Passei um Natal agradável, obrigado. Reduzi a habitual quantidade de doçaria ingerida de 'absurdo' para um mais aceitável 'exagero irracional', disse muitas vezes 'Pois' e 'Sim, claro' quando me perguntaram se as minhas sobrinhas não estavam muito lindinhas, treinei um sorriso doce para o momento de receber prendas inanes e quando recebi prendas inanes sorri docemente e agradeci. E aborreci-me muito.
Para fugir ao tédio pus-me a ler o blog do Mexia, onde encontrei um post curioso. Escreve o Pedro, a 22 deste mês, que uma moça disse a um amigo: "Gosto de ser bem fodida". O amigo ficou excitado, mas isso pouco importa: um homem excita-se até com o vento a soprar nos canaviais. O interessante está na interpretação do Pedro: "tirando o vocábulo, ela não disse nada do outro mundo. Toda a gente gosta de foder ou ser fodida, de preferência bem." O Pedro tem razão quando escreve que ela não disse nada do outro mundo tirando o palavrão - mas é o palavrão que faz toda a diferença, não a afirmação contida na frase. Eu explico.
Imaginemos que a senhora tinha tido: "Gosto que saibam fazer amor comigo" e posteriormente tinha procedido a uma longa e detalhada explicitação dos movimentos de anca, língua e dedos que o aspirante a amante teria de executar para a deixar feliz. Ainda seria uma afirmação de si enquanto ser desejante (tipa que fode) e também desejável (tipa fodível), mas a frase teria caído no esquecimento e o amigo do Mexia, em vez de ficar excitado, ter-se-ia entediado. Porque a frase teria sido expurgada do seu factor entesoante, que é o uso do calão. O calão serve para reconduzir ao pornográfico o que antes as mentes púdicas achavam ser pornográfico. Serve para tornar ainda mais afirmativa uma afirmação de si.
Claro que isto é tudo treta, porque qualquer ser minimamente adulto sabe que qualquer ser minimamente adulto e saudável gosta de foder e ser fodido, "de preferência bem", como o Pedro refere (não sei onde o descobriu, deve ter lido). Além disso, a frase é hoje repetida ad nauseum por qualquer fêmea aspirante a liberal e dona e senhora do seu nariz (também se fazem coisas interessantes com o nariz, e não estou a falar de drogas): toda a santa cachopa já a disse pelo menos uma vez a um qualquer tenrinho deslumbrado com o potencial entesoante do calão. Ora isto é uma constatação do óbvio disfarçada de diferença, pelo que a proposição deixa de ser uma irreprimível afirmação de vontade para ser roleplaying, o que faz da mocinha uma poseur.
Se a cachopa tivesse dito: 'Gosto que ejaculem na minha cara enquanto trauteiam A Cavalgada das Valquírias' ou 'Aprecio sobremaneira que me assentem com cintos de couro no lombo enquanto me descrevem a vitória de Kasparov sobre Karpov em 1983 com aquela toma do peão pelo bispo à traição', isto seria notícia. Assim é apenas mais uma repetição sonsa da mesma história, com os mesmos capítulos e final conhecido, apenas uma nota de rodapé num banal tema de capa da revista Happy.
O Pedro escreve "Hoje em dia uma mulher perdoa tudo a um homem, até violências e traições, mas não perdoa ser mal fodida", o que é um manifesto exagero: toda a gente pode perdoar uma certa dose de violência; uma certa dose de traição; e igualmente uma certa dose de má foda como se perdoa uma certa dose de más refeições ou de conversas aborrecidas ou de almoços de família neuróticos ou de roupa desarrumada. O que não se perdoa é a absolutização da violência, da traição ou da má foda.
Quando o Pedro acaba o post a exclamar "Abençoadas" às senhoras que gostam de ser bem fodidas mas não se importam de ser maltratadas ou traídas está apenas a descrever um imaginário feminino que lhe interessa para confirmar a sua imagem de si. Mas está a fazer um mau serviço às mulheres (como aliás ele certamente confirmará), porque está a descrevê-las como seres que procuram a autonomia unicamente pela foda - pior: pela foda que recebem e não pela que dão. E que por ela são capazes de se submeter a tudo, inclusive à violência - da mesma forma que antes o fariam (suponhamos) pela segurança.
E isto reduz a autonomia da mulher a uma caricatura. Porque raio a autonomia tem de passar pela foda, porque raio se "afirma" a foda? Antes a sexualidade não passava pelo prazer feminino? Tirando certas excepções (a corte japonesa no século XI parece exemplo demasiado rebuscado), não, não passava. Mas também é certo que antes eram as mulheres que cozinhavam; que passavam a ferro; e que se ocupavam da educação das criancinhas. E é tendo em conta todas essas anteriores manifestações da primeva submissão feminina, que rogo pelo dia em que ouça uma mulher a dizer: "Eu gosto é de ser bem alimentada", ou "Homem que me queira tem de me passar bem a ferro as saias plissadas". Isto seria uma afirmação de individualidade original. Até lá, é só folclore.
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