Domingo, 21 de Outubro de 2012

Famosas últimas palavras

 

                                                                                                                                                        Ao Filipe Homem Fonseca

 

 

 

Estes são os dias de Gaspar: por todo o lado, tudo o que se escreve é profundo, sério, sentido, indignado. A realidade cresceu sem darmos por isso e não há nada mais feio do que uma realidade adulta, que assina papéis  e nos empurra para a «unmagnificent lives of adults» (para citar os The National).

 

Esta crónica não escapa a este zeitgeist cinzento (ou se calhar escapa, mas  para isso terão de lê-la até ao fim). Para já, proclamo esta coisa leviana: deveríamos preocupar-nos mais com a nossa fugaz mortalidade. Palavra de honra. Não é que não tenhamos sido avisados: na Bíblia, o imperativo "Vigiai!" exorta-nos a viver cada dia como se fosse o último, frase aliás cunhada pelo  filosófico imperador Marco Aurélio nas suas Meditações. O livro do Eclesiastes insiste que a vida não passa de «vento e ilusão». Zenão, Epicteto, Séneca: os Estóicos passaram a sua vida a preparar-nos para a morte. Não há desculpas, enfim.

 

Mas, mesmo assim, não chega. Descobri há pouco que é preciso ter cuidado com o modo como somos lembrados. São muitos os exemplos de gente que pensou nisso antes e mandou gravar nas suas lápides epitáfios notáveis: Mel Blanc, o homem das mil vozes, de Bugs Bunny a Daffy Duck, tem no seu túmulo "That's all, folks!". Sinatra, o optimista "The Best is Yet To Come"; um anónimo o brilhante "I told you I was sick"; um pistoleiro do Velho Oeste teve direito ao genial "Here lies a man named Zeke, the second fastest gun in Silver Creek"; ou o meu preferido, do grande W.C.Fields: «All things considered, I'd rather be in Philadelphia".

Só que isto não nos prepara para os dias. Se é verdade que podemos ir desta para qualquer outro lado a qualquer momento, devemos ter cuidado com o que poderão ser as nossas últimas palavras. Esta extraordinária constatação - que apresento aqui em rigoroso exclusivo mundial - surgiu em animada conversa de amigos, em que a dada altura um de nós, que confessara a sua admiração por uma bonita mulata que estava nas redondezas, disparou: «A mulata bazou?»

 

Ora bem. Acompanhem-me aqui, por favor. Imaginemos que este querido amigo, pouco depois de proferir esta espantosa frase, era vítima de um AVC fulminante (longe vá o agoiro). Qual o seu legado, o que iria ficar? «A mulata bazou?». Não pode ser. E logo a seguir, mesmo depois de termos concordado com o cuidado que devemos ter, alguém deixou escapar um «Da última vez que me entusiasmei acordei em Santo António dos Cavaleiros». Inadmissível. Imagine-se o velório: «Estávamos a beber um copo e ele disse Da última vez que me entusiasmei ,etc...». É feio, é feio.

Cuidado com as últimas palavras, meus queridos amigos. São últimas por alguma razão. Tentem florear, dar um ar barroco e memorável a cada fraseado. Ou então, que o façam com força e raiva, para compensar a injustiça desta nossa breve passagem. Eu estou a pensar seguir esse modelo no próximo ano, quando me for pedido o pagamento do IRS e eu disser, para a História, «pago mas é o caralho!".

publicado por Nuno Miguel Guedes às 20:29
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Domingo, 14 de Outubro de 2012

Vontade de viver

Desconheço se é por adubamentos em falta, por não ter tempo para falar com plantas, se por pujança do calcário na água ou sobejo de cloro, mas a verdade é que lá em casa não frutificam árvores das patacas. O único supervivente vegetativo que sobrevém fotossinteticamente à minha inépcia será um cacto fortuito mais caprichoso.

A minha fonte de rendimento é, unicamente, o trabalho o que oblitera, visivelmente, os meus rendimentos.

A juntar à labuta contraproducente e à desflorestação da varanda, soma-se a minha incapacidade para a poupança que só é comparável à facilidade com que deixo escapar fundos por entre os dedos.

 

Às vezes tenho a nítida sensação de que o dinheiro foi uma invenção para que continuo impreparado. Sou incapaz de lhe dar a volta pois, nitidamente, não resulta comigo. Não fui incluído no projecto nem constei do esboço. Estou aquém do desígnio. Faço parte das excepções, das contra-indicações. Ou, pelo menos, até hoje não compreendi o conceito.

