Oscar Wilde, o elitista, fez máximas difíceis de parafrasear . "I can resist everyting but temptation" tem um apuramento formal e um depuramento lógico que inibe qualquer tentativa de reciclagem. Já George Orwell, o democrata socialista, tem expressões que toda a gente reusa, como "All animals are equal but some animals are more equal than others" e "Big Brother is watching you". Paradoxalmente, é Wilde quem melhor serve o leitor, poupando-o do embaraço. Porque o maior inimigo da máxima é a paráfrase. Se do "power tends to corrupt; abolute power corrupts absolutely" (Lord Acton) alguém extrai um "a beleza atrai; a beleza absoluta atrai absolutamente", essa pessoa precisa de ajuda.
Os cozinhados da avó Maria eram imperfeitos. Didacticamente imperfeitos. Do excesso de temperos aos excessos de comida, tudo neles era excessivo. A primeira crítica gastronómica do Homem do pullover amarelo foi mesmo feita mentalmente - ainda era analfabeto - na freguesia da Ponta de Sol, ilha da Madeira. Relembre-se que a insularidade não garante e excelência culinária, mesmo sendo irrefutável que uma ilha é uma porção de terra rodeada de peixes por todos os lados. A pior cozinha do mundo é a caribenha e se o balsero cubano foge por não ter o que comer, os que lá ficam não é seguramente por causa da comida que lhes dão. Mas na Madeira come-se bem. Diz-se que a carne é mais tenra por causa do sedentarismo da vaca, que passa a vida num palheiro. Que é mais saborosa por causa do pau de loureiro que a trespassa. Que o isolamento geográfico fixou acidentes felizes, como o hábito do milho frito - e não há maturidade gastronómica sem um veículo idiossincrático para os hidratos de carbono. Que o clima quase tropical lhe deu um fruto inferior apenas à romã, a anona. Que a cultura da Madeira ludibriou o turista com o bolo homónimo e guardou para os nativos o bolo do caco, sublime por ser pão. Que o bodião, Sparisoma cretense, faz a melhor das caldeiradas. Que as castanhetas fritas ganham aos jaquinzinhos, apesar de os vivos violeta do peixe não chegarem ao prato. Que a lapa grelhada sabe melhor quando somos nós a ir buscá-la de mergulho em apneia. Que a lagosta local, o cavaco, deu inúmeras piadas, anos antes de no continente se brincar com o absurdo que era seguir um cherne com cara de boga.
O charme das coisas imperfeitas faz a tripla. Se diante da perfeição perdemos o ponto de referência, a imperfeição tem sempre a amarra que é a diferença para o que imaginamos perfeito. Fomos feitos mais para reagir a diferenças do que a sobreposições exactas. Uma leoa que persiga um antílope está a cumprir a sua condição felídea, viu a imagem da presa perfeita e pôs em marcha o seu programa animal, mas se a leoa resolve perseguir o David Attenborough na savana, de algum modo se humanizou. Com o homem sucede o mesmo e até um pouco mais, porque saturado de humanidade, ao contemplar a imperfeição ascende à transcendência. Há, depois, a sensação de magnanimidade, como aqui. Se perante a perfeição só se pode prestar vassalagem, ganhamos nobreza no elogio das coisas imperfeitas. E há, por fim, a ilusão de que experimentamos algo único. “Beauty is in the eye of the beholder”, assim mesmo, sem paráfrase. Ninguém pode fazer da perfeição alheia uma construção sua. 1984 não nos deu o Grande Irmão de Orwell que todos observa, mas sim a Jennifer Connelly, que todos passaram a observar. Desde então carregamos o fardo da sua perfeição e só a velhice dela nos poderá salvar. Ora, os cozinhados da avó Maria, no excesso de louro e especiarias, na doçaria rudimentar, no abuso da semilha, enfim, no estilo kitsch rústico, deixaram o Homem do pullover amarelo predisposto para o elogio e salvaram-no de uma errância pesarosa. Porque é sempre mais fácil perseguir a perfeição do que deixá-la para trás.
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