Domingo, 29 de Julho de 2012

Aspirações

 

A good ad should be like a good sermon: It must not only comfort the afflicted, it also must afflict the comfortable.
Bernice Fitz-Gibbon

 

 

 

E quando pensamos que nada mais nos pode surpreender, eis o último reduto: nós próprios. Um tipo distrai-se e de repente bate com o nariz na sua própria personalidade, de forma tão surpreendente como dolorosa ou tragicómica ou tudo.

Assim o que me aconteceu recentemente: enquanto o mundo andava justamente preocupado com o bosão de Higgs (não sei o que é), a crise europeia (ouvi falar) ou a excelência académica de Miguel Relvas (não sei de que falam! Juro, senhor doutor ministro!), eu andava entretido e fascinado a decifrar o anúncio televisivo da Depuralina.

 

Para o microscópico nicho universal que não faz ideia do que estou a falar, explico: Depuralina Aspira Gorduras Total é (e cito) «um produto completo no combate às gorduras». Dito desta forma, a fome também o é. Mas para o leitor picuinhas ou interessado, uma pesquisa simples informá-lo-á dos alegados atributos da marca em questão. De qualquer modo, não é o produto em si (ou a sua eficácia, que desconheço em absoluto) que é o assunto destas linhas: será mais o modo, hum, criativo, como o tentam vender.

 

Fiquemo-nos para já pelo registo descritivo do spot televisivo: vários humanóides de corpos perfeitos – vindos claramente do planeta Photoshop – exibem o seu corpo exemplar em fato de banho.Os homens, com uma simetria de linhas que faria o Homem de Vitrúvio de Da Vinci parecer um sem-abrigo (o que de certa forma parece, dado o corte cabelo) cruzam-se com mulheres belíssimas, que os olham lascivamente apesar dos Speedos de 1974  que eles ostentam; estas fêmeas, por seu lado, têm elas também um formato tão imaculado que faz o espectador implorar pela mediania – ou, talvez mais saudável, valorizar as imperfeições da mulher que ama. Tudo isto enquanto a voz off, de forma conveniente, vai assinalando as vantagens do que se está a vender e, como é natural, a esperança de que todos os cidadãos poderão ter aquele aspecto.

 

Ora tudo seria normal se ficasse por aqui. Anúncios que prometem a boa forma física – e a alegada qualidade de vida consequente – não variam muito. Mas não, não: aqui vai-se mais longe. Alguém pensou que não bastaria mostrar o estado ideal a que o consumidor de Depuralina poderia chegar. Não, isso está visto, usado, os iogurtes magros e os produtos cosméticos fazem o mesmo. Era preciso uma analogia. E qual?, perguntam os leitores. Felizmente é fácil imaginar a sessão de brainstorming dos criativos, onde deveria pontificar um neo-literal:

 

«Mostrar corpos perfeitos não chega, pá. Temos que ir mais longe. Vá, todos juntos: o que é que a Depuralina faz?»

 

[copy junior, a medo]: «Hããã...aspira as gorduras?»

 

[director criativo, triunfante]: «É isso. Genial. Tão simples. Leões de Ouro, Cannes, La Croisette, aqui vamos nós!»

 

O resultado já todos sabem: temos um anuncio em que a Leni Riefenstahl filmou pessoas com aspiradores. A sério. Corpos nazis, perfeitos, lascivos. Mas todos com um aspirador ao colo. Podem chamar-me romântico mas se a Gisele Bundchen me olhasse com inequívoca concupiscência de Hoover debaixo do braço eu fugia a sete pés.

E é este o mistério que me atormenta, amigos. Porque é que se chama ‘criativo’ a alguém que acha que o melhor modo de exemplificar o verbo ‘aspirar’ é colocar aspiradores? E se a analogia de venda são de facto os aspiradores, porque não aparecem aquelas belezas arrastando um Nilfisk industrial, daqueles que pesam uma tonelada e são populares nas unidades hoteleiras de todo o mundo?

Tudo coisas que me ralam. Tantos problemas que me assolam, tantos dilemas, tantas aflições reais que tenho de apaziguar; e no entanto, sendo macérrimo, continuo na dúvida sobre que aspirador comprar.


publicado por Nuno Miguel Guedes às 01:42
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Sexta-feira, 27 de Julho de 2012

A Minha Rua é o Céu

(Para os meus filhos)


Um dia, antes de adormecer, Ivo perguntou à mãe:

- Mãe, o que é que acontece às pessoas quando morrem?

A mãe ficou calada, sem saber o que responder. Era a primeira vez que o filho lhe fazia uma pergunta tão difícil. Quase tão difícil como aquela: - Mãe, o que é maior: o amor ou o espaço? Ou aqueloutra:- Mãe, se eu um dia mandar no mundo tu vais continuar a mandar em mim?

Resolveu responder-lhe com uma resposta que já a sua mãe lhe costumava dar:

- Vão para o céu.

- Pró céu? Aquele céu?

Antes que o Ivo fizesse mais perguntas difíceis, a mãe deu-lhe um beijinho e desligou a luz do candeeiro.

Ivo tentou adormecer. Primeiro contou ovelhas, depois contou cabras, bodes, depois esquilos, raposas, cavalos-marinhos, lulas gigantes, primos, tios e tortas de limão. Depois começou a imaginar as pessoas que conhecia todas no céu. E, no meio dos pensamentos, arranjou mais uma pergunta para fazer à mãe:

- As estrelas são as pessoas mais importantes que já morreram?