Há anos que percebi que nunca conseguiremos manter uma relação séria. Sempre de costas voltadas, incapazes de partilhar o mesmo espaço, dividir o mesmo leito e ter contabilidade comum.

O litígio deu origem a divórcio, sem possibilidade de reconciliação.

 

Podia procurar frases batidas que jogassem a meu favor mas, a verdade é que o meu problema em relação a poupar dinheiro é que embora perceba a necessidade, não vejo como. Há um corte epistemológico entre o “porquê” e o “como”. 

 

Tenho esperança de que um dia acorde enfartado e a não precisar de comer, a odiar beber, a não ver necessidade em andar vestido e ler, pronto para dar filhos para adopção e de proventos salvaguardados.

Um dia em que não sonho com carros com porção de cavalos suficientes para abrir uma coudelaria ou anseios gourmet.

 

Percebo que sozinho não vou conseguir, pelo que a opção é acabarem-me com as vontades ou tudo quanto corteje intenção e objectivos próprios.

Operem-me. Arranquem-me o hipotálamo à bruta. Violentem-me o tálamo. Despedacem-me o hipocampo. Limitem-me as circunvoluções cerebrais. Fiquem-me com um hemisfério com opção para dois lobos. E vendam-me tudo quanto seja neurónio.

Aproveitem para arrebatar o resto. Vive-se bem sem pulmões e rins. Fígado, logo veremos! Levem-me pernas e pés para não ter de desembolsar dinheiro com calçado.

Estou determinado. A gente arranja-se com pouco se se puser a isso. E sem vontade de comer, beber, de me vestir, de cultura descurada, sem filhos e casa, as dificuldade económicos ficariam resolvidas. Acabar-se-iam as minhas lamurias acerca de impostos. Nunca mais ninguém me ouviria falar em escalões de IRS. Terminariam as preocupações com o IMI. Estaria de acordo em relação a mais austeridade. As agências de rating seriam minhas amigas. E o governo independentemente de qual teria, sempre, o meu apoio não obstante as medidas. Seria, sem dúvida, uma pessoa melhor. Preferível, pelo menos. Andaria mais leve, sem necessidade de usar carteira e porta-moedas.

 

Salvem-me! Acabem-me de vez com os egoísmos das vontades. Apetecer é desnecessário. Querer é pouco vantajoso. Desejar, ambicionar, aspirar, pretender é inútil. Mais do que isso é escusado e supérfluo.

Quem vegeta não desembolsa porque não come, não bebe, não lê e não precisa de filhos.

Jejum, desidratação, perda de hábitos de leitura são a minha estrada para Damasco. O meu roteiro para o aforro. Serei o sem-abrigo, maltrapilho, sem amigos e filhos com quem gastar dinheiro, amealhando e de punhos cerrados e dentes à mostra contra a vontade amputada. Progressos contabilizados em côdeas, lêndeas, meias sardinhas, arrobas por consumir e volumes por ler.

 

Não será fácil. Prevejo amuos, arrufos e agastamentos. Urgências de mudança e renúncia a hábitos antigos. Mas, estou preparado para a briga e já vejo a conta bancária a aumentar. Dilatando de economias. Novos cartões de crédito exclusivos à vista. Já estou com o livro de cheques preparado.

 

A vontade é forjada, maquinada, fabricada, criada, engendrada só para nos arruinar economicamente. É atrevida, afoita, insolente, desaforada, rabiando constantemente com o bom-senso. Pesa-nos no bolso. E faz-nos errar escolhas.

Quanto mais cedo o percebermos melhor.

Ponham-na de castigo. Puxem-lhe as orelhas. Cortem-na aos bocadinhos. 

Pensando bem, o melhor será tirá-la toda. Arranquem-ma. Incinerem-na. Façam-na desaparecer.

Certifiquem-se antes de lhe voltarem as costas de que foi, completamente, extirpada!

Mas, já agora, deixem-me um restinho. O que é necessário para querer viver.

publicado por Carlos M. J. Alves às 14:54
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Segunda-feira, 8 de Outubro de 2012

Ovelhas negras precisam-se!

"É um povo pacato, que aceita pacificamente as coisas desde que tenha esperança", afiançou, angustiado,  mas sem apanhar ninguém de surpresa, Ramalho Eanes sobre os portugueses, por altura  das comemorações do 5 de Outubro. 

