilo que se fez - geralmente pouco mais do que aquilo que habitualmente se faz.. Estar a mil é ter que resolver três problemas na Loja do Cidadão, mas fazê-lo em três pisos diferentes e, três senhas tiradas depois, ter que passar pelo escritório para ver os mails. No essencial, estar a mil é ter que resolver assuntos que não nos incomodam nos restantes dias, e conseguir encaixar isso num horário de expediente manifestamente injusto. É uma joie de vivre da vidinha.
Por outro lado, é uma condição jamais partilhada, a um só tempo, por dois indivíduos. É absolutamente exclusiva, um pouco como viver com uma doença grave. Se alguém nos diz que teve um dia a mil, que não nos passe pela cabeça poder ter tido um dia igualmente filho da mãe. Podemos ter resolvido problemas vários. Podem as soluções ter-nos levado a curar uma doença grave, salvar uma família de linces ibéricos que andava à deriva na Conde Valbom, ou sanear financeiramente uma PME sem despedimentos colectivos. Tudo isso desinteressa.
O verdadeiro drama será sempre exclusivo do fulano das nossas relações que, pleno de facúndia, se lembrou de equacionar metaforicamente a velocidade a que o seu dia decorre - ali especado à nossa frente.
Mas estar a mil é também falar de tudo o que ainda não se fez. É o porvir de um gajo ocupadíssimo que dispensou um minutinho da sua vertigem para conversar. Assim, estar a mil é também uma condição revestida de humanidade e de um profundo sentimento de partilha. Que alguém capaz de passar pelos acontecimentos da sua vida a uma velocidade oito vezes superior à permitida por lei nas nossas auto-estradas se sinta, ainda assim, compelido a parar no Canal Caveira da sua convivialidade, não para atestar, esvaziar, ou aviar, mas tão somente para conversar, é um comportamento que nós, transeuntes vagarosos de Estrada Nacional, jamais seremos capazes de retribuir.
Vasco Mendonça
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