Continuava a não conseguir adormecer. Achava que era por ter ficado pouco satisfeito com a resposta da mãe.

Só pensava: - As pessoas, quando morrem, vão para o céu? E como é que as pessoas vão para o céu? Há uma carrinha da escola que vem buscar as pessoas para levá-las para lá?

No outro dia de manhã, ao pequeno-almoço, enquanto comia os cereais, Ivo voltou a fazer as mesmas perguntas à mãe.

- Mãe, mas como é que nós vamos para o céu?

A mãe estava distraída a barrar a sua torrada de manteiga.

- Ó filho, as pessoas vão para o céu…pelo ar.

- Pelo ar?

Ivo ficou calado. E depois perguntou.

- Mas então qual é a diferença entre morrer e ficar apaixonado?

- Não percebo a pergunta, Ivo – disse a mãe.

- Tu uma vez disseste-me que as pessoas voavam quando estavam apaixonadas…

A mãe riu-se e disse para Ivo se despachar a comer porque já estava atrasado para a escola.

Ivo não ficou convencido. E durante todo o dia continuou a pensar no assunto. Já tinha tido respostas para o tipo de perguntas. Por que é que os cães abanam o rabo? Por que é os seus olhos era verdes? Por que é que a professora na escola estava sempre a espirrar? Porque é que a sua equipa perdia sempre? Mas a resposta para esta última pergunta estava a demorar a entender. E era uma pergunta tão importante…

À noite, antes de adormecer, Ivo voltou a perguntar.

- Ó mãe, se as pessoas vão todas para o céu o céu deve ser um sítio muito cheio. É assim tipo a casa da avó Matilde no Verão quando os primos se juntam todos?!

- Mais ou menos, Ivo.

- Já sei: o céu é como a loja do senhor Armando quando está em saldos!

- Mais ou menos, filho. Agora dorme que amanhã tens de acordar cedo para ir para a escola.

Mal acabou de falar a mãe apagou a luz do candeeiro e foi para a sala ver um pouco de televisão. Ivo ficou de olhos abertos no escuro. Só se perguntava:

- O que é que minha mãe quis dizer com ‘mais ou menos’?

Continuava sem conseguir adormecer quando pensou:

- Já sei! Vou perguntar ao Senhor Lulito!

Ivo chamava sempre o Senhor Lulito quando tinha dúvidas importantes.

O Senhor Lulito era um conselheiro mágico. Uma espécie de fada que vestia fato e gravata.

- Olá, eu sou o Senhor Lulito e sou muito maluquito! Era assim que o Senhor Lulito se apresentava sempre que aparecia.

- Olá, Senhor Lulito! Estou com uma dúvida grande.

O Senhor Lulito, que já sabia qual era dúvida de Ivo, ficou muito sério. Ficava assim quando tinha respostas importantes para dar. Pensou, pensou e pensou e por fim disse:

- Vem daí. Eu vou mostrar-te o céu! Deu um piparote, mesmo à Senhor Lulito, pegou na mão de Ivo e levou-o pela janela. Voaram os dois pelo céu, entre as nuvens. A certa altura o Senhor Lulito disse ao rapaz.

- Este é um dos céus, Ivo. Mas há outros. Ivo ficou surpreendido ao perceber que o Senhor Lulito o levava de regresso à Terra. Fora os dois pelo mundo e o Senhor Lulito mostrou a Ivo pessoas e lugares que o David não conhecia – ele que vivia num sítio cada vez mais confuso e cheio de barulho. Mostrou-lhe jardins bem arranjados e cuidados não só por jardineiros mas por todas as pessoas, novas e velhas. Bairros onde os vizinhos se cumprimentam e ajudam uns aos outros, sobretudo os que mais necessitam. Prédios e pátios onde toda a gente pode deixar um desenho, um poema, uma história bonita.

-É para aqui que vamos quando morrermos.

Ivo ficou meio estranhado com a resposta.

- Para aqui?

- Sim, para aqui. Ivo, isto também é o céu. O céu é o melhor de nós. Aquilo que deixamos cá na terra quando morremos.

Ivo ficou de boca aberta com a resposta do Senhor Lulito, que ainda disse mais uma coisa:

- O céu é a tua rua se cuidares dela.

Pensou um bocadinho e no fim sorriu ao perceber um bocadinho o que ele queria dizer. No dia seguinte Ivo levantou-se um pouco mais cedo do que era costume. Foi até à janela e começou a pensar como é que podia cuidar da sua rua. Já tinha reparado que era uma rua um pouco suja e onde as pessoas não falavam umas com as outras. A primeira coisa que fez foi ir à cozinha buscar uma vassoura da mãe. Depois foi para rua e começou a limpá-la. Aos poucos, as pessoas que passavam por ele começaram a imitá-lo. Acharam injusto que fosse só Ivo a limpar o lixo que toda a gente tinha feito. Até a Dona Resmungona, que costumava deixar os sacos do lixo à porta, foi ajudar o Ivo a varrer a rua. Só faltava pôr as pessoas à conversa.

- Como é que se faz isso? – perguntou-se o Ivo, sozinho no meio da rua. Teve então uma ideia: atrasar os relógios de toda a gente. Assim as pessoas, ao perceberem que o relógio não estava com a hora certa, começaram a perguntar as horas umas às outras.

