Excepto quando o filho adoece, vem a dias fixos: segundas e quintas ao início da tarde a chave roda por fora da porta e empanca porque a minha está, por dentro, a tomar o lugar de quem quer entrar. A minha chave não é apenas uma chave que está por dentro da porta: é uma chave que diz que há um dono para aquela porta. Eu levanto-me, abro a porta, ela entra e fica sempre as mesmas horas. Ao fim do mês sei de antemão a quantia que tenho de lhe pagar.
Ela é a empregada. Os amigos sabem tudo sobre a minha vida mas não sabem o nome da minha empregada. E eu não sei o nome da empregada deles. Ninguém sabe o nome das empregadas que os outros empregam. Reparem: empregam. A palavra tem duplo sentido: dar emprego; usar. Como toda a gente, eu emprego-a. Seria um escândalo dizer que a uso para executar uma tarefa que acho menor. Dou-lhe um emprego – e isto traz-me a vaga noção de não ter descido a fasquia em que os meus pais me colocaram, de não ter traído as expectativas da família.
Mas quando em conversa com amigos me refiro à empregada, faço questão de lhe atribuir a graça que os pais lhe deram. Não por um qualquer humanismo paternalista, não por reconhecer uma identidade a esse vago ser que uso. Trato-a pelo nome à conta de uma difusa culpa a que alguém chamou burguesa, palavra que não percebo mas que parece ditar uma boa parte dos meus comportamentos e da minha culpa.
A burguesia não existe, dizem-me. A pós-modernidade acabou com isso, dizem-me. Isso são rótulos, dizem-me. Eu aceito. E enquanto aceito, anualmente aumento o “salário” à tipa que uso para afagar o meu ego social (e, de rabo para o ar, encerar o meu chão). Meio cêntimo à hora, um euro à hora. Ela agradece-me muito. Diz que o senor Juáu ser muito bom com Laryssa. E eu penso que sim, que lhe ofereço condições admiráveis, nem sujo muito para ela não ter canseiras excessivas, por vezes até me dou ao trabalho de ser eu a comprar o “detrejent” que ela diz ter acabado.
E sinto que não sou só eu, não estou só nisto de ser boa pessoa, não sou um tonto ingénuo, os meus amigos também aumentam as suas empregadas cujo nome nunca decorei. Não por culpa burguesa, mas por humanidade para com esses pobres seres vindos de países culturalmente subnutridos, que mal sabem lavar a loiça e deixam tudo fora do sítio – são todas iguais estas empregadas, dizemos por vezes, com a consciência tranquila de sabermos que a burguesia não existe, a pós-modernidade acabou com ela, o mundo mudou e nós somos melhores, mais sofisticados e mais humanos que os nossos pais. Dizem.
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