Se o leitor pesquisar o Google imagens com as palavras "conchas de vieira", o que obtém são imagens de conchas de um molusco lamelibrânquio acéfalo, a vieira. Mas se juntar "soufflé" a estas palavras, as imagens de vieiras são substituídas por fotogramas de Jean Paul Belmondo, em À Bout de Souffle. Também uma camisa-de-forças cria condições para associações de ideias inesperadas. A imobilidade do corpo estimula o cérebro e os braços cruzados são a verdadeira pose de pensador - o que Rodin esculpiu foi um tipo com enxaquecas.
A psico-somatização é a manifestação involuntária da alma no corpo. Deixando de haver corpo, como sucede quando se está numa camisa-de-forças, o que o homem tenta é a manifestação voluntária do corpo na alma, isto é, o delírio controlado. Sei por vizinhos de quarto mais experientes que esta técnica permite induzir experiências extra-corpóreas em vida e um deles contou-me que já conseguiu ir comprar cigarros sem sair da cama - o problema depois foi trazer o corpo de volta. Tudo isto me soa algo inverosímil, devo confessar. O meu delírio ainda vai pouco além de tentar controlar as emoções com pensamentos, algo não muito diferente de retardar o orgasmo com imagens anti-climáticas - a propósito, obrigado, Professor Doutor Cavaco Silva.
Esta nova rotina trouxe-me à lembrança a primeira vez que utilizei a técnica de evocar pensamentos para induzir estados de espírito. Era criança e havia já passado pelo trauma que é um jantar de soufflé de peixe em concha de vieira. A minha primeira reacção foi encharcar-me em Sugos de hortelã-pimenta para esquecer aquela refeição e só dias depois, perante outra refeição pouco apetecível, percebi que o soufflé de peixe era um magnífico modulador de sensações. Evocar o soufflé permitia-me relativizar uma má refeição. Nada era pior do que o soufflé de peixe em concha de vieira. Amadurecer resumiu-se a partir de então a encontrar o equivalente ao soufflé para outros domínios: o local de férias mais detestado, a peça de roupa que mais me custou vestir, o colega de escola mais irritante, a namorada menos estimulante. O que temos nesta legitimação empirista de um arquétipo negativo é uma dupla violação do platonismo, mas se a ideia da namorada-soufflé não me deu o grande amor da minha vida, permitiu-me viver com mais amor.
Aqui na Suiça vou-me esforçando por aperfeiçoar esta técnica. Dizem-me que com dois traumas e um pensamento arrebatador se consegue gerar toda a gama de sensações - inclusive corpóreas - próprias da existência. Dizem-me que preciso apenas de encontrar os meus pensamentos primários - o vermelho, o azul e o amarelo das memórias - e que então basta aprender a doseá-los. Há nesta ideia de reduzir a memória a três pensamentos algo de extremamente perturbador. Nomeadamente porque um deles terá de ser, por mero direito de primazia, o soufflé de peixe em concha de vieira. Goodbye, gravitas, goodbye...
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