Convalesço na Suiça, caro leitor. Nunca pensei usar este verbo na primeira pessoa. Nunca pensei passar um mês na Suiça. “Convalesço na Suiça” era para mim uma expressão mais inesperada do que “fui ao Mónaco e entranhei duas caganitas da Grace Kelly nas ranhuras das solas Timberland”, uma improvável e anacrónica imagem mas que também explica que me encontre aqui. Porque só na Suiça existe a vocação, o know-how e a reputação suficientes para se fundar e manter uma clínica especializada na cura da fixação escatológica. Como se percebe pela alusão à princesa, ainda não será esta semana que me darão alta. Recuemos uns meses.
A deriva escatológica matou o tirocínio para crítico gastronómico. Foi a mais inoportuna das doenças. Aos olhos de um crítico de restaurantes, um brigadeiro deve ser sobretudo um brigadeiro e na mousse não se pode evocar a manga como quem faz a sublimação do chocolate. O texto da demolha do bacalhau no autoclismo foi um auto-assentamento de espáduas e José Quitério nem chegou a saber que existo. Seguiram-se meses a viver como pária e só um resto de brio profissional evitou que me afundasse no álcool - incapaz de beber como um homem, nunca deixei de cuspir como um escanção - ou na droga - a fixação escatológica é uma manifestação de retenção anal, que me impedia de aceitar meter pelo nariz o que após um voo intercontinental saiu de tripa alheia.
O pullover jaz agora, posto sobre as costas da cadeira e sem cotovelos, e toldam-lhe as mangas, raquíticos braços lembrando. Parece uma muda de pele, vazia de vida. A minha alma passa metade do dia enfiada numa camisa-de-forças. Pensava que todas as almas seriam voláteis como Houdini, capazes de escapar da camisa-de-forças e só voltar ao fim do dia, para que os enfermeiros não desconfiassem, mas a verdade é que a minha alma dá-se bem com o sedentarismo forçado.
Este traje implica alguns ajustamentos. Voltei a ter quem me vestisse de manhã e me tirasse a roupa ao fim do dia. Quem faz dieta tem direito a uma refeição livre por semana, mas eles aqui são uma simpatia e deixam-me jantar sempre de mãos livres. Seguem-se duas horas ao serão, o tempo que tenho para transcrever o que registei no gravador. Os meus textos passaram a ser ditados em voz alta, porque é encamisado que tenho mais ideias. A camisa evita as dispersões do corpo e passo por uma stephen-hawkinização que me dá um acrescento de lucidez. Esse é o efeito principal da camisa-de-forças. Mas a própria camisa, como fonte de metáforas, parece ser inesgotável. O amor, o que é? É o encamisamento a dois. O amor é complicado porque quando um resolve sair deixa uma série de nós adicionais na camisa e o que fica dentro dela desespera. Enfim, de tal camisa sinto-me hoje livre e esta aqui da Suiça chega a ser acolhedora. A meio da tarde dá-me para ir até à janela e fico a comtemplar as montanhas lugar onde Nabokov e a sua mulher viveram 18 anos, o Montreux Palace Hotel. Que estranho modo de vida, isto de estar 18 anos com a mesma mulher.
(cont)
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