Ivo ficou contente. Mas achou que ainda podia fazer mais. Encostou-se ao muro e fez de mensageiro da rua. Começou por se meter com a Dona Júlia.

- Olhe, sabia que o Senhor António acabou de cumprimentá-la?

- A mim?

- Sim, sim.

- Mas ele nunca me cumprimentou!

- É a primeira vez. Se calhar era bom dar-lhe o bom dia também.

- Bom dia, Senhor António!

- Bom dia, Dona Márcia!

Fez isso com todos os seus vizinhos, que começaram todos a cumprimentarem-se como se já se conhecessem há muito tempo.

Quando voltou para casa, Ivo ligou à avó que vivia numa casa sozinha a muitos quilómetros de distância dali.

- Olá avó, tenho saudades tuas!

À noite, quando estavam os dois a ver televisão, foi buscar uma manta para cobrir as pernas da mãe. A mãe estava tão concentrada a ver um programa que nem reparou. Antes de adormecer, Ivo disse à mãe.

- Ó mãe…

A mãe ficou um pouco preocupada. Pensou que vinha aí mais uma pergunta difícil.

- Ó mãe, acho que já sei a resposta àquela pergunta. Quando morrermos nós vamos para a nossa rua.

A mãe ficou espantada com a frase do filho e passou-lhe a mão pela cabeça.

publicado por Nuno Costa Santos às 21:11
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Terça-feira, 24 de Julho de 2012

à nossa maneira

História nº 1. Um grupo de amigos de Lisboa pára num restaurante de São Miguel. Um anuncia que vai querer “um bifinho”. O empregado afasta-se um passo, incrédulo, e repete: “Bife?! Bife?! Eh, piquene, tu vás comê é pêxe e vás gostá!”

 

História nº 2. De dia, era segurança; à noite, respeitável proprietário dum tasco de Lisboa. Certa vez, de férias nos Açores, é mordido numa perna por uma água-viva. Acto contínuo, um desconhecido abre a braguilha e desata a urinar-lhe para cima da perna. O nosso homem enche o peito e vai tirar satisfações, deparando-se com a perplexidade do estranho que explica que apenas lhe aplicava o melhor antídoto do mundo para queimaduras de alforreca. Nem deu para o obrigado. O benfeitor partiu de imediato, ofendido com a ingratidão.

 

História nº 3. Quando X visitava um casal de amigos açorianos, ouvia amiúde o homem gabar uma estrela do showbizz que via na TV. X nunca disse que a estrela em questão era sua mulher e guardou-se, anos a fio, para a surpresa. Um dia, voltou com ela de braço dado. A mulher abriu a porta e, com a voz a tremer, chamou o marido. Após alguns minutos, o homem aparece em roupa interior e pistola de chumbos, queixando-se duns “murganhos” que lhe andavam no sótão. Queixou-se, olhou para a mulher de X como que se perguntando “quem será esta?” e voltou para o extermínio. Horas depois, já documentado pela esposa quanto à identidade da desconhecida, liga para X. Não para pedir desculpa pela indelicadeza, mas para insultar o traidor que consentira que aparecesse naqueles preparos diante da musa.

 

Vivemos num mundo onde as habilidades dum gato no interior dum apartamento anónimo são vistas no dia seguinte por milhões de espectadores dos cinco continentes. Onde a fruta de época deu lugar a mangas e papaias trazidas diariamente por grandes cargueiros aos supermercados da velha Europa. Onde se pode almoçar peixe à segunda-feira porque os viveiros não folgam ao domingo. Onde podemos comer o mesmo hamburger e entrar na mesma loja e ver o mesmo anúncio em centenas de cidades absurdamente longínquas no mapa.

 

Este mundo, em parte pressentido, em parte surpreendente, ganhou o nome de “aldeia global”. E criou um paradoxo: ao diluir as diferenças, tornou mais importante do que nunca ser diferente.

 

Nessa contradição, os Açores continuam à procura dum lugar. Por vezes, armaram-se em moderninhos. Levantaram torres que fazem sombra a hectares de terreno deserto, filas de bares e discotecas que deram música às moscas, centros culturais que ignoraram que a cultura açoriana prefere arraiais de madeira a salões de veludo.

 

Hoje, nos dias do facebook e dos smartphones e das low-cost e dos franchise das superbrands, temos as mesmas dúvidas e medos de há trinta anos, quando a televisão a cores parecia o topo inultrapassável da evolução. Hesitamos entre o medo de perder a identidade e o pavor da irrelevância.

 

Nas três histórias acima, contadas por diferentes amigos em diferentes circunstâncias, está uma resposta possível. Aquela franqueza generosa é a nossa essência e a essência dum sítio o seu maior produto de exportação.

 

Que farão as lideranças políticas não se sabe, mas pusessem a mandar o empregado do restaurante do peixe, o homem do antídoto para as águas-vivas e o exterminador de murganhos e dir-vos-ia. Os Açores tornavam-se marca registada de reputação mundial. A terra dos afectos roucos, onde o tempo e a distância nos ensinaram que o amor é mais importante do que os salamaleques.

 

Publicado na Azorean Spirit.

publicado por Alexandre Borges às 01:53
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Domingo, 22 de Julho de 2012

Os pais vivem para sempre

Doce, salgado.

Vermelho, verde.

Um a dizer sim, outro a dizer não.

