A vida artística portuguesa tem sido assombrada pela ideia de amiguismo. É uma das críticas que se faz a alguma crítica - a de que só escreve bem deste ou daquele por amizade, não pela qualidade das obras. Hoje, na blogolândia, é mui frequente registarem-se declarações de interesses do género: "Eu não vou dizer isto por amizade mas acho que o livro do Anaximandro é do caraças". Eu não vou dizer isto por amizade mas o sacana do livro é bom. E quem diz o livro diz o disco, a peça, a exposição de pintura, a performance, o artigo de jornal. Como se sem essa nota a observação perdesse força e relevância. E como se com ela se iluminasse como um astro flamejante.
Se calhar até há alguma rapaziada que escreve, como se diz, na base da amizade. Na vontade - por vezes inconsciente - de promover os amigos (e haverá algo mais ingenuamente belo do que desejar promover os amigos?). Mas confesso que tenho dificuldades em embarcar neste delírio moralista do "amiguismo". Até porque é um critério perigoso. Necessita que, antes de mais, se faça a pergunta: o que é ser amigo de alguém? E outra: será que quando gostamos muito de um determinado autor não nos tornamos amigos dele? Ou seja: não lhes desculpamos os erros e os tiros ao lado e não queremos falar bem dele a toda a gente? Confesso: seguindo este último critério (que, na minha qualidade de bicho afectivo, adopto frequentes vezes), sou um grande amigo do Vila-Matas, do Robert Smith e da Agnès Varda. Gente com quem nunca tomei uma imperial ao balcão da Portugália.
Esta intifada contra o amiguismo pressupõe um equívoco maior: a ideia de separar os afectos daquilo que se consome artisticamente. A ideia de absolutização da "emoção estética pura" que não se transporta para as razões do coração de todos os dias. É um fundamentalismo como outro qualquer, que merece compaixão (um riso ternurento, sim). Se nos dermos ao trabalho de pesquisar um pouco, perceberemos mesmo que é um exagero quase patológico, excluindo uma tradição muito praticada nalguns dos ditos países mais civilizados do mundo (o que é isso?), com a imagem de crítica independente e séria (o que é isso?), em que escritores escrevem sobre amigos escritores, artistas plásticos escrevem sobre amigos artistas plásticos e por aí adiante. Por quê? Por cumplicidade geracional, por generosidade de querer espreitar de forma mais fundamentada o trabalho do companheiro de tertúlias e copos. Porque sim. E sobretudo porque muitos desses exercícios ficam, pelo seu rasgo e qualidade, para a História (mais do que aquelas notas burocráticas das "recensões").
Penso que o amiguismo está longe de ser a questão fundamental da crítica. Há outras bem piores, como o unanimismo. A falta de coragem de arriscar observações artisticamente incorrectas. O ressentimento. O preconceito fácil, do género "eu só vou falar bem disto porque convém falar bem disto", o "eu vou falar mal disto porque convém falar mal disto". Sobre estas maleitas, se quiserem, podemos falar um dia.
Joe Cortese detestava a cidade, dizia que areia do deserto se pegava nos dentes e que o fedor dos derrotados na roleta se entrelaçava no perfume das prostitutas da calçada. Além do bilhete que iria comprar, no mercado negro, no bar do hotel, Joe não conseguia encontrar nada que pudesse levá-lo a acreditar nas possibilidades daquela noite. Tinha, mais do que tudo, um trabalho para fazer.
No bar do hotel, Bobby Snout, amigo de um amigo, gordalhufo que cheirava a pizza com extra queijo, perguntou: “Tu também és paisano? De onde? Calábria?” Joe terminou o whisky, pegou no bilhete que acabara de comprar e disse, olhando a viscosidade de Bobby Snout de alto a baixo:
“Sou português, filho de beirões da raia.”
“O que é isso, México?”
“Vocês italianos só conhecem a ponta encardida da bota e a estação de comboios para Nova Jérsia.”
“Um pouco de respeito. Estás fora do teu território, ragazzo.”
Joe apertou o braço contra o coldre e sentiu o couro nas costelas, a coronha da sua pistola pressionando-se contra a carne. Não gostava de Las Vegas, precisava de outro whisky, não tinha mais cigarros e, apesar do bilhete no bolso, teria que perder parte do espetáculo para finalizar a missão que o levara de Sullivan Street, Manhattan, até aos corredores do Sands.
