Escrevo-vos depois do mundo ter acabado. Ou este blogue, ou ambos, não tenho a certeza.
O cenário é terrífico: há trocadilhos com Maias, Eça de Queiroz e a falibilidade da Maya. Há palavras que me ainda ressoam vindas de uma noite de poesia. Há a gratificação de ver actuar amigos com talento. Há a Babilónia do costume, com insultos desmedidos,provocações estúpidas, insinuações com preço, amizade à bruta e gratuita.
Há as confidências que nos entregam sem as pedirmos, há o deslumbre pelas pequenas coisas.
Há a saudade inexpugnável que dói de bom que é descobrir. Há o consolo do regresso que se confunde com todos os dias que queremos que venham. Há esta urgência absurda das palavras, que um tipo julgava perdida ou só movida a combustíveis tardios e nocturnos.
Há o que permanece, o que se lê nos livros. Há a estupidez, a ganância, a fraqueza, a inclinação para o mal. Há o trabalho e a recompensa adiada e sem preço.
Há um amigo ébrio que me beija na face e me diz «és de direita mas eu adoro-te, e sempre seremos amigos», a despropósito mas com razão.Há uma rapariga que não conheço que desafia um amigo para quadras improvisadas. Há esse amigo que o faz.
Há o taxista que sabe perfeitamente como governar o país e o Universo em geral e faz questão de o proclamar. Há a saudade, já falei da saudade ?
Há listas mentais de prendas que se quer dar ao nosso amor se ao menos ele aqui estivesse. Há a pureza irredutível dos filhos, que usam o perdão como se fosse uma flor comum. Há o orgulho.
Depois do mundo ter acabado, há tudo: as dúvidas, as dívidas, as dores, os amores, os rancores. Há pobres e ricos, espertos e néscios. Há Beckett que parece ter sido escrito depois do apocalipse, como um sumário. Há tipos pretensiosos que conseguem escrever frases como a anterior.
Há um branco desavergonhado que desfia o negro. Há os que dizem «esperança» sem vergonha. Há os que choram enquanto outros vendem lenços.
Há ser humano.Há o que apenas há. E goste-se ou não, não há mais nada nem há desculpas para não fazer melhor.Aqui, deste meu lado do fim
do mundo, há Deus.
E de repente talvez os Maias tivessem razão: o que somos não vem embrulhado em papeis vistosos. Sem o saberem, e pouco antes de serem massacrados, os sacanas dos índios tinham razão: o fim do mundo acontece sempre que nos esquecemos de quem somos e do que nos podemos fazer. Assim de repente, uma bela definição do Natal tal como o entendemos em que os presentes diluem os dias.
Há o fim do mundo e mesmo assim continuamos humanos. Espero o dia em que mereçamos o Natal.
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