O norte sempre em direcções opostas.

Os dois errando. Provavelmente como sempre acontece. Pais sendo pais e filhos sendo filhos.

Mas as diferenças a desaparecerem ali por responsabilidade da doença. Passados tantos anos. Os dois a melhorar aos olhos de cada um, à frente de toda a gente. A aproveitar a oportunidade. Mudanças imperceptíveis para os outros. Pela primeira vez o norte a não nos confundir.

Os dois percebendo, finalmente, que a história não tem que ser má só porque tem alguns capítulos menos conseguidos.

 

O seu nome a ouvir-se nos altifalantes, mandando-o para a triagem. Enquanto percebemos o medo um no outro. Sem nos conseguirmos enganar. Resignados. A ouvirmos na nossa cabeça comentários antigos: " Não podem negar que são pai e filho". Iguais. No mesmo norte recente. Ele dizendo que está tudo bem e eu que vai ficar. Confortando-nos. A trocar frases batidas. A dizer pela enésima vez que é desta que tudo vai passar. Consentindo a mentira que nas Urgências dá pelo nome de esperança.

 

Ambos apanhados. Renunciando à lógica. Solidários com as lágrimas dos outros.

Eu a querer ouvir o habitual, que o não sei-quantos teve uma coisa parecida e que ficou bem. Cada caso sendo um caso. A concluir que quando é com os nossos tudo é diferente. Aliviado por não ser maligno. Respeitando-lhe o sofrimento e garantindo-lhe que sei que as dores são suas, que não me esqueci que dói.

Sem me lembrar desses dias, mas sentindo-o a levantar-me no ar orgulhoso. Sem precisar de dizer um ao outro que gostamos. Em silêncio. Eu a dizer à enfermeira e aos médicos: "Eu sou o filho".

A desejar conquistar a pulseira vermelha para ser mais rápido.

A minha mulher a poupar-me. Eu a confirmar-lhe, mais uma vez, que sei que dói, mas que tem que insistir. A tentar pô-lo bem-disposto, invejando-lhe a morfina: "Bem dividida dá para os dois!". Ele sorrindo às metades. Porque nem ele se sente inteiro. 

 

Aproveito para olhar para as suas mãos, recordando-me que ele sempre as teve grandes. Mas acho que isso acontece com todos. Os pais têm mãos grandes e vão viver para sempre. Certo?

Apesar de, ultimamente, as mãos do meu pai já não serem tão grandes como costumavam.

As suas dores afinando com as dos outros. As forças a escaparem-lhe. As horas a passarem:

 

" Vai ter que aguardar um bocadinho". 

 

Raio X. TAC. Análises.

 

" Vai ter que aguardar um bocadinho". 

 

Sala 3. Cá fora a luz vermelha acesa.

 

Radiações

Não entrar quando a luz estiver vermelha

 

Não abrir!

Sala de trabalho

 

Um televisor marca Sanyo desligado. Cadeiras velhas. Mais um caixote do lixo cheio de pacotes de sumos de fruta daqueles que se levam para evitar quebras de tensão e fraquezas. Conseguiria chegar, facilmente, ali de olhos fechados. A minha mulher a poupar-me.

Não há dinheiro. Não há tempo. Eu a dizer: "Eu sou o filho".

Eu não dando parte de fraco, sem vacilar, justificando as dores insuportáveis. 

A ler tudo à nossa volta como se a nossa vida dependesse disso:

 

5 de Maio dia mundial da higiene das mãos

 

Planta de emergência

Você está aqui

 

Extintor E-6P Standard

Referência 005059

 

Em condições de responder a qualquer pergunta sobre o espaço circundante.

Capaz de salvar a vida a todos: especialista em regras de segurança e higiene hospitalares. 

Apavorado com a ideia de os pais poderem não viver para sempre. A prometer-me que penso nisso depois. A repetir para me distrair:

 

 

5 de Maio dia mundial da higiene das mãos

 

 

A não aceitar que as mãos do meu pai estejam mais pequenas. Isso eu não posso aceitar! Mas vou aguardar um bocadinho. Enquanto isso elaboro uma nota mental:

 

 

Avisar que o Extintor E-6P Standard, referência 005059, que está no corredor onde é a sala 3, tem a validade a terminar.

 

 

Oito horas depois saímos com novas esperanças. Eu sem ter dado parte de fraco. Preparado para a próxima chegar às salas dos exames de olhos fechados.

As melhoras a todos!

 

 

 

P.S1: Passou bem a noite. E está animado. Continua a não querer dividir a morfina, mas os sorrisos já são maiores. O norte, esse, continua no mesmo lugar. E eu estou cheio de vontade de o levantar no ar, orgulhoso.

 

P.S2: Não era preciso isto tudo para confirmar que gostávamos um do outro.

publicado por Carlos M. J. Alves às 11:56
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Quinta-feira, 19 de Julho de 2012

E se a morte te esquecesse

A van dispara pela Avenida Atlântica como se eu ainda estivesse numa dessas noites adolescentes em que um dos meus amigos, bêbedo e viril, puxava o travão de mão numa curva de terra. Tantos anos depois, pensei que já me tivesse escapado das corridas, da testosterona dos machos jovens ao volante e da euforia de pau feito quando se ultrapassa outro carro.