Joe esticou a mão e disse: “Estou na reinação.”
E Bobby Snout riu como um porco dos desenhos animados.
“Estivéssemos em Nova Iorque”, pensou Joe Cortese, “e fazia morcela de sangue contigo”.
Joe andava a tentar controlar a raiva desde que, certa noite, num bar de East Village, viu um jamaicano dar um par de estalos numa miúda mulata e resolveu interferir, arrastando o mán pelos rastas até à rua, onde repetidamente enfiou a cabeça do rapaz na caixa dos jornais enquanto dizia: “Consegues ler o teu obituário?”
Joe gostava de mulheres africanas, mas perdia as estribeiras quando confundiam os portugueses com sul-americanos ou porto-riquenhos.
Respirou fundo para não voltar atrás e apunhalar a mandíbula de Bobby Snout com a garrafa de Veve Clicquot que tinha visto dentro de um balde com gelo no balcão.
Dirigiu-se para a sala de espetáculos e perguntou onde eram as casas de banho. Não teria tempo sequer de sentar-se. Nas mesas, mulheres bonitas e bêbedas davam risadas e sentiam o fôlego de atores de cinema que lhes sopravam propostas de arrepiar a pele do pescoço.
Apagaram-se as luzes, ouviu-se o tilintar do gelo até que uma bateria encheu a sala e a voz anunciou:
“The Sands is pround to present a wonderful new show of a man and his music. The music of Count Basie and his great band. And the man… is Frank Sinatra.”
Ao ouvir os aplausos Joe sentiu-se como na peça do liceu em que fora protagonista. A raiva diluiu-se no sangue e no whisky.
Sinatra apareceu em palco: “How did all these people get into my room?”
Entre as canções “Come fly with me” e “I’ve got you under my skin”, Joe pensou na cabo-verdiana que conhecera num bar de Hoboken. Ela ia ensinar-lhe português, coisa que os pais nunca fizeram, e deixara que os dedos dele tocassem os seus mamilos por cima do tecido num parque de estacionamento.
Joe engoliu o whisky e foi para a casa de banho. Numa das cabinas encontrou uma mochila preta. Confirmou o conteúdo e dirigiu-se para o quarto. Aí mudou de roupa. Vestiu-se como um polícia, deixou a arma debaixo do colchão e pegou no revólver que vinha num saco de papel dentro da mochila.
Saiu do quarto e caminhou até ao fundo do corredor. Confirmou o número, os dedos bateram na madeira com força e disse: “Polícia, têm de sair, houve uma ameaça de bomba.” Ouviu vozes lá dentro e um homem dizendo: “Não abras.”
Tarde de mais. Assim que a mulher abriu a porta, Joe empurrou-a para o chão. O homem levantou-se e foi a correr para a casa de banho. Joe puxou a mulher pelos cabelos (um dos seus modus operandi preferidos) e foi dar com o homem tentando procurar algum tipo de arma.
“Vais matar-me com um mini sabonete?”, disse Joe. Em seguida virou-se para a mulher: “Tu, vai buscar um travesseiro.”
E só então percebeu que ela era negra como certos felinos escovados muitas vezes, uma negritude densa e cintilante. Viu como ela andava languidamente embora as mãos lhe tremessem. Viu como regressou, apenas de calcinhas e com os mamilos descobertos (os mesmos mamilos da cabo-verdiana de Hoboken). Viu como ela rogava pela vida mesmo sem dizer nada.
Joe trancou a porta da casa de banho com todos lá dentro. Olhou em seu redor como se verificasse que a família inteira estava presente para o jantar de Natal. Depois deu duas cronhadas poderosas na cabeça do homem, que estava de cuecas, sentado na borda do jacuzzi.
“Merda”, disse Joe para si mesmo enquanto o homem lhe fugia das mãos e submergia nas bolhas do jacuzzi. O sangue maculou a água como corantes de gelado na boca de uma criança. Joe puxou-o para fora com dificuldade, caindo, durante o processo, e ficando molhado até à cintura.
“Foda-se”, disse, perdendo a compostura. E olhou para a mulher: “Desculpa, não costumo ser tão mal educado. Se a minha mãe me ouvisse.”
