Imaginem que vão pela rua, distraídos a olhar as montras e dão um encontrão num pacato e parado cidadão. Cabe-vos pedir desculpas e a ele aceitá-las com má cara. Mas há gente que não reage assim - e mesmo antes de nós, os atropeladores, lamentarmos o acidente, atira um desconcertante 'Peço desculpa'. Podia dar outros exemplos: se eu, impaciente com a lentidão de uma fila, começar a bater com o pezinho no chão e com isto der um pontapé no senhor da frente, este deve fulminar-me com olhar. Mas a espécie mencionada retorquirá com um submisso 'Desculpe'.
A isto chama-se desculpadeiro: aquele tipo de pessoa que nos convida para jantar em sua casa e, ainda não pusemos o garfo na boca, começa por perguntar 'Então, está bom?', para depois acrescentar nervosamente 'Acho que não pus sal suficiente', acabando em 'Se calhar não está grande coisa'. À porta, durante a despedida, sussurra 'Desculpa o jantar não estar grande coisa'.
Se telefonarmos às 3 da manhã a um desculpadeiro ele dirá 'Desculpa não ter atendido logo o telefone' . Se lhe pedirmos que nos venha buscar a um bordel na Bobadela porque está a chover, ele não só virá como dará por si a desculpa-se por ter demorado, o filho rachou a cabeça, a mulher partiu o pé, desculpa, devia ter previsto que o cão ia engolir o piaçaba e teria de o levar ao veterinário.
Esta compulsiva procura de paz devia comover-nos, mas o resultado é o oposto. É que quando um desculpadeiro se penitencia por algo que não fez, está a colocar-se no lugar do masoquista - o que nos obriga a ser o sádico. O aumento do número de desculpadeiros não criará mais harmonia - antes levará ao ruir dos códigos civilizacionais que nos ensinaram desde cedo, nomeadamente este: 'Eu sou melhor que tu'. E com isto escalará a violência, porque iremos dar por nós a libertar os instintos primários que qualquer cidadão consciente faz por reprimir.
Se algum desculpadeiro estiver a ler-me, fique a saber: eu não peço desculpa. E, por favor: tire lá esse ar submisso. Insulte-me, chame-me parvo. Eu sou. A sério. Basta ver, por exemplo, esta crónica.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.