(Para os meus filhos)
Era uma vez uma nuvem que estava farta de viver no céu. E era uma vez uma baleia que estava cansada de viver no mar.
Combinaram por telemóvel trocar de casa: a baleia ia viver para o céu e a nuvem ia viver para o mar.
Foi um momento muito engraçado. Quando a baleia chegou ao céu todas as nuvens ficaram muito espantadas.
- Uma baleia no céu? Será que aguenta?
A baleia estava um pouco envergonhada e corou, o que tornou a situação ainda mais divertida.
Quando a nuvem deu o primeiro mergulho os peixes assustaram-se muito.
Para não darem muito nas vistas tiveram uma ideia: a baleia mascarou-se de nuvem e a nuvem disfarçou-se de baleia. Assim passavam mais despercebidas.
O tempo foi passando e cada uma foi tirando conclusões sobre a sua nova vida. Quer uma quer outra tinham feito amigos mas a baleia estava um pouco farta do vento que a levava pelos ares e a nuvem sofria muito com os remoinhos que agitavam os mares e as correntes.
Aos poucos começaram a sentir saudades das suas antigas casas e resolver ligar uma à outra para combinar voltarem para lá.
Viveram momentos felizes mas, um ano depois, a baleia começou a sentir saudades dos tempos em que vivia no céu e a nuvem começou a sentir saudades dos tempos em que vivia no mar (e era chamada de Baleia Nuvem).
Decidiram então que voltariam a trocar de casa mas apenas nas férias e que desta vez não iriam sozinhas.
Assim foi: a família de baleias foi viver para o céu e a família de nuvens para o mar.
E viveram trocadas para sempre.
Acordo com a notícia da morte de um homem que não cheguei a conhecer. Naquela mesma rua, ainda se sente, por vezes, um histórico de outras violências: os saveiros a chegar, carregando doenças e outros infortúnios; vidas amaldiçoadas pelo lodo e pela miséria. Ficou este carpir sussurrante que agora ouço de duas mulheres. Os olhos encharcados pelo sofrimento constante. Ao meu lado, um amigo do defunto olha para lado nenhum e vejo-lhe a dor da memória a questionar-lhe a própria vida. Choram por eles próprios. Ninguém devia morrer ao Domingo.
Na cidade onde eu nasci, sorte foi coisa que nunca parou na estação. O comboio passa a rasgar o silêncio e fica sempre o vazio dos dias. Os tempos são outros mas, as aflições imortalizaram-se na decadência dos edifícios. Há uma calma enganadora. O Tejo, que corre tranquilo, roubou-lhes o sonho, separou-os da outra margem, como quem diz "o teu lugar será sempre desse lado". E ali ficámos todos, conformados com o erro colectivo, com as invejas e os fracassos, à espera da corrida de Domingo. A felicidade suprema chegará pelas seis da tarde, no momento das cortesias. Olharão para Morante e sonharão com Sevilha.
Nos próximos dias, a pequena cidade ganhará um brilho raro. Faremos promessas de que tudo irá mudar. Ressuscite-se a esperança. Mas, as bebedeiras manter-se-ão, acabando sempre nessa desgraça que os persegue. Regressarei a Lisboa para não mais me preocupar. As preocupações são outras, coisas mais sofisticadas e instruídas. Viva o progresso! Abaixo a província! E é com este dilema que me deito - o de não estar em parte alguma.
Como diria o Redol: nasci com passaporte de turista.
A beleza cansa e a perfeição não dá jeito nenhum. São, claramente, uma maçada.
De gancho. Exigentes. Julgam-se importantes. Embirram com o andar desarranjado. Mandonas. Não admitem perder a compostura. Sair desfraldado. Cabelo desgrenhado. Não dá para ter barriga. Mandam-nos o ar desleixado às urtigas.
Todas as minhas dúvidas acerca da natureza do belo e do sublime se acentuam a cada nova época balnear. Momento que marca o início de, em termos mais populares, cada bucha ansiar por passar a estica. Reclamando para si (obsessivamente) um corpo deslumbrante. Ansiosos por reinar no areal e ter sobre si uma miríade de olhos.
