O clima já não pode servir de desculpa para estes momentos. O cinzento do céu, o azul proibido e laminar de Lisboa, combinado com o frio que estimula a memória não são para esta crónica chamados. A verdade é que precisamos destas alturas – instantes em que regressamos ao nosso passado através de objectos, músicas, cartas, cheiros. O Proust a que temos direito.
Se o escrevo agora foi porque me aconteceu várias vezes, e como posso, generalizo a experiência. Há alguns dias regressei ao prefácio de mim, cortesia de velhas revistas, postais, fotos, discos e memorabilia vária. É um ritual que não tem hora certa, mas sei que se irá repetir. E reparem: não é por nostalgia. Não me interessa voltar a viver o que vivi. Mas tocar, ler, sentir o meu passado é uma arqueologia dos afectos que me sustém. Recompõe o meu mísero cosmos pessoal, como um deus a criar o universo. Ser o demiurgo de mim mesmo: eis a minha mais nobre e patética ambição.
É também, reconheço, um desporto perigoso. Se bem que o passado seja de facto um país estrangeiro onde é bom ser reconhecido quando lá se regressa, esquecemo-nos na comoção de voltar a ver o que fomos e com quem estivemos que há zonas onde não podemos voltar. Aquele poema. Aquela canção. Aquele rosto. Aquela felicidade, hoje estúpida e improvável.
Para mim é um disco. É certo que tenho muitos que me sinalizam a vida, outros que ainda não conheço que farão o mesmo. Outros ainda que tomo em vez de ouvir, como remédios para a alma (que linda paráfrase para 'Sinatra). E depois há os discos proibidos, quebrar o vidro só em caso de emergência, contém excesso de alma e tristeza, manter longe das crianças.
Aconteceu. Resolvi arriscar a ouvir Songs Of Love And Hate, de Leonard Cohen - para mim o disco mais tristemente belo do universo. E não aguentei. Sei de cor aqueles passos (outra...) mas mal soaram os primeiros versos de Avalanche fui asfixiado pela beleza negra e senti que não ia aguentar nem mais um segundo. Estava demasiado feliz para o ouvir e ainda pouco triste para precisar dele. Cobarde, fugi.
Tenho a certeza de que todos têm os seus estimulantes de memória pessoal de que se aproximam com algum receio. O meu é este mas nem por um minuto o dispenso. Está ali, à minha frente, à espera do dia em que eu tenha o pudor suficiente para me apresentar à extrema beleza.
De Anónimo a 30 de Novembro de 2008
A relação com as memórias é realmente complexa. A música, os cheiros - aromas, perfumes, ou até fumegações de cozinhados -, as fotos e, o que é ainda mais complexo, reviver o passado. Melhor, algum passado. Há medida que caminhamos na idade, nem sempre se torna um exercício ágil - se é que a vida deve ser reduzida a exercício -, remexer nos sentimentos que ficaram arrumados nos anos 80, 70, 60 ou 50. Todos mudamos. O mundo muda. E é impossível recuperar a extrema beleza do passado.
Sobretudo, haverá muito mais beleza por viver no futuro.
Cumps
De Anónimo a 30 de Novembro de 2008
(À medida)
Este modelo de comentários do Sapo tem destas coisas chatas...
fica rec-ti-fi-ca-do
De
mdsol a 30 de Novembro de 2008
Há por aí uma frase que vou citar de memória e sem referir o autor (não me lembro): Não se deve voltar a um lugar onde se foi feliz!
:))
Ah mas eu acho que sim! E onde se foi infeliz também... A questão é sempre estar preparado para o que fomos.
De
mdsol a 30 de Novembro de 2008
Gosto desse arrojo! É bom.
Se calhar na minha idade (balhamedeus!!!) já vou tentando poupar-me a decepções... Claro que se pode sempre argumentar que só se decepciona quem se ilude! Bom, adiante... Independentemente... Estou mais pela pedagogia da alegria do que pela pedagogia da dor...
:))))))))
Se existe uma Geração Independente, teoria que tento provar, ela está cada vez mais viva, sobretudo por aqui, no Sinusite, onde aparece bem conservada, renovada, revigorada e inextinguível, cada vez mais à frente e cada vez mais perto daquilo que foi antes, nos jornais e revistas por onde residiu, e daquilo que será.
Tentar captar essa geração é cristalizar, coisa de borboleta possessiva.
Os seus posts Nuno, já o disse e repito, são potes de ouro que desenterro dos lugares onde foi feliz, e roubo
Dificilmente serei um Sebastian, Filipa, embora como ele acredito em muitas coisas apenas por serem encantadoras. Foi muito Ruskin e Wilde desde pequenino. Obrigado pelo seu exagero.
De Anónimo a 1 de Dezembro de 2008
O gozo da pedagogia...
De
mdsol a 1 de Dezembro de 2008
E a pedagogia do gozo? Pois!
:))
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