 

Dou-me conta que é a primeira vez que sou o único passageiro de uma van. Não há mais passageiros. O cobrador sacaneia e provoca o cobrador de outra van quando paramos num semáforo. Trocam insultos, mas é tudo sangue bom, uma forma de comunicar, tal e qual eu e os meus irmãos que temos de pregar um calduço depois de um beijo ou, pelo menos, destacar algum defeito físico - "Então cabeçudo",Tudo bem pencas" - antes de um abraço.

 

As duas vans arrancam lado a lado como se numa prova oficial, com direito a semáforo verde e mais de cinco quilómetros de avenida pela frente. Os cobradores portam-se como de costume: metade do corpo fora da janela, a cabeça perscutando clientes na calçada, cães de caça com pregões batidos: "Copacabana, Leme, Rio do Sul, tem vaga sentado."

 

Penso no que será a vida daquele miúdo que me cobrou a passagem e agora tem o tronco do lado de fora, avançando a grande velocidade. Penso quantas horas trabalhará por dia, quantos cobradores desatentos não retiraram a cabeça a tempo e foram decapitados por uma placa de trânsito ou esmagados contra um ônibus. Penso como será suportar todos os dias as horas de ponta quando as vans sobrelotadas agonizam nas filas de trânsito, com gente em pé, dobrada como corcundas, encontrando algum consolo nos celulares. 

 

O motorista grita, o cobrador grita, são garotos em modo diversão, parece que estamos a cavalo e vamos matar cowboys, a velocidade aumenta e dou-me conta da minha obsessão com o perigo do trânsito no Rio de Janeiro. No livro que acabei de escrever há vários acidentes de carro. Também há o medo constante dos atropelamentos, que são aliás a principal causa de morte no trânsito no estado do Rio.

 

Falo muito disso, indigno-me com os alarves que estacionam os seus jipes na ciclovia (quem precisa de um veículo todo o terreno na cidade?). Discuto com os condutores que não páram para os peões (aqui pedestres) atravessarem a rua, passo-me da ginja quando um táxista tenta mandar uma bicicleta para a valeta, alerto para a boçalidade dos motoristas de ônibus que permanentemente andam em excesso de velocidade e que não fazem caso dos vermelhos - há uns meses vi uma família inteira, que se prestava a atravessar a rua, ficar a meio segundo da extinção coletiva por linchamento de ônibus.

 

Por outro lado, há algo infantil ou de bicho primário que por vezes assoma no meu peito quando subo o Vidigal no dorso de um mototáxi ou avanço numa van numa estrada com poucos carros, como a Avenida Atlântica a meio da manhã, algo que recupera a emoção da velocidade sem o medo ou o tino aconselháveis, apenas despreendimento e vamos adiante.  

 

 

Penso em tudo isto enquanto a praia de Copa e o Pão de Açúcar se movimentam na janela a alta velocidade. Fixo-me nesta obsessão e na contradição que me provoca, penso por que motivo aparece e reaparece naquilo que escrevo. Talvez tenha sido o acidente de um amigo (que ainda está numa cama) durante a adolescência, ou o atropelamento (o meu primeiro funeral)  de uma colega quando estavamos na faculdade. Talvez tenham sido aqueles contos do Rubem Fonseca - Passeio Noturno -, em que a mesma personagem sai para atropelar amantes e desconhecidos na noite carioca. Talvez seja o contacto diário com a selvajaria que é o trânsito nesta cidade. Mas no meio de todas estas reflexões faltou-me a decisão para agir. Dizer tão somente: "Pode ir mais devagar" ou "Eu saio aqui." Não o fiz, e ainda me pus a recordar a cena da adaptação de David Fincher do romance de Stiege Larson, The girlwith the dragon tattoo, uma cena que não consta do livro e na qual o vilão ainda por revelar convida o herói para tomar um copo em sua casa . O herói suspeita que aquele homem que o convida é o mau da fita e, no entanto, em vez de ir embora, aceita o tal whisky. Mais tarde, já nas mãos no captor, o herói ainda tem de ouvir um sermão sobre a estupidez humana, qualque coisa como: A vergonha ou o desconforto de dizer "não" resultam em coisas tão ruins e desagradáveis como a morte por homicídio.

 

Mesmo recordando a lição do filme não fui capaz de pedir ao motorista que reduzisse a velocidade.

 

Deixei-me ir conhecendo todos os riscos.

 

Como são estranhos os seres humanas e as suas regras de convivência.

 

publicado por Hugo Gonçalves às 13:28
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Para lá do sol posto

A festa seguia pela tarde fora. Depois do lanchinho de rojões, os grupos iam cantarolando e animando as mesas. Ouviam-se gargalhadas e as palmas soavam alegres. As mesas de madeira, compridas e sujas, anunciavam já o fim das festividades. Curioso, o nome deste encontro: Identidades. E ali estavam todos, vindos de muitos lugares - uns que vêem o mar, outros que respiram da serra. As modas são, no entanto, as mesmas. Repete-se, com euforia, um cancioneiro que foi passando de boca-em-boca, de terra em terra, como um caixeiro-viajante. A cantiga popular, em Portugal, viajou e conquistou o coração dos que nela encontraram a alegria e o sentido da vida.

 

Foi assim que conheci Antero. Juntou-se a nós a meio de uma moda alentejana que iamos impondo a todo o recinto:

 

"Venho da Ilha dos Vidros

Da terra dos diamantes

Ando no mundo perdido

Pelos teus olhos brilhantes.