Entre 1 de Junho e 30 de Setembro de cada ano, duração da época balnear, multiplicam-se os efectivos de homens e mulheres exercitando-se frenéticos, como coelhinhos da Duracell. Adelgaçando. Rejuvenescidos do pescoço à barriga-das-pernas. Estômagos em alvoroço. Oferecendo-se, voluntariamente, aos voyeurs. Vivendo sob o mote Life’s a SPA.
Sem terem presente Yeats:
I heard the old, old, men say 'all that's beautiful drifts away, like the waters.'
A cada nova passada no areal encolho a barriga repreendido pelo belo aristotélico, seguindo critérios de simetria, composição, ordenação, proposição, equilíbrio; pressionado pela proporção, harmonia e união platónicas.
As minhas preocupações balneares são, claramente, mais filosóficas do que com os escaldões. Mais exigentes do que a simples escolha adequada do factor de protecção solar.
Em cada duna há um David acompanhado de uma Vénus lendo os êxitos literários de Richard Bach, observando-me desdenhosos. Sou, constantemente, censurado por um Doripohoros bronzeado que aproveita para repreender, com o olhar, a palidez de uma Sylvia Plath próxima, enamorada pelo nadador salvador supondo-se em Baywatch.
O que me custa na magreza dos outros é que ela exige a minha. Reclama-a. Como se dissesse: «só sou se também fores». Recaindo sobre mim uma desconfiança equivalente à reunida por Dominique Strauss-Khan. A minha liberdade acaba onde começa a dieta do outro.
Em relação a esta, o melhor a fazer seria decretar a sua inconstitucionalidade. Ilegalizá-la. Erradicá-la com uma forte campanha de vacinação. Um movimento de descontentes sob a égide «vítimas das dietas de todo o mundo uni-vos», lutando pelo seu fim.
Não me incluo num certo California dreamin’ de tríceps, peitoral e bíceps vigorosos bamboleando salinizados à beira-mar. Muito senhor do meu nariz.
Em termos estéticos, também, estou completamente desenquadrado de qualquer consideração presente em obras como o Hípias Maior, O Banquete e Fedro, de Platão, a Poética, de Aristóteles, a Crítica da Faculdade do Juízo, de Kant e os Cursos de Estética de Hegel.
A minha linha estética assume-se mais no “Boterismo”.
As minhas opções são mais gastronómicas e isso nota-se. Gaspachos, migas e rojões acumulados. A aparência não ilude.
O meu físico sobressai mais em ambiente de biblioteca. O meu potencial é mais cerebral do que corporal. As minhas possibilidades são virtuais de um ponto de vista estético tanto em baixa-mar como em preia-mar. Uns furos abaixo de uma realidade desejável. Para lá da salvação via lifting ou botox em aplicações de Photoshop.
Na melhor esplanada da praia avalio, habitualmente, a elasticidade e o empenho dos quarentões com cabelo à Jon Bon Jovi, das entusiastas das danças exóticas, mais os infiltrados do hip-hop, dissidentes com t-shirts dos Motörhead e seleccionáveis para a ginástica de trampolins. Expelindo scones, bolas-de-berlim, ensopados e açordas da cintura. Escorraçando calorias. Aformoseando silhuetas. Deserdando o remanescente. Preparando-se para a passadeira vermelha.
De bandeira içada ao desmazelo grito para dentro do balcão: «era mais uma dose, se faz favor. E já agora, mais pão que o molhinho está uma delícia.» Época inteira para «o melhor que se leva da vida é o que se come e o que se bebe». Honrarias para uma primavera pueril descontinuada. Um “deixa andar” folgazão.
Com a idade devíamos poder desleixar-nos. A barriga como direito assumido e não controlado. Ela marca, aliás, uma diferença. Redonda. Honesta. Parece dizer: «há mais de onde essa veio». Encolhendo os ombros quando confrontada. À insustentável leveza dizendo: «não, obrigado!». Indiferente. É a assunção máxima da liberdade. Em terra de magros quem tem barriga deveria ser rei.