Pergaminhos antigos por culpa dos quais nada caiu na lama.

 

Independentemente do ângulo, o português é pacato e bem-intencionado. Aceita pacientemente, amocha, aguenta-se.  

Iludido, é sossegado, ordeiro, pacífico e bonzinho. Ganhou fama de não estrebuchar, não dar estrilho [por troca directa com a esperança?!].

Capaz de ser bom aluno, de comportamento exemplar, acomoda-se na carteira do fundo para passar despercebido e cala sem consentir, por culpa dos seus brandos costumes.

Mesmo no maior dos desagrados ferve em banho-maria. Rabuja em silêncio. Para dentro.

Vai na onda e alinha com o resto do rebanho. Um cordeirinho que se põe a jeito para os lobos esfaimados à espreita. Ou que acaba, inocente, no matadouro.

Pelo bom jeito o português deixa-se ir ao sabor da melodia. Habituado a afinar sempre pelo mesmo diapasão, trauteando entusiasmado a música de sempre.

Não é de dar murros na mesa ou de a virar. Tem temperamento de monge tibetano.

 

O português encolhe-se cabisbaixo. Definha sitiado, vivendo em regime de aceitação geral do descalabro reinante. Não se acobarda e é capaz de suar a camisola, mas resigna-se. Não precisa de mais mundos novos, já deu os que tinha a dar. Ocupado a arrumar a casa, Portugal não lhe pertence até pagar as contas. Mas tem costas largas, pele grossa e lombeira de Atlas para o suportar.

É contido nas revoluções, não é insurrecto por natureza, mas por necessidade. Acredita, pueril, até ao fim, contido, não por defeito, mas feitio. 

Não é “povão”, é Zé-povinho. Não é chocante dizer que se fica pelo manguito e abdica da contestação organizada.

 

Pelo menos andam convencidos disso e muito mais. Dão-no como garantido. E aproveitam-se. Acodem pela pacatez geral. Elogiam-lhe a submissão. Castigam o comportamento económico adolescente que os próprios propiciaram. Desesperam ante a possibilidade de mudança. Os demagogos, os miserabilistas, sabujos, os que nos entregam sem luta, os defensores de mais do mesmo, do cortar a direito, os vencedores de ocasião, especuladores do erário público, adoradores do memorando, os que nos representam pelo melhor soldo, os que nos delapidam, os que acham que manifestação sonora não passa de zumbido.

 

"O povo português revelou-se o melhor do mundo", constatou elogioso o ministro das Finanças, Vítor Gaspar, para estupefacção das bancadas parlamentares que se lhe opõem. Em que pensaria quando o afirmou? Na  pacatez habitual?

 

Desenganem-se. O povo português sente-se. É filho de boa gente. Sofre. Lança maus-olhados  à troika e, caso se justifique, chega a vias de facto com quem o maltrata. Cospe azedume pelos que o desrespeitam e aperta os gasganetes aos cretinos que o menosprezam. Gosta que o ouçam. Detesta orelhas moucas e cabeças enterradas na indiferença.

 

Portugueses somos todos nós: aqueles a quem lançam areia para os olhos, os que acabam sempre a pagar, precários, a prazo, fora da validade, enxovalhados, empurrados para fora, tributados, desfeiteados, cortados, desempregados, falidos, hipotecados. Descendo, ruidosamente, orgulhosos, avenidas e transbordando nas praças. Convencidos de que a esperança é uma coisa que nos impingem para nos manterem calados. Descontentes, atulhados de promessas e fartos de ser bonzinhos. As alcateias foram surpreendidas pela força dos acontecimentos. 

 

Desiludam-se os que acham o povo português pacato. O português que se resigna é o mesmo que se agiganta ao sentir-se desprezado. O português saturado de austeridade, de se ver tratado como Zé-povinho, distraído do essencial, embalado por conversas de circunstância e discursos inúteis, já não se contenta com manguitos, agita-se, aflito das costas, atarracado, com escolioses insuportáveis de um mundo pesando-lhe em demasia e  apercebe-se que isto só lá vai com ovelhas negras, escapando ao grupo e balindo desalinhadas. Um povo de lusíadas intrépidos que tomam por zézinhos.

Tudo o resto é conversa de político. Fiem-se!

 

O tempo é de ovelhas negras. Fora do trilho. 

Essa é pelo menos a minha esperança. Mas, não será a de todos?

publicado por Carlos M. J. Alves às 21:02
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