Ui, ui, ui, que ele está aí. Sinto o seu peso, a sua gordura, a sua sombra, o seu bafo fedorento e maligno. Sei que ele está atrás da porta. Sei, sei. Sinto-o a espreitar pela fechadura com o seu olho mau e pessimista. Escrevo esta sinusítica crónica na cama – com o edredão por cima das minhas despeladas pernas (que tanto me envergonharam nos ginásios e nos areais da minha adolescência). Não vais dar cabo de mim, ó cabrão. Não te vou deixar entrar no meu quarto, 2009. Pelo menos por enquanto ficas aí, sozinho, a sofrer.
Ontem fiz birra, bati com o pé no chão, abanei a cabeça, pus as mãos nos ouvidos, atirei os pistachios para o sobrado. Em casa de uns amigos, quando se fazia a contagem decrescente para a entrada no novo ano, tomei uma decisão: não vou entrar em 2009. Não vou, não. Tenho esse direito, essa liberdade. Se toda a gente me diz que vai ser um ano catastrófico, por que é que me vou meter nisso? Se os gajos da economia gritam em cada esquina que vai ser um ano filha da puta para que é vou aceitar que faça parte da minha existência? Deixem-me cá com o meu 2008, o meu emprego na função pública. Não quero cá confusões e aventuras “neoliberais” com esse (como é que se chama?) 2009.
Quando saí de casa dos meus amigos, já dentro da viatura, era o único que havia ficado em 2008. O resto do gang estava cheínho de confettis na cabeça e no discurso. Eu mostrava-me sisudão, como um burocrata a comer um folhado de salsicha na hora do lanche. Só que, sem saber, tinha o novo ano na bagageira. Sim, o sacrista estava a perseguir-me como um raptor obsessivo e determinado. Entrei em casa, corri para o quarto e tranquei a porta. Aqui, debaixo do edredão, com o candeeirinho ligado (apesar de já serem duas da tarde), ainda estou rodeado de 2008. Ao meu lado estão livros de 2008 – do O’Neill, do Roth, do Gray -, aparelhos de 2008 (o mesmo rádio Scott com péssima sintonia), a mesma fileira monocromática de sapatos do ano passado (azul fluorescente, sim). Ainda não há aqui nada deste ano. Nadinha, nem uma pulga com lantejoulas.
Sim, só abro a porta quando o animal estiver cansado, sem espumas na boca e arrogâncias de estagiário convencido. Faminto de ninguém lhe dar de comer. Deprimido de ninguém lhe dar uma festinha no cocuruto (já dei ordens à empregada para se deixar de doçuras). Aí saio do quarto e coloco-lhe uma coleira comprada no Lidl à volta do pescoço. Vou passeá-lo para as ruas, para os parques e para as repartições. E então, se me der na despenteada cachimónia, posso soltá-lo na minha vida.
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