Mas não? Ou é pela saúde ou porque fica mal… Todos os anos me sinto na obrigação de também eu ter de ser um Apolo, quando a minha índole é mais dionisíaca. Mas, a cada nova tentativa apago-me. Entre uns abdominais firmes e uma barriga cheia não hesito. A escolha é clara: entre as 220,57 kcal ganhas numa porção de amêijoas à Bulhão Pato e as 240 kcal perdidas com musculação forte ou as 200 kcal com ginástica aeróbica, prefiro o ganho à perda. E sempre se honra o poeta e escritor português Raimundo António de Bulhão Pato.
Depois repouso durante 30 minutos com o que consigo perder aproximadamente 30 calorias e junto-lhe um beijo que rende outras 30. O que sobrar fica por conta e a cultura sai valorizada!
Felizmente a estética também pode ocupar-se do ridículo. O que, de alguma maneira, faz com que tudo faça sentido.
Confirmem-me só que a época balnear acaba a 30 de Setembro. Hoje levantou-se uma aragem desagradável aqui no Pólo Norte. Desfraldado, de rins à vela, é melhor não arriscar nenhuma corrente de ar e regressar.
Há uns dias atrás, numa das poucas aparições boémias a que tenho direito com o meu amigo e co-arrendatário desta casa - o Nuno Costa Santos - falámos, imagine-se, deste blogue. Era tarde, provavelmente. Falta de conversa, quem sabe. A minha aposta, como tive o fôlego de dizer ao Nuno na altura, era que não podíamos sair do estabelecimento em que estávamos. Não porque estivéssemos, ufanos e ébrios (escolhei a ordem e a relação causa-efeito, já confessei tudo à polícia) com duas cervejas servidas em copos de vidro; era mais porque o Nuno ostentava melancomicamente uma resma de livros que incluía Peter Brook e uma compilação dos melhores monólogos do século vinte. A sério. Não se anda no Cais do Sodré assim.
Mas no meio dos risos, dos trinta sketches inventados e esquecidos (retive este, porque a culpa é minha: "o que diz Molero de Ravel"), a reiterações à beira da lágrima pela constatação da felicidade alheia ("à beira" porque um homem não chora com livros na mão) e da contínua celebração da amizade que acontece nos lugares mais impróprios e em que astrologicamente falando tudo parece conjugar-se (quantos dos meus leitores terão ido ao nightclub Roterdão a horas obscenas e terão sido brindados por um barman intelectual que propõe «shots Zizek"?), a coisa veio parar a este lugar.
Que éramos desorganizados. Irregulares. Com os mais disciplinados e regulares a zangarem-se justamente com os preguiçosos. Mas depois. Depois um tipo distancia-se, lê e vê as idiossincrassias que fazem esta chafarica funcionar. Eu, por exemplo sou dado a homilias.
«Sou o sinucínico de serviço, Nuno», balbuciei maravilhado com o meu trocadilho antes de cair do banco do balcão.
«O caraças. És um romântico na clandestinidade», respondeu o Nuno atrás do shot Zizek e dos ensaios do Peter Brook, com o Jel a carregar nos Smiths.
Se vos conto isto, leitores, não é porque é verdade (e é). É porque precisamos destas palavras para a vida e da vida para estas palavras. É porque os afectos é que movem esta treta toda. É porque o sacana do coração, por mais fato e gravata que se vista, não se pode alugar. É para que se perceba, se dúvidas houvessem, que aqui há gente dentro.
«E se fizéssemos um livro?», perguntou alguém, talvez o barman ou a Máquina da Preguiça.
«Primeiro janta-se. Depois pensamos se ofendemos os leitores de um modo tão definitivo», disse alguém que gostaria que tivesse sido qualquer um de nós mas sou eu, agora e aqui, feliz nesta memória.
«Boa ideia», concordámos em nome de toda a gente.
Não sei se irá acontecer. Há um jantar por marcar. Mas no pior dos cenários - nós decidirmos que sim e uma editora que vá ao Roterdão nos aceitar - sabei isto, amáveis leitores: não queremos que nos comprem. Queremos que saibam o grato que estamos (falo por todos, certo?) por poder fazer estes malabarismos de palavras que são pouco menos que as nossas vidas.
De qualquer forma, aconteça o que acontecer, fica já apontado que a ideia não foi minha.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.