Eu adorava manifestações. Sabendo que havia um ajuntamentozinho onde se berrassem palavras de ordem e uma marcha, de preferência, Avenida da Liberdade abaixo e lá ia eu.
Era uma sensação única: de braço dado com os camaradas, fossem eles do PSD ou do PCP, do sindicato dos Metalúrgicos ou do movimento Pró-Vida, incentivando os companheiros de luta menos entusiasmados, insultando os inimigos, acenando a cabeça - tipo concerto death metal - aos discursos, eram sempre umas horas bem passadas. Apesar de a manif por si, qualquer que fosse o tema repito, valer sempre a pena, a verdade é que quanto mais à esquerda fosse a dita, melhor. Aquelas musiquinhas são irresistíveis. Quem nunca experimentou descer a Avenida da Liberdade a cantar o “Unidade, unidade, unidade, do trabalho contra o capital” ou a entoar um belo “de pé famélicos da Terra” num comício de apoio aos heróis da revolução cubana na Voz do Operário, não sabe o que perde. Para mais, as festas destes cidadãos são coisas mais sérias. Há momentos em que parece mesmo que eles acreditam naquelas coisas. Ou, se calhar, era eu que os intimidava com o ar convicto que gritava a Internacional ou me comovia com o sofrimento dos povos oprimidos ou a luta contra o imperialismo dos resistentes albaneses.
Outros que têm muito jeito para estas coisas são as Igrejas, pelo menos, a que conheço melhor, a Católica. Estou convencido, aliás, que este meu gosto pelas manifs tem a ver com o facto de ter frequentado missas até a adolescência. Apesar de a comunhão ser menor (e se calhar foi por isso que desisti: aqueles ares pesados e o pessoal ajoelhado e de cabeça baixa a barafustar baixinho não é propriamente divertido), sempre havia umas musiquinhas jeitosas e uma parte de que gostava muito que era quando nos tínhamos de saudar “na paz de Cristo”: ia por ali fora a distribuir bacalhaus e beijocas que era um mimo. E, lá está, esta rapaziada também parece mesmo que acredita no que o líder apregoa.
Infelizmente, tive um desgosto que acabou com estas minhas actividades de manifestador amador tipo operário da Lisnave de 1975.
Eu era um rapaz que organizava as minhas incursões “manifesteiras”. Tinha o meu sobretudo verde para a campanha do Freitas, o meu belo lenço de xadrez palestiniano, a minha T-shirt do Che. Treinava o quequismo (maneira de falar com muito “percebe” e “pronto” e que deu muito jeito para os referendos do aborto), aprendi umas palavras de eduquês (as manifs de professores estão sempre na moda), enfim, tudo como devia ser. Até que um dia, fiquei mesmo indignado com o aumento das portagens na Ponte 25 de Abril e resolvi ir participar no bloqueio. Aquilo foi mesmo do coração, nada que ver com o meu hobby. Num impulso, saí a correr do trabalho e meti-me no carro. Dei a volta por Santarém e cheguei ao bloqueio a buzinar como um possesso. Achei que estava a perder qualidades já que as pessoas olhavam para mim, assim, meio de lado, algumas chateadas mesmo. Até que fui insultado e partiram-me o vidro da traseira.
Três meses para a peça chegar de Inglaterra: a Rolls Royce não tinha o vidro em stock.
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