 

Pelos teus olhos brilhantes

Pelo teu rosto de fada

Ter amores não me custa

Deixá-los é que me mata."

 

Trazia uma concertina muito velhinha. Era um instrumento invulgar, com dois teclados de apenas uma fileira, cada um. Antero tocava-a com uma satisfação contagiante. Ao meu lado, o rapaz da flauta tamborileira acompanhava-o enquanto nós iamos inventando a letra e fazendo da mesa percurssão.

 

No fim da cantoria, desabafa que pouca gente sabe tocar aquela geringonça. É rara e precisa de muitas horas de dedicação. Depara-se, então, com o problema da tradição. Se ninguém a quiser aprender, aquela pequena concertina ficará sem tocador e será votada ao esquecimento. A sua história não o merece. Contou-nos, entretanto.

 

Há mais de 50 anos, Antero comprou esta concertina numa antiga casa, no Porto. Andou com ela por todo o lado, perdeu noites a aprendê-la. Por razões que o país prefere esquecer, teve de partir para o Ultramar e vendeu o instrumento. De lá, emigrou para a Alemanha. Quando regressou, dedicou-se à braguesa e ao cavaquinho. Certo dia, um compadre seu disse-lhe que o sogro tinha para lá uma concertinazita. Mas que o velho estava mal e que preferia dá-la "quando o assunto estivesse arrumado". Assim foi. Levou Antero a ver o brinquedo. E lá estava ela, a sua velha concertina, 45 anos depois. A coincidência sem a ajuda da internet. Mandou afiná-la e levava-a, agora, para toda a parte, para animar a rapaziada.

 

Quando o crepúsculo desceu sobre a serra e o ar refrescou, decidimos partir. Deixámos o folclore para lá do sol posto, escondido, para não incomodar as cidades. Esquecendo que é da identidade que se alimenta uma cultura, a cidade tem um certo desprezo pelas coisas simples. Procura-se o progresso e a modernidade. A tradição é uma coisa feia e retrógrada, como aquela velha concertina. Até ao dia em que alguém a quiser tocar, melhorar e evoluir com ela, levando consigo o som dos dias mais bonitos.

publicado por jorge c. às 11:04
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Domingo, 15 de Julho de 2012

O eterno esplendor das manhãs de Domingo

 Neste preciso momento, um pouco por todo lado, por muito diversificadas que sejam as actividades a estarem a ser desenvolvidas por pessoas mais ou menos imaginativas e com mais ou menos recursos, milhões de indivíduos estão ocupados com o mesmo que eu: aproveitar a sua manhã de Domingo. O momento em que a humanidade mais está unida.

 

As manhãs de Domingo são uma incógnita controlada. Um X com possibilidades conhecidas, embora como é do conhecimento geral [e se há coisa que a política nos ensina é isso], prometer seja fácil.

 

Podemos defini-las como a melhor justificação para o resto da semana. Apresentá-las como o último recurso para perante as exigências habituais se escrever direito por linhas tortas. Usar os comentários semanais do professor Marcelo Rebelo de Sousa para as situar. 

 

As manhãs de Domingo são a redenção. Tranquilas. Habitualmente uma zona livre de stress ou onde os seus índices de emissão são mínimos. Um bilhete premiado. Apesar de correrem o risco de como tanto se espera de si acabarmos numa atitude destrutiva de "gosto tanto de ti que te tiro os olhos". 

 

Houve um tempo em que as minhas manhãs de Domingo cheiravam a torradas e a café acabado de fazer. 

Começavam tarde. Lentas. Acordando, contrariado, pelos cães da vizinhança. Questionando os gostos musicais do vizinho que os pôs em pranto. 

Serviam de purga porque tinham ainda fumo, de sábado à noite [de quem são próximas], agarrado à roupa caída pelo chão. 

Eram importantes para lamber as feridas. Para encetar recuperações. Fazer as contas às noites perdidas. Dando luta às olheiras. Arejando. 

 

Agora as manhãs de Domingo continuam a cheirar a torradas e a café acabado de fazer. Mas também cheiram a eau de toilette do Noddy. E são mais despachadas. Nesta altura do ano, se o tempo estiver bom a Paula Teixeira da Cruz na capa do i e às turras com a justiça acaba emborralhada em areia por uma criança de 4 anos encarregue de me convencer que não é preciso interromper uma bela manhã de praia para ir almoçar [baseado em factos verídicos].

Nesta fase,também servem para encher a despensa. 

Dão para aprender mais sobre a natureza, nos documentários matinais da BBC e National Geographic.

Limpam o pó. Lavam o carro. 

E hoje como ontem, estimulam-nos a pôr em forma.

 

As manhãs de Domingo mudam connosco. Incapazes de voltar atrás. Passando de um modo one-night stand para modelo familiar. Mas continuam esplendorosas. 

Na maioria dos casos e das vezes, têm direito a banho prolongado. A fazer a barba sem pressas. E a jornal. A engonhar. São, definitivamente, o melhor da semana.

Não servem para tomar decisões. Não é tempo para isso.

Não se pensa em taxas extra  ou subsídios.

Não havendo outra hipótese inevitavelmente acabam. Isso é o que têm de pior.

São uma instituição que presta serviço público. Não desmerecendo os feriados, claro. Que devem ser respeitados até pela raridade de que enfermam actualmente.