Com o homem no chão da casa de banho, Joe passou a asfixiá-lo com o travesseiro. Começou a sentir uma fraqueza na cabeça, um ardor nos bíceps, talvez fosse dos whiskys que bebera sem jantar, talvez estivesse a ficar velho para usar as mãos naquele tipo de serviços. Pensou na cabo-verdiana, em Frank Sinatra, que já devia ter cantado “One more for the road”.
Gotas de suor frio rasgavam-lhe as costas. Um fio de cuspo escorreu pela boca. Uma veia inchou nas têmporas.
Joe Cortese puxou do revólver e disparou três tiros: um na cabeça, dois no peito.
Em seguida apontou a arma para a mulher.
“Como te chamas?”
“Maria Magdalena.”
“Não, a sério.”
“A sério, o meu avô era italiano.”
“Gostas de Sinatra?”
“Muito.”
Ela obedeceu a todas as ordens e pegou rapidamente na roupa. Mudaram-se para o quarto de Joe. Vestiram-se. Ele enfiou o revólver do crime e o uniforme na mochila preta e desceram para a sala de espetáculos. No caminho passaram pelo bar, onde um empregado pegou na mochila e desapareceu com ela, fazendo um sinal com a sobrancelhas que substituiu as palavras: “Não te preocupes, ninguém vai encontrar isto.”
Entraram quando Sinatra terminava o monólogo cómico. Sentaram-se numa mesa, Joe pediu champanhe e ela perguntou:
“Porque estás a fazer isto?”
“Porque quero que leves alguma coisa boa desta vida.” Joe apontou para o palco e pediu silêncio. Sinatra dizia:
“I think I'd better sing before I turn 51.”
E cantou “You make me feel so young”.
No final do concerto ele meteu-a num carro e dirigiu-se para o deserto.
Fazia frio e a areia rangia nos molares de Joe. Ela ficou diante dele. Frente a frente.
Joe julgou ouvir "Angel Eyes” tocando ao fundo. Lembrou-se de como, após Sinatra cantar o verso “Watch me as I disappear”, todas as luzes se apagaram, a escuridão total na sala, como a noite no deserto, como a pele e os olhos da mulher diante dele.
Joe apertou o gatilho. A noite fez-se dia.
Não sou do tempo do vinil. Enfim, não no sentido último. Não faltavam singles e LPs na casa paterna, bem acomodados num velho móvel gira-discos que fora prenda de casamento e que ainda dura (o móvel, mas também o casamento). Só que, quando chegou o momento de ter o dinheiro e a paixão para comprar música própria, já estavámos no CD.
Com pena. Gostaria de desfraldar histórias de velhos 55 rotações e truques para contornar agulhas dadas a idiossincrasias, falar do murmúrio do papel da bolsa interior libertando o vinil, do pó, de grandes sessões de vira o disco e toca o mesmo.
Não foi assim. Paciência. Chegamos frequentemente no fim das festas onde sonhámos ter dançado.
Apesar de tudo, ainda fui do tempo dele. Do disco. E posso falar do primeiro que comprei – e não do primeiro download que fiz (aí, confesso, não sei onde se carimbará a nostalgia).
E, como se, nas matérias essenciais, o acesso fosse vedado ao acaso, entre tanto mau gosto da adolescência, decidi que o primeiro disco que compraria seria de Bruce Springsteen (os homens conhecem-no como aquele da guitarra; as mulheres como o do rabo). Valor seguro. Anjos-da-guarda falando por nós. Coisa que não passaria. Ordens superiores dos espíritos do futuro. Podia ter sido Onda Choc, mas eles não o permtiriam.
Isto para chegar aqui, à manhã de hoje, quando Lisboa parecia ressacar do espectáculo de ontem. O Chiado deserto, as passadeiras livres para atravessar no vermelho, vozes roucas, um silêncio de surdez pós descarga histórica de decibéis.
Bem sei que não será assim. A imprensa diz que estiveram lá 81 mil pessoas, um número gordo, mas que não dará para contaminar uma cidade por onde passam dois milhões e meio, todos os dias. Mas eu digo que é. Que o condutor do metro ainda vai a trautear o “Thunder Road”, que esta gente de phones está a descobrir “The River”, que nos escritórios se correm os estores e desligam as luzes para ouvir, só mais uma vez, “Dancing In The Dark”.
