Não tenho um problema com os mortos. Tenho um problema com os vivos que estão sempre a citar os mortos. O Zé Carlos Ary. Sá Carneiro. José Maria Pedroto. Só para nomear a trilogia mais evocada. É um golpe baixo e um bocado moralista. A pessoa está numa discussão, encurrala o oponente e ele, sem saída possível, saca da manga a citação dum morto: ah! Mas o Zé Carlos Ary dizia que… Certa vez, o Pedroto… Sá Carneiro, nas suas notas, chamava a atenção para… E, é claro, o morto subitamente aparecido em auxílio do nosso adversário está sempre em acordo com ele e profundo antagonismo connosco.
Aí, a conversa acaba-se. Rebater um morto seria considerado profanação de túmulo.
Se uma pessoa discutir literatura e citar Eduardo Lourenço, não vale como fonte de autoridade. Porque o Lourenço às vezes isto, às vezes aquilo, está velho, está isto e aqueloutro, são coisas do Lourenço. Mas se citar o O’Neill, estimado público, não se fala mais no assunto. Jacinto Prado Coelho também dá. Qualquer dia, Eduardo Prado Coelho também (por enquanto não porque, ainda agora, estava vivo).
A mesma coisa para a política. Não se pode citar o Obama, quanto mais um português vivo. Haverá sempre questionamentos, levantar de dúvidas, objecções. Mas cite-se o dito Sá Carneiro. Humberto Delgado. Hayek. Rawls. É limpinho. Ninguém faz mais farinha.
No futebol, é do Pedroto para trás. Presidente, treinador, jogador que se queira trazer a lume, tem de ter batido a bota há pelo menos 20 anos. Quantos mais anos de morto tiver, melhor: mais razão terá.
Em Portugal, para se ganhar uma conversa, não serve de nada a inteligência. É preciso ser-se póstumo.
É uma crença muito própria da lusitanidade: depois de morto, não se vai para o céu nem para o inferno; não se é pó, cinza e nada. Reencarna-se numa vaca. Uma grande vaca sagrada, inchada de argumentos para defender tudo e o seu contrário.
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