Existem na medida certa. Para serem devidamente apreciadas. Mais seria pecado [dos originais].  

São  o que nos dão força para  a segunda-feira para não falar no que se lhe segue.

Raios-nos-partam se conseguiríamos viver sem as manhãs de Domingo.

 

Em qualquer dos casos, como quando estiver a ler este post a sua manhã pode já estar esgotada e ter já os olhos postos na próxima, resto de bom Domingo.

publicado por Carlos M. J. Alves às 10:15
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Sexta-feira, 13 de Julho de 2012

O folclore de Miguel Relvas e a merda em que nos quedamos

 

Nunca saberemos se o Major Valentim Loureiro estava a pensar em Miguel Relvas quando, numa conversa com Pinto da Costa, proferiu as imortais palavras “é preciso algum folclore nesta merda.” Nesse caso, o Major reagia à indignação de Pinto da Costa perante o que se passara depois de um FC Porto-Sporting . Certo é que essa reflexão regressou, anos depois de ter sido disponibilizada no Yotube por um oficial de justiça (é preciso algum folclore nesta merda), com mais pertinência do que alguma vez imagináramos. E não é que é realmente necessário algum folclore nesta merda? Prova disso é a licenciatura de Miguel Relvas, concluída através de um sistema de equivalências obtidas a partir de, entre outras experiências, importantes funções exercidas na Associação de Folclore da Região de Turismo dos Templários. Ao que parece, a possibilidade está prevista na lei. É que, sabem, é preciso algum folclore nesta merda.

 

Mas atentemos na complexidade premonitória, cultural e escatológica da afirmação do Major. Eu não sou nenhum Foucault e e nunca assisti a uma aula de semiótica (deram-me equivalência por cargos exercidos na Associação Ludoterapêutica dos Pátios Universitários), mas permitam-me arriscar uma interpretação.

 

"É preciso”.

 

Já todos teremos usado esta expressão e estamos conscientes do seu profundo enraizamento na sociedade portuguesa. “É preciso” remete-nos para uma vasta panóplia de temas e contextos em que algo é necessário. É preciso conversar, é preciso ver isso, é preciso ter calma, é preciso pensar no assunto. Ocasionalmente, dá-se o caso de ser preciso fazer, mas antes será preciso marcar uma reunião, criar um grupo de trabalho, e, em última instância, ver se é preciso mais alguma coisa. O resto logo se vê.

 

“É preciso algum”

 

É preciso, sim, mas vamos com calma. Para todos aqueles que conhecem a personalidade político-feirante de Valentim Loureiro, há em “é preciso algum” um tom de moderação que não deixa de causar perplexidade. Ao mesmo tempo, parece honrar a matriz fundadora do partido que o viu nascer. Sá Carneiro ficaria orgulhoso, se esta frase não tivesse mais umas palavras a seguir.

 

“É preciso algum folclore”

 

Já sei o que estão a pensar. É aqui que a coisa começa a descambar. Enganam-se! É precisamente no folclore que o país se une em torno de uma ideologia, uma forma de estar, ou uns quantos créditos ECTS. Das festas de Agosto ao sistema político-partidário português, passando pela formação académica de Miguel Relvas, há algo que não podemos negar: é preciso algum folclore. Por um lado, porque ninguém quer demasiado folclore. O que seria! Um país perpetuamente em estado de folclore, que aqui serve como sinónimo de sítio. Por outro lado, sentimo-nos incompletos – cultural, existencial e academicamente – sempre que o folclore escasseia. O folclore é, pois, o princípio unificador deste país, um consenso alargado entre organizações de festas, líderes de governo e conselhos científicos.

 

“É preciso algum folclore nesta merda”

 

Só assim, com este remate, pôde o Major ascender à galeria dos Eças e Herculanos, para citar hoje e sempre. Obrigado, Major. Há de facto um folclore que nos une, do qual precisamos, um folclore que informa o nosso carácter e o curriculum vitae, mas é na merda que nos quedamos. Uns de nós porque estão na merda, no sentido indigente da expressão, outros porque votaram na dita merda, alguns porque comem merda às colheres, e finalmente uns quantos predestinados que são a própria merda, a espécie de merda que dança folclore como ninguém. Até porque a possibilidade está prevista na lei. Infelizmente para o país.

publicado por Vasco Mendonça às 12:55
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Quinta-feira, 12 de Julho de 2012

O homem que corrompeu Lisboa

Procurou-me logo pela manhã para me dizer que eu estava errado. Fiquei a ouvir os seus argumentos até à assunção total do meu erro. Tinha razão, não o podia negar. O sucesso do convencimento do outro, que no caso era eu, estava na forma que as palavras tomavam, na nobreza do gesto de querer comunicar e encontrar um desfecho que a todos se adequasse. Durante a sua estadia em Lisboa procurei o alcance dos seus gestos. Depois, descobri que o segredo estava na sua natureza generosa.

 

Todos os dias, quando nos cruzávamos, ficava com a sensação de que nunca encontraria qualquer ressentimento neste homem. Desfilava pelo recinto com uma humildade genuína, discrição e sobriedade. Ainda assim, todos o tratavam com respeito ou, até, alguma reverência. Fez com que aqueles que o rodeavam acreditassem, convictos, de que tudo estava bem. E da situação mais crítica, cultivava uma oportunidade. O seu optimismo era íntimo da sua honestidade e da sua bonomia.

