Lembro-me bem dos meus terrores nocturnos. Tive-os até bastante tarde. Nunca deixei de os ter, no fundo. Nunca deixei inteiramente de ser o rapaz que não conseguia adormecer porque imaginava medonhas figuras a subir as escadas da casa dos meus avós, junto ao jardim António Borges, em Ponta Delgada. Ainda hoje tenho problemas de sono e o escuro não é um território que me deixe confortável. Dormir de luz acesa continua, de vez em quando, a ajudar. Uma noite, o meu pai zangou-se com os meus medos. Foi dos momentos mais intensamente humanos que vivi e a que assisti: um pai desesperado com a estranha inquietude do filho – um desassosego que me fazia levantar da cama para ir ter em silêncio com a minha mãe, protectora, doce e compreensiva para com as misteriosas angústias do seu pequeno. Reconheço-me inteiramente na frase de Nelson Rodrigues: “Nasci menino, hei de morrer menino”. Só que, ao contrário de Nelson, não sou “o anjo pornográfico” – o buraco da fechadura não é a minha "ótica de ficcionista". Falta-me coragem para isso – para esse valente despudor. Sou uma criança, hei-de morrer criança, mas a minha “ótica de ficcionista” tropeça mais vezes no delírio da imaginação. No terror nocturno que tanto escolhe a noite como o dia. Mesmo que sob um cândido disfarce qualquer. Nascemos meninos, havemos de morrer meninos. O Nelson é que a sabia toda.
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