Quinta-feira, 3 de Julho de 2008

Um Shot de metadona

 Ao subir a escadaria, é impossível não reparar nas grades que impedem o uso do poço para suicídios. Foi com o fim de economizar mão-de-obra e material que não colocaram as grades na vertical, o que teria deixado o poço desimpedido mas inacessível, porém a opção de uma grade na horizontal por piso resulta ostensiva e cada uma parece estar ali mais para encurtar e amortecer a queda do que impedir o salto. Eis-nos perante tradução arquitectónica da praxis  psiquiátrica contemporânea. Quanto à ostensão, as criaturas que se passeiam de pijama ou robe pelo quarto andar explicam por que razão a psiquiatria, muito mais do que as aulas de escrita criativa ou as bibliotecas de família, forja escritores. Zombies em pijamas velhos, alucinados cruzando-se com os jovens lobos da disciplina que se preparam para destronar Daniel Sampaio no papel de santo laico. Uma hora a observar aquele lugar produziria material para seis meses de narrativas e desnudaria o Nobel material que é o Dr. António Lobo Antunes em gajo de Benfica com jeito para metáforas. Não havendo pretensão de querer extrapolar para as outras horas, os outros dias, as noites, naquela manhã imperava uma tranquilidade generalizada, como se todos estivessem a ressacar  do ataque de nervos e pressentiu-se que as barreiras sociais são ali destruídas e reerguidas sem grande respeito pela traça original, ficando umas mais fortes e outras ainda destroçadas. Talvez por isso, L. , que com ele partilhava um dos bancos da sala de estar, lhe pediu sem hesitações o computador. Queria surfar a web, disse. Nenhuma mulher nas noites da Bica mete conversa com ele, mas na ala de psiquiatria o engate acontece, pensou... A rapariga apressou-se mesmo a usar o laptop com o computador ainda no colo do HpA. Apesar de aquela intimidade exagerada ter sido agradável, logo se agravou, pois L. consultava sem pudor o  correio electrónico dela. Preparou-se então ele para aguentar uma pose de baixo-relevo egípcio, a cabeça virada para o lado a 90 graus, a nuca oferecida a L., mas ela pedia-lhe o contrário: que lhe escrevesse uma mensagem de resposta, isto é, que a dactilografasse, pois tinha as mãos dormentes. Como recusar um pedido daqueles? Ali ficou então a ouvir, de dedos pendentes sobre o teclado,  com paciência para as hesitações dela e tentando não ler a mensagem que recebera. Foi saindo um texto de raiva ao cinismo e indiferença do namorado ou pretendente, mimético  - sim, acabou por ler a mensagem - como sempre acontece nas altercações dos amantes, mas de uma espontaneidade forjada. O HpA remeteu-se a custo ao papel de estenógrafo, sugerindo apenas, com sucesso, que se substituísse "pessoa acertada" por "pessoa certa". Só mais tarde viria a reflectir na diferença e, sendo "pessoa certa" a expressão mais corrente, "pessoa acertada" remete para a ideia de compromisso entre quem se disponibiliza para o acerto e quem disso beneficia. O HpA errou, mas o destinatário de L. não tinha um estilo feliz e para tal criatura qualquer errata seria preciosismo. Ah, ele perguntou, claro, e teve resposta, embora não a percebesse, mas de qualquer modo nunca revelaria aqui o que a levou à urgência de psiquiatria; a excentricidade é delatora. No fim ainda a deixou fazer um telefonema, como se brincassen aos polícias e ladrões, aproveitando para descer até ao primeiro andar e tratar enfim da sua papelada. Deparou-se aí com um guichet de burocracia ao lado de um guichet para heroinómanos em recuperação, todos na cavaqueira apesar da magreza extrema, bebendo shots de metadona como se fossem minis ao relento. Quem vem dos Anjos não estranha esta exibição pública da dependência e só fica a pensar no gosto da metadona enquanto sobe de novo as escadas para recuperar o telemóvel e cobrar o agradecimento a L.  Haverá hálito a metadona? Metadona com sabor a baunilha? O metadona challenge? L. devolveu-lhe o telefone, tristíssima, sem esboçar um sorriso, sem sequer um sucinto "obrigada", oferecendo-lhe logo as costas onde se lia "HSM" em letras azuis. Afastando-se lentamente e cabisbaixa dentro daquele robe turco, parecia um boxeur derrotado e em fim de carreira, mas é rapariga para menos de 30. Não teve ele coragem de lhe oferecer um copo, é certo, mas iria propor-lhe o quê, se ela está circunscrita à ala de psiquiatria? Algo sempre falha. Na Bica bebidas não faltam, mas as raparigas nada lhe dizem, em Santa Maria aparece uma rapariga mas o bar só serve metadona. 

publicado por Homem do pullover amarelo às 01:21
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