 

No mundo empresarial contemporâneo ou, se me permitem, no pós-modernismo, os conceitos são de algodão doce. Se não discutimos dentro de nós, nunca encontraremos a solução e acabamos lambuzados com a nossa gula. Na pequena Lisboa dos negócios há um surto de conceitos que desaparecem como os jacarandás que a enfeitam durante umas semanas. Um mar de arrogância inunda a cidade e a natureza das coisas fica comprometida. Antes de dominarmos os conceitos e de os reconhecermos, é preciso dominarmos a nossa própria índole. Talvez seja essa a propriedade da cultura.

 

Tal como explicou Mark Twain, não podemos ter a certeza das nossas características morais se nunca fomos seduzidos pela sua perversão. No momento em que desafiamos algumas das nossas mais profundas fragilidades, conquistamos o dia seguinte. Porque, como diz o homem que corrompeu Lisboa, não podemos achar que temos mais força que o nosso inimigo e que o conseguimos vencer de olhos fechados. Há que manter os olhos bem abertos. O nosso maior inimigo tem exactamente a mesma força que nós.

publicado por jorge c. às 00:00
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Quarta-feira, 11 de Julho de 2012

Diário da Flip: a poesia está na rua (em Paraty)

“As notícias da minha morte foram exageradas.”  Mark Twain

 

É um lugar-comum muitas vezes repetido, mas é também uma evidência imediata para quem chega: Paraty é especial. Seja a brancura das fachadas imaculadas, seja a memória do tráfico negreiro, seja o esplendor azul do mar e verde do mato, sejam as ruas com pedras pé-de-moleque por onde circulam carroças com um vagar de antigamente – uma tranquilidade que desacelera o mundo e quem aqui chega. Paraty é um lugar ideal para se ler um livro. E para se escrever um livro.

 

É nisso que penso ao entrar no centro histórico da cidade, imaginando que, entre todas as pessoas que caminham pelas ruas ao entardecer, haverá já dezenas de escritores, enquanto outros estarão nos seus quartos de pousada, talvez escrevendo a página de um romance, talvez suspendendo a lâmina durante o barbear porque um poema assomou de repente no coração e partiu para o cérebro como uma bala perdida, talvez admirando os beija-flores que vão beber água aos jardins das pensões coloniais.

 

É uma visão romântica, esta de imaginar dezenas, se não centenas, de escritores numa cidade antiga e encostada no mar, todos eles inspirados e laboriosamente criando mais histórias, mais personagens, mais livros. Mas o que seria da literatura (e dos escritores) sem o romantismo?

Sem receio de parecer demasiado lírico, entrei na cidade onde até os cardápios dos restaurantes adaptaram a poesia de Carlos Drummond de Andrade, este ano homenageado na FLIP. As palavras do poeta, que faria 110 anos, andavam por toda a cidade, surgiam até projetadas na parede da igreja, na Praça da Matriz, fazendo-me lembrar dos tempos de inusitado otimismo lusitano, pós-revolução dos cravos, quando em Portugal se dizia e escrevia nas paredes: “a poesia está na rua”.

 

Sou suspeito: o meu ofício de escritor e editor providencia diariamente lenha para o lume do romantismo literário, fazendo-me acreditar que, tal como as notícias sobre a morte de Mark Twain, também as sentenças sobre a morte do livro são exageradas. E não falo apenas das tais dezenas de escritores recarregando a imaginação, nestes dias em Paraty, para depois irem rapidamente fechar-se no casulo de criação em Barcelona, no Rio de Janeiro ou em Manhattan. Não falo dos editores, agentes, livreiros, organizadores, moderadores e todos aqueles que, de uma forma bem pragmática (mas também romântica, espero), acreditam na sobrevivência do livro e continuam a produzi-lo, a divulgá-lo e a amá-lo.

 

É forte, a palavra amor. Mas sem contundência não há romantismo literário. E sem amor resta-nos apenas a burocracia. Não estou sozinho e muitos outros padecem do mesmo: não só os milhares que ouviram e aplaudiram e se riram com as palavras de Luis Fernando Veríssimo, na sessão inaugural da FLIP, como o próprio escritor, que declarou: “Aqui se celebra a permanência do livro.” E com a certeza das palavras de Veríssimo senti-me ainda mais entusiasta, lembrando-me de Javier Cercas, autor espanhol também presente na FLIP e que, num entrevista recente, quando questionado sobre o que pensava sobre o futuro do livro, respondeu: “Penso que é enorme.”

 

Depois da sessão de abertura, fortalecido pelas palavras de Veríssimo e de Cercas, voltei a passear pela ruas e a imaginar escritores e mais escritores trocando ideias para contos enquanto bebericavam cachaça de Paraty; ou autores imaginando trilogias fantásticas enquanto ouviam Caetano tocado por uma banda de rua; ou poetas ainda por revelar escrevendo em caderninhos o primeiro verso de um poema inventado à passagem de uma índia junto ao cais.

 

Por estes dias, milhares de leitores cruzam as ruas de Paraty, esgotam os ingressos da FLIP, escutam autores, leem seus livros, reduzem a velocidade, saciam o amor pela literatura sem pudor ou parcimónia.

 

Drummond escreveu: “A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos.”

 

Tenho a certeza que o poeta, além das pessoas, também se referia aos livros.

publicado por Hugo Gonçalves às 18:23
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