Não sei se é da crise, do tempo, de mim ou da combinação fatal destes três factores; mas a verdade é que me sinto hoje distante das crónicas afectivas, daqueles textos com pedaços de sentimento e bifidus activos. Não que não os faça com gosto ou sinceridade. Só que hoje, e porque sou como toda a gente, apetece-me embirrar. E é bem sabido que uma boa embirração é como ter feito amor com a mulher mais bonita do mundo: só funciona na perfeição se partilharmos o facto com mais pessoas.
Por exemplo, já embirrei com a minha analogia anterior, fraquinha que só vista. Acabo de embirrar também com a última frase que escrevi, uma concessão gratuita às expressões idiomáticas brasileiras. Mas enfim, concentremo-nos em algumas pequenas maçadas do quotidiano, que provavelmente o leitor também conhece. Eis um clássico, que acontece com uma frequência assustadora: a criatura de Deus que nos saúda invariavelmente com «Bem disposto?». Já está a ver a coisa, não é? Um tipo vai na rua e esbarra sem querer com um conhecimento nebuloso de uma noite tardia que em vez de um «olá», «tudo bem?» ou o mais correcto,simples e silencioso aceno de cabeça resolve perguntar «Bem disposto?». Isto é de uma invasão de privacidade sem nome. Não é saber se estamos bons de saúde; é saber se estamos «bem dispostos», como se fosse costume comungar os nossos humores em qualquer lado. O que se pode responder? «Sim, acabei de assistir a um atropelamento»; «mal disposto»; ou o sempre eficaz «Estava».
E se olharem para este canto, mais uma linda embirração, das piores que podem acontecer: encontrar gente que gosta de contar sonhos. Não deve haver nada no mundo – que digo eu, no universo! – tão chato e inútil do que ouvir alguém começar «Vê lá tu que no outro dia sonhei que…».Pelo amor de Deus. Até os sonhos eróticos em que somos protagonistas são um filme em slow-motion do Manoel de Oliveira quando contados por outrem. Essa gente não percebe que nos está a contar uma coisa que aconteceu enquanto estava a dormir. Não aconteceu, portanto. É por isso que a minha ideia de inferno é fielmente retratada na série de tv Médium, em que uma senhora acorda o marido a meio da noite para lhe contar os sonhos que teve. Motivo suficiente para divórcio ou, menos violento, homicídio.
Não quero maçar mais ninguém por hoje. Ia escrever sobre o povo que gosta de contar os seus irrelevantes acidentes de viação («Então eu vinha por aqui, estás a perceber, e o gajo veio por ali, atravessou-se ali naquela esquina da Brancaamp, sabes qual é, e travou blablabla»), mas isso quase que merece um texto autónomo. E há mais, tanta coisa mais na nossa pequena loja de embirrações. Só é preciso que se perceba que não se trata de snobismo, porque ninguém embirra para manter um status ou impô-lo ao outro. Trata-se de preconceito e misantropia em graus mais ou menos inofensivos, para usar todos os dias. Para que isto aconteça basta viver entre pessoas. Ou pensar nas piadas dos empregados de cafés.
De escrivaninha a 1 de Fevereiro de 2009
Das dos empregados de cafés a melhor foi a que sofri, durante dois anos, quando recebia a minha "bica cheia": "Cá está uma italiana! Sabes que há italianas com 2 metros?..."
E comentar que antigamente o tempo era diferente?..."Havia 4 estações diferentes e bem definidas...Hoje ninguém percebe este tempo!..."
Pronto, mas afinal, só lhe dei mais umas embirrações para a sua lista que ainda só ia na 1ª parte.
A ideia era dizer que gostei e que me identifiquei.
Ahahah! Como a percebo, escrivaninha. Mas aqui entre nós, a lista não tem fim...Muito obrigado.
De Luis Serpa a 2 de Fevereiro de 2009
E as horas de sono, Nuno, as horas de sono!
De
Teresa a 13 de Fevereiro de 2009
Solidária como sempre, Nuno!
Nunca tive paciência para ouvir contar sonhos, para ver sequências de sonhos em filmes (tirando, é claro, o fabuloso The Woman in the Window de Fritz Lang, mas isso é outra conversa), para ler a descrição de sonhos em livros - pois se até o sonho da Relíquia me põe impaciente...
Acrescento à sua lista os motoristas de táxi conversadores.
Grande beijo.
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