Pois. É só música. Música, letra, homens e mulheres all-american, ainda por cima. Coisa muito própria, sobre coisas que, dirão, não vivemos. Mas vivemos. Ainda esta noite, vivemos outra vez. Springsteen como “boss” eterno e indiscutível, pai, irmão mais velho de gente que lhe comprou o primeiro disco em três décadas diferentes. A gritar, a solar, a explicar por que não veio a mulher, a discursar, a pregar, em português, em inglês, em soul, a pegar num miúdo ao colo, a abraçar as garotas, a aceitar pedidos, a correr, a guitarrar caído no chão, a dar o coração inteiro como quem acaba de chegar a casa. A E Street Band como filarmónica de super-heróis. As canções de operários, vagabundos, jovens casais desencantados, famílias que se têm de proteger, fantasmas e outras coisas misteriosas, mas que estão na razão de todos sermos, de vez em quando, insignificantes e gloriosos.
A imprensa pormenorizará os acontecimentos; a crítica fará os balanços. Daqui, a crónica termina garantindo que Springsteen nos salvou outra vez a vida, a nós e às boas dezenas que de perto vimos em volta (não há prova científica de que tenha salvo os 81 mil, embora o bom senso para isso aponte), ligando outra vez o sentido das coisas.
Aquele primeiro disco, comprado com os dinheiros dados pelo avô e as fracções subtraídas ao lanche, foi para nos trazer até aqui. Orgulhosamente roucos de ter passado a noite a gritar com um bando de outros furiosos reencontrados. Rebeldia passageira e redentora. Sonhos de erros que temíamos não ter cometido. Mesmo que só por aquele momento sejam verdade.
Tramps like us, baby we were born to run.
As melhores cartas são as que nunca foram escritas, tal como as melhores palavras são as que ficam por dizer.
Todas as cartas são poemas. As cartas de amor são poemas ridículos.
Uma carta sobre uma carta sobre antes do derradeiro desespero: «Late afternoon Friday my last sight/ of you alive./ Burning your letter to me in the ashtray/ with that strange smile». Ted Hughes escrevendo a si próprio com a dor da última visão de Sylvia Plath.
Todas as cartas, embora tenham data, nunca são datadas. Perduram na memória e renascem sempre que as relemos. Obrigam à ressurreição em vida.
Das pouquíssimas coisas certas ditas por Rousseau: «As cartas de amor começam sem saber o que se vai dizer e terminam sem saber o que se disse».
O nosso mundo é fundado sobre correspondência: Abelardo e Heloísa no Historia Calamitatum, Séneca a escrever a Lucílio, São Paulo para os Romanos e Coríntios.
«Nunca um escrito saiu de qualquer mão que se não tornasse um fruto vivo», avisava há quatro séculos D. Francisco de Portugal. Como explicar isto a uma geração que escreve «axo q t amo»?
Uma carta recebida é sempre uma ausência percebida.
O médico pode salvar vidas, o juiz pode julgá-las mas é o carteiro quem as transporta.
Uma carta de amor sincera e bem escrita pode facilmente redimir toda a Humanidade.
Soror Mariana Alcoforado, o jovem Werther: dois casos de amores bem correspondidos.
Qualquer carta de amor é uma utopia solitária.
As formas epistolares electrónicas do nosso tempo carecem da verdade do manuscrito. A mais arrebatada declaração transforma-se numa notificação das Finanças.
A caligrafia é o coração da carta. Assis Pacheco percebeu-o e proclamou a sua radical beleza: «Porque tudo se escreve com a tua letra».
Todas as cartas trazem consigo um destino mesmo que não tenham destinatário.
Não é por acaso que desconfio do Tarot: tentar perceber o destino nas cartas é uma violação de correspondência.
Nos romances epistolares que atravessam a literatura podemos encontrar um inventário completo das paixões humanas. Das Ligações Perigosas a Drácula, sempre humanos, demasiado humanos.
Todas as cartas que enviamos são o nosso testamento. Mas sempre que as escrevemos estamos a iludir a morte.
Quem escreve uma carta deixa sempre o corpo para enviar a alma num sobrescrito.
Nas cartas existe sempre uma gramática masculina ou feminina. Durrell dizia que as mulheres escrevem sempre as melhores cartas aos homens que estão a trair.
Numa carta a ortografia deve ser um estilo de vida.
Todas as cartas são de jogar. Naquelas que são escritas jogamos apenas os dias.
[texto originalmente publicado na edição «Cartas» da revista Egoísta, em Março de 2012. Esta edição (e a «Viagens») venceu o Grande Prémio Categoria Revista dos Papies deste ano]
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