Sábado, 22 de Março de 2008

Olha, apeteceu-me

Pode ser impressão minha, mas sinto que “apetecer” é, por estes dias, um verbo desvalorizado. Há outros que são mais considerados socialmente, como “concretizar”, “realizar” e – sobretudo - “investir”. “Apetecer” é um verbo demasiado leviano nestes tempos em que tudo tem de ser devidamente justificado, em que cada decisão deve ser fundamentada por uma data de estudos e – cuidado, vêm aí os analistas - previsões. Apetece-me uma coisa qualquer. Mas vem logo um especialista com as suas opiniões sustentadas. Ou um estudo dizer que essa coisa não é boa. Que há outra melhor. Que, veja lá bem, pense duas, três, quatro vezes. E, pior do que tudo, que, por me apetecer isso, eu entro na categoria dos Tipos a Quem Apetece Esse Tipo de Coisa. Chegou a altura de ir para as janelas gritar que há estudos a mais. Ou por outra: os estudos são mais que as mães e, tal como as mães, às vezes podem ser muito chatos.


É tão bom apetecer-nos algo e termos um Ambrósio para nos satisfazer o apetecimento (sim, a palavra não existe mas apeteceu-me usá-la como se existisse). Hoje, a frase do anúncio “Ambrósio, apetece-me algo” seria transformada em “Ambrósio, decidi fazer um investimento em algo”. E o Ambrósio não seria um mero motorista com ar patusco mas sim um assessor ultra competente. Um técnico qualificado cheio de pastas no tablier  a abarrotar de papelada com cálculos e gráficos. “Tomei a liberdade de pensar nisso”. E, zás, lá saia uma série de estudos sobre a viabilidade do investimento. E um especialista espertalhuço debaixo do banco da frente.


“Apetecer” é um verbo que costuma ser associado aos desvarios juvenis. Aos “jovens” (ah, terrífica categoria) é que “apetece”. Aos adultos, não. Os adultos tomam decisões. Responsáveis. Nada mais errado. “Apetecer” é dos verbos mais maduros e densos que existem. E, na verdade, “apetecer” ganha ainda mais densidade se dito por uma pessoa com mais de 80 anos. Há poucas coisas que comovam mais do que ouvir um velhote a informar o mundo que lhe “apetece” isto ou aquilo. A liberdade passa muito por aqui.


Revalorize-se o verbo “apetecer”, pois. Até porque merece o mimo. Pode estar associado, imagine-se o escândalo, ao amor, ao contrário do que querem fazer vingar as teses que associam os afectos a uma espécie de esclavagismo do coração. É perfeitamente legítimo gostar de alguém porque apetece gostar de alguém. Sim, há quem o utilize para justificar a violência, o bombardeio e outras variações cruéis, mas também está associado à mais genuína e livre criatividade. Quero acreditar que Gaudi desenhou a Sagrada Família”porque lhe apeteceu. Que Fernando Pessoa escreveu a “Tabacaria” porque lhe apeteceu. Que Deus, se existir (se calhar não lhe apetece existir, está no seu direito), criou o mundo e o homem porque lhe apeteceu. Porque lhe deu na telha. E nada nem ninguém – nenhum estudo e nenhum especialista  - têm alguma coisa a ver com isso.

 

publicado por Nuno Costa Santos às 00:37
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12 comentários:
De Shyznogud a 24 de Março de 2008
Não tarda estamos a falar do "recentrar", JN
De JN a 24 de Março de 2008

sim, sim shyznogud,
mas somente após, "descentralizar", "assegurar", "alimentar", "modernizar" e "garantir" a eficácia e eficiência da coesão nacional e proximidade dos cidadãos
De Shyznogud a 25 de Março de 2008
Tudo num alargado consenso, naturalmente.
De JN a 25 de Março de 2008
e com muita, muita, muita calma
(a paciência já esgotou)

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