Quarta-feira, 14 de Março de 2012

Penalti

 Meio século depois de ter defendido o penalti falhado por José no primeiro dia de aulas, João estava outra vez diante do colega de escola, num aeroporto internacional, na mesma sala de embarque.

 

Não se viam há anos, mas sentiram, ao cruzar o olhar, o mesmo eriçar dos cabelos, o dedo no gatilho da testosterona, os dentes arreganhados, tudo aquilo que tomara conta dos seus corpos de rapazes, no campo pelado da escola, após João ter dado uma palmada na bola, que subiu, bateu na trave e ficou a saltitar perto da linha de golo sem entrar, e de José ter investido sobre o guarda-redes, cuspindo palavras e gafanhotos:

 

“Não vale, não vale, tu atiraste-te antes de eu chutar a bola.”

 

O jogo estava prestes a terminar porque, em segundos, iria soar a campainha para se iniciarem as aulas da tarde. A equipa de João liderava por 9-8, e aquela grande penalidade seria a hipótese de um empate, que seria resolvido numa sessão de cinco penaltis para cada equipa, durante o mini recreio da tarde

 

José não parava de fazer a mesma acusação: “Não vale, não vale, tu atiraste-te antes de eu chutar a bola.”

 

Mas não havia repetições e as regras, se as houvesse, foram engolidas pela euforia do falhanço, a equipa de João ganhava o primeiro encontro entre alunos que se conheciam nesse dia, impunha respeito, colocava-se adiante na luta pelo domínio da matilha.

 

Porque ninguém o ouvia e alguns colegas de equipa já começavam a olhá-lo como culpado pela derrota, José puxou João pelos cabelos e começou a esmurrá-lo, parando apenas quando o professor de Educação Física o agarrou pelo cachaço, tal e qual um pastor alemão abocanhando um gato, e o segurou com dedos firmes que lhe deixaram nódoas negras nos braços.

 

José seria punido, suspenso, levaria uma coça do pai. Mas, para o resto da vida, todos aqueles miúdos se lembrariam do seu poder, da forma como triunfou, entre poeira, suor e cuspo, perante um adversário que nem conseguiu lançar um murro. O jogo de futebol, a defesa do penalti, seriam notas de rodapé numa história maior – aquela em que José partiu a boca a João numa arena esgotada.

 

Tinha passado meio século e ali estavam eles, fingindo mandar mensagens escritas ou fabricando um interesse nas notícias financeiras que passam num plasma. O voo estava atrasado. Mesmo que não quisessem, acabavam a olhar um para o outro, disfarçando logo de seguida. Não se viam há mais de uma década, talvez desde o final da adolescência, mas o tempo não tinha qualquer efeito apaziguador naqueles homens. Durante anos, após o incidente, se por acaso estavam no mesmo grupo de amigos ou se encontravam numa festa de aniversário, se por acaso trocavam cromos do Mundial ou olhavam para as miúdas na matiné de uma discoteca, José sentia a jactância dos vencedores com título vitalício e João, embora disfarçasse, sentia um fervor nas orelhas e o estômago recuava para mais perto das costelas.

  

Não interessava nada o que acontecera entre a última vez que se tinham visto e aquele encontro no aeroporto. Não importava quem era agora mais rico, famoso, aquele que tinha os filhos mais bonitos e a saúde mais intacta. Essas disputas seriam coisas de criança se comparadas com a rivalidade que nasceu no momento do penalti.   

 

O voo tinha atrasado muito. José levantou-se para passear pelo aeroporto. João tinha ido à casa de banho.

 

Encontraram-se na loja de uma marca de desporto. Não precisaram de dizer nada. João abriu os braços e apontou para a sua esquerda e a sua direita, explicando aquilo que é praxe nestas coisas do futebol jogado na rua: a baliza vai dali até ali.  

 

José pegou numa bola e contou nove passos a partir da linha da baliza. Respirou fundo, imitou a pose de algum jogador que idolatrou na infância, e meteu a bola lá no cantinho onde nem os gatos acrobatas chegam.

 

José celebrou como não pôde celebrar há vinte e cinco anos. Mas não teve muito tempo para festejos. João deu-lhe um soco no nariz, fazendo-o cair sobre um expositor com ténis de mulher.

 

O voo era longo e tanto José como João não precisaram de comprimidos para dormir – cerraram pálpebras e apagaram o sistema central como se após uma tarde de domingo a esfolar joelhos e a cansar coxas na peladinha de rua.

 

Chegados à cidade onde viviam, José cancelou a terapia e foi correr junto do rio. João comeu a mulher – após um ano sem lhe tocar.

 

Nessa noite, José e João tiveram mais fome que uma praga de gafanhotos. Teriam participado em orgias imperiais, conquistado cidades com muralhas, decidido a final do campeonato do mundo no último segundo da partida.

 

José pensou: “Que grande golo.”

 

João pensou: “Parti-lhe o focinho.”

 

Há muitos anos que não desfrutavam, com tamanho entusiasmo, de coisas tão simples. 

publicado por Hugo Gonçalves às 21:29
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Terça-feira, 13 de Março de 2012

ai o soninho

Ai o que me irritam as senhoras e cavalheiros que dizem gostar muito de dormir. O que me abespinha o ar preguiçoso e presumido dos amantes do sono. Aquelas boquinhas a abrir acompanhadas duma simulação de pancadinhas nos mórfios lábios como se estivessem a reter o amado soninho mexem-me com o sistema nervoso, alteram-me o ritmo intestinal, causam-me cáries, provocam-me hemorróidas.

Quem diz que gosta de dormir é uma besta, pronto. Não me abespinharia muito com a cretinice se o cidadão amante do sono acompanhasse a sua declaração de amor com um pequeno peido e suspirasse “gosto tanto de fazer cocó”, ou acariciasse o respectivo órgão do aparelho urinário e, com um arrepiozinho, manifestasse o seu amor por uma vigorosa urinadela, ou soprasse nas unhas para anunciar ao mundo o que gostava de cortar as ditas, ou que achasse importante comer para não morrer à fome, ou beber para não morrer à sede, ou ter roupa quando está frio, ou de ter um isqueiro quando quer acender um cigarro. Pronto, a criatura estaria numa fase de redescoberta das coisas que permitem a qualquer animal de duas patas manter-se vivo (sim, alguns de nós precisam de cigarros para viver sem estar a pensar de dois em dois minutos em suicídio). Não é que deixasse de ser um redondo imbecil e me não estivesse a fazer pensar que as máquinas de tortura medieval foram abandonadas antes do tempo, mas, enfim, todos temos de aturar uns discursos idiotas de tempos a tempos.

Como sou uma alma caridosa, sempre disposta a ajudar o próximo, mesmo que o próximo me dê vontade de lhe encher a cama de urtigas a ver se dormia melhor, vou sugerir uma mezinha aos amantes do sono: 2 Kainevers de manhã e outros dois à noite. Dormiam vinte e três horinhas, o que deve ser uma espécie de Nirvana para eles, e, de caminho, não me massacravam a úlcera.  

publicado por Pedro Marques Lopes às 00:01
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Segunda-feira, 12 de Março de 2012

turbilhões de indulgência

Casei com a Nexpresso já lá vão uns anos. Não façam perguntas íntimas. Posso apenas dizer que, de início, a ignorei. Era demasiado óbvia. Desejada por todos, popular, fashion – coisa, enfim, doutro campeonato. Depois, sucumbi. Ela foi lá para casa e os primeiros tempos foram de arrebatamento: não era só o sabor, a elegância, a perfeição; era sobretudo o dar muito menos trabalho do que todas as outras (põe pastilha, tira pastilha, passa o depósito por água e já está). Ao fim dum ano ou dois, veio a rotina. Sabia tudo ao mesmo. Comecei a cansar-me do aroma. No fundo, elas (as cápsulas) eram todas iguais. Por fim, como um homenzinho, pus a mão na consciência. Vi que também eu não tinha sempre agido bem (umas bicas por fora, aqui e ali… Enfim, um cafeinómano não é de pau). Comprei o pacote de descalcificação, li as instruções, conduzi o processo. Hoje, temos uma relação adulta. Passado o deslumbre, ficou a confiança. Estamos lá um para o outro.

 

Dirá o leitor: “mas é só café”. Não, meu amigo. Não é só café. Quem quer que tenha vivido o privilégio de receber em casa a comunicação epistolar da Nexpresso sabe do que falo. É literatura. E assume duas formas: os catálogos (epopeias de aventura) e as cartas (poesia lírica). No primeiro caso, estes júlios vernes da cafetaria deixam-nos de respiração suspensa com empolgantes relatos que nos apresentam ao trágico passado daquelas pobres cápsulas. Cada um daqueles inocentes cafezinhos foi plantado por eunucos nos melhores solos da Colômbia; seleccionado por druidas celtas e monges tibetanos; colhido por virgens no solstício de Verão, salvo de ursos em fúria e tribos índias em polvorosa, transportado através do mundo por anões ao pé coxinho e empacotado enquanto o coro do São Carlos entoava árias de Puccini. Tudo, asseguram-nos, para que desfrutemos da plenitude do seu sabor.

 

No segundo caso, a coberto da assinatura dum pretenso “Club Manager”, poetas de génio escrevem-nos comoventes epístolas que preparam o terreno para a experiência mística que nos aguarda.

 

Reza assim a última carta a propósito do Grand Cru Dulsão do Brasil: “O seu corpo mais equilibrado e a suavidade infinita da sua essência (“suavidade infinita da sua essência”, por trinta e poucos cêntimos a cápsula, hã?) revelar-se-ão (repare no tom profético do tempo verbal, remetendo-nos para uma dimensão astral) nas suas experiências de degustação” (fino equilíbrio entre ciência e erotismo). Já o Grand Cru Livanto, garantem, é “mais subtil do que aparenta”, o sonso – são os piores. Ambos, a par do Volluto, “suaves e encorpados com personalidades surpreendentes”. Universitárias meigas e massagistas peludas dos classificados, ponham-me os olhos nisto.

 

Por fim, remata o estilista escondido atrás do óbvio pseudínimo “Teresa T. Magalhães”, o êxtase lírico: “Sublime as suas experiências de degustação com os nossos capuccinos” (ler aqui “sublime” como eufemismo de “enfarte”, consequência lógica de beber uns capuccinos depois de três cafés de pancada). “A cremosidade do leite equilibra os aromas e suaviza a sua plenitude, transportando-o(a)” (sublinhe-se a lânguida ambiguidade sexual) “para” – atenção, caro leitor – “um turbilhão de indulgência”.

 

F*da-se. Um turbilhão de indulgência.

 

Um Delta faz isto, por acaso? Um Torrié?

 

Não brinquem comigo.

 

Quando quero um café, vou à rua. Nexpresso é Buda. E Samantha Fox. E Pessoa. Tudo junto. E não necessariamente por esta ordem.

publicado por Alexandre Borges às 02:06
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Sábado, 10 de Março de 2012

uns quantos megas de memórias históricas

Acho que todos concordamos que ser acordado pela histeria e urgência de um alarme de fogo não é um bom auspício para o dia que se avizinha. Pior ainda, é o pânico que nos conquista quando corremos sem plano pela casa a pensar no que devemos levar e se podemos mostrar o nosso pijama aos vizinhos. Depois de alguns episódios semelhantes já consigo, porém, sair descontraidamente de casa para conversas de circunstância com empantufados (há algo nesta intimidade forçada que une a vizinhança, como se a roupa de dormir abolisse estatutos sociais).

 

A primeira vez que isto me sucedeu despachei-me a vestir umas calças e corri para salvar o portátil, conferindo-lhe logo ali o estatuto de objeto mais importante da casa. É um gesto pouco romântico que não fica bem no currículo da vida, não se equipara a salvar a primeira edição de O Retrato de Dorian Gray ou um volume das seleções do Reader´s Digest. Mas é um facto que não posso contrariar. Afinal é nas suas gavetas informáticas que estão guardadas as minhas fotografias, o meu trabalho, a música, os textos e mesmo alguns livros digitais. É ele – ainda não lhe dei nome, mas já tem personalidade – que sabe por onde passeio na Internet. É triste, mas ele conhece-me muito bem. Para além disso, não tem o peso dos muitos álbuns a preto e branco, armários de discos, estantes enciclopédicas e eteceteras que a geração dos meus pais, numa situação semelhante, teria de carregar há uns anos para não perder as memórias.

 

Agora carregamos as nossas memórias físicas, comprimidas e arrumadinhas, numa máquina com uns três, quatro quilos de peso. Confiamos que o computador seja nosso amigo e não se decida a fugir com a nossa história. Andamos com ele pela cidade, levamo-lo para a biblioteca, o escritório, para casa dos nossos amigos. Até viajamos com ele. Conseguimos, assim, ter a nossa casa sempre às costas, seja em que continente estivermos.

 

Ou seja, estamos dependentes dele. Mesmo que de vez em quando nos lembremos de fazer cópias de segurança da nossa memória, conscientes de que qualquer relação pode chegar ao fim, teremos sempre de a confiar aos humores imprevisíveis de uma outra máquina. É uma relação injusta. Porque se nos esquecermos das palavras mágicas de acesso ao nosso e-mail, rapidamente se aniquila um passado epistolar eletrónico. Para além disso, estamos sempre a ouvir que a máquina tem sempre razão. E será ela a decidir quando irá desta para melhor, levando consigo uma grande parte dos nossos megabytes de vida passada.

 

publicado por Ricardo Correia às 14:48
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Sexta-feira, 9 de Março de 2012

O decantador

Acontece-me ouvir o último de Leonard Cohen, "Old Ideas", ao mesmo tempo que leio um livro sobre o bicho ("Leonard Cohen - O Eterno Regresso", Guerra e Paz, que comprei recentemente a preço de saldo). É como se estivesse a tentar percebê-lo com duas bússolas - como se estivesse a seguir o rasto do homem e do personagem no cruzamento dos maturados versos de "Old Ideas" com as suas próprias palavras e com as conclusões do autor do livro, Marc Hendrickx. Há dados que já sabia. Mas sabe bem voltar a sabê-los, voltar a encontrá-los, num lento processo de reconhecimento que tenta respeitar a boa lentidão das procuras de Cohen.

 

 

 

 

 

Há, sim, há muitas camadas em cada uma das canções de "Old Ideas". E há, o mais difícil de tudo, frescura. São frescas estas ideias velhas. Como se Cohen estivesse a cada passo a libertar-se da ganga e dizer as palavras que merecem ser ditas, porque essenciais.  Estão aqui alguns temas antigos - o amor, da carne e do espírito, o regresso e a compaixão, o pedido de compaixão para todos nós. E uma pintura irónica sobre tudo isto. O sofrimento foi transformado noutra coisa. São palavras sábias aquelas que são ditas por este "lazy bastard". Não lhe importam as opiniões, mas aquilo que sobrevive depois do verbo fácil: "Não preciso de organizar nenhum sistema que se respeite a si mesmo ou de exprimir um ponto de vista claro". Cohen chegou àquela fase em que percebe a relatividade de muitas das opiniões que defendemos inflamadamente, como se disso dependesse a nossa identidade. "Tudo o que tenho de fazer é dar informações, de tempos a tempos, com a maior clareza possível".

 

"Old Ideas" traz mais uma vez a sua impura clareza. A sua incapacidade para plagiar dogmas, tradições e religiões por ter uma lente muito própria, uma forma muito sua de decantar o mundo. É o homem que esteve no mosteiro mas que sabe - e diz - que o seu ligar é a rua, é a vida. Para falhar melhor, como dizia o outro. E cantar o falhanço  - e o gesto de se levantar e olhar em frente - com aquela elegância que se lhe conhece.

publicado por Nuno Costa Santos às 21:43
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Quinta-feira, 8 de Março de 2012

Muita força para pouco dinheiro

Acreditei, a minha vida toda, que era na confiança que a Justiça oferece aos cidadãos e na estabilidade das instituições que estava uma das chaves para o sucesso das sociedades. Talvez por isso tenha orientado a minha formação académica e cívica nesse sentido. Em todas as conversas que tenho com os amigos, há no meu discurso uma tendência para defender as instituições e para promover a sua necessidade. Torno-me numa pessoa aborrecida mas, tive sempre muita convicção no que acredito. Sou um conservador.

 

Porém, num destes dias, um desses amigos informou-me sobre o desfecho do seu grande processo judicial. Era um processo de Trabalho que se arrastava há 3 ou 4 anos. Acabou em desistência. Por ironia do destino, a história começou no dia em que os Sex Pistols tocavam em Paredes de Coura. Fomos os dois. Não me recordo ao certo de quantas vezes, nas longas noites no nosso Cheers, discutimos sobre Justiça, Tribunais, demagogia, confiança institucional e rock'n'roll. Acredito que ele via na minha convicção uma espécie de esperança. Para tudo.

 

Vivo, agora, um dilema. Neste meu dilema, ancorado numa crise social e económica aguda, ando perdido entre a manutenção da minha convicção inicial e a total desconfiança sobre a capacidade de resposta das instituições às inquietações das pessoas. Pergunto eu, hoje, como pode alguém ter confiança numa Justiça que não consegue, sequer, notificar um arguido e que deixa um processo arrastar-se sem que a inquietação de dezenas de famílias seja, pelo menos, tranquilizada? Com que dignidade vive um país cuja indefinição e ineficácia dos seus tribunais faz com que qualquer um de nós pense duas vezes antes de se meter em processos para reivindicar direitos legítimos?

 

Ninguém vive assim, num clima de desconfiança, de dúvida, de incerteza e de resignação. E as forças esgotam-se. E as pessoas desistem. E desistimos de todos nós. Não se vive, assim.

publicado por jorge c. às 00:00
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Quarta-feira, 7 de Março de 2012

Sobre as crónicas que não querem ser crónicas ou A pieguice do cronista

 

Já se sabe, até ao enjoo, que todos os cronistas, em algum momento, começam uma crónica falando da falta de assunto. Nunca o fiz e prometi que não o faria, embora as minhas resoluções nem sempre tenham a abnegação de um general dos antigos, vacilam nos joelhos diante de uma tentação como adolescentes japonesas no camarim de um ídolo pop teen. Como se diz por estes lados: “Sou facinha.” Mas não será ainda hoje que venho para aqui compadecer-me da falta de assunto.

 

O meu problema são as crónicas que não me apetece escrever – por preguiça, aborrecimento e procrastinação patológica –, mas que se vão empurrando contra a minha pele, seres alienígenas que germinam dentro de mim, esperando poder saltar cá para fora a fim de se mostrarem, vaidosas como são as ideias, as impressões e os bitaites, mas permitindo-me dessa forma seguir adiante com outras obsessões. E por isso há um alívio quando se emancipam, cruzando derme e epiderme, e seguem seu caminho. 

 

Essas crónicas que não quero escrever começam do nada, um grão, um microfilme, pode ser uma frase, uma imagem, um gesto. Por exemplo: há umas semanas, numa noite desse calor que faz estalar os insectos, caí nas águas voluptuosas da piscina de uma amiga. E estar ali, no verão, rodeado de crianças que faziam bombas e garotas que falavam e davam risinhos literários nas espreguiçadeiras, estar ali, banhado no azul e no cloro, olhando as árvores, o céu, as estrelas e todas as cenas que fizeram das nossas noites de verão algo de memorável, estar ali foi motivo para que a imagem de uma piscina noctívaga se acendesse dentro de mim, desde então, como as luzes debaixo de água. Talvez porque tudo o se parece com as férias grandes, quando as férias grandes iam de uma ponta à outra do verão, nos leve a pensar em viagens épicas no dorso de bicicletas e beijos em miúdas e alguém que partia um braço a fazer qualquer coisa estúpida como saltar do muro para a piscina.

 

Guardei a imagem da piscina para outros escritos. Mas havia mais um bicho a crescer dentro de mim, uma criatura que nasceu da observação do comportamento dos zombies da tecnologia – amigos que cruzam um almoço passando o dedinho na telinha do iPhone, as crianças que me foram apresentadas num jantar, mas que nem levantaram as carinhas robotizadas do jogo no iPad, o adolescente que, no elevador do meu prédio, fitava qualquer coisa no seu gadget prateado com o mesmo olhar de uma vaca com quem, há alguns anos, me cruzei nas planícies verdes da Dordogne.    

 

Consegui refrear, até agora, o crescimento desse bicho – sei que quer atingir a maioridade e ir por aí, decretando sentenças sobre o uso dos telemóveis, lamentando o impulso que nos leva a querer saber tudo a toda a hora sobre toda a gente, sobrecarregando-nos e poluindo-nos com informações tão dispensáveis como ruidosas. Turn it down a notch. Vão com calma. Tirem o dedo da telinha.  

 

Talvez tudo o que escrevi até aqui seja tão inconsistente como a longa desculpa do aluno, que não tendo feito os deveres, tenta adiar a previsível confissão: “Não fiz.” Talvez todo este engonhar, esta ladainha de empata-crónicas, este deixa ver onde isto vai dar, tenha sido apenas vergonha de dizer que, há semanas, há outra coisa a crescer dentro de mim, outra ideia, imagem e alegria.

 

Quando saio de casa para correr, de manhã, entro na rua que tem árvores e casinhas e duas escolas. É tão tranquila como se no campo. E ali estão as mães, dezenas delas, esperando as escolinhas abrirem, brincando e dando colo aos seus filhos de creche, todos vestidos com t-shirts e calções vermelhos, simpáticos e espantados com o mundo inteiro: com os cachorros, os insectos, as pessoas que eles não conhecem mas a quem dizem adeus. Tudo é novo e bom.

 

Hoje um dos rapazes dava festinhas numa menininha e ela retribuía – as mães encantadas, eu feliz por estar ali e ser de manhã cedo e ter o mar tão perto. Pensei se me acontecera o mesmo que a Stephen King: depois do atropelamento, o escritor chorou ao ver o filme Titanic, e questionou-se se alguma coisa no quartinho das emoções, lá no andar onde mora o cérebro, não teria sido afectada com o acidente.

 

Mas não bati com a cabeça em nenhum lugar nem tomo medicação. E se para me livrar desta criatura adocicada que acabou de sair cá para fora, escrevendo sobre a sua felicidade matinal diante do decorrer mundano e, no entanto, tão pungente, tão cintilante e leve, da vida normal dos outros, se para evitar a pieguice de falar, no futuro, do sorriso das crianças e das manhãs de verão, tenho mesmo de sacrificar esta crónica, então seja.  

 

Bem cedo, quando saio para correr e os termómetros ainda não alcançaram os 30 graus, passando naquela rua, vendo as mães e os seus filhos, percebo que sou muito mais piegas do que gostaria de ser. Resta-me o consolo que, para chegar a esta conclusão, não precisei de ser atropelado.

publicado por Hugo Gonçalves às 20:09
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Segunda-feira, 5 de Março de 2012

a vida celebrada a 23 nós

Era uma manhã de Novembro quando o telefone tocou. A proposta era simples e irrecusável: escrever um diário de viagem a bordo daquele que é um dos dois maiores navios de cruzeiro do mundo: o “Oasis of the Seas”. 362 metros de comprimento, 220 mil toneladas de peso, capacidade para 6296 passageiros e 2196 tripulantes. Uma proeza da engenharia naval que já mereceu documentário no Discovery Channel e que caminha para o estatuto de lenda. E, de repente, essa imagem feita de uma praia rodeada de coqueiros, ao som de brindes e batuques, rompeu o Outono depressivo, o fluxo contínuo e monocromático de notícias sobre a crise. Era a salvação em oito dias de fuga.

 

Isto foi dois meses antes de o capitão do Costa Concórdia lançar o pânico na indústria dos cruzeiros; a viagem só se concretizaria agora, na semana que passou, quando outro navio da Costa Cruises fez disparar o alarme sobre aquela que é, na verdade, a forma mais segura do mundo de viajar. Mais do que a aviação. Mais do que a velha bicicleta. Estatisticamente, há tão poucos acidentes em cruzeiros que é mais provável irmos desta para melhor fulminados por um raio. Medo? Guardo-o para quando atravesso o Marquês de Pombal.

 

O “Oasis” é uma cápsula onde cabe um pouco de todo o mundo e, ao mesmo tempo, uma pequena nação à parte e em movimento. A Royal Caribbean, empresa proprietária, é norte-americana, mas foi construído na Finlândia e tem bandeira das Bahamas. O capitão é norueguês, mas há tripulantes de outras 70 nacionalidades. Os passsageiros, sabe-se lá; vêm de toda a parte, mas com um mesmo objectivo: celebrar. Todos os dias, um “Happy Birthday” pendurado na porta dum quarto denunciava um aniversariante. Um grupo de convidados vestido do mesmo branco que a noiva desfilou três dias pelo navio comemorando um casamento. Outros estavam em lua-de-mel, faziam anos de casados, festejavam a licenciatura do filho, a reunião dos antigos colegas de liceu, et cetera. Celebração, pois, é a palavra-chave que ocorre ao diarista no regresso a casa, com tudo o que ela implica: um ambiente de euforia permanente, a simpatia e a disponibilidade que os rostos arquivam o resto do ano nas caves de si, um navio que cruza as águas caribenhas como uma bolha de ilusão onde não entram rotinas nem urgências.

 

Os cruzeiros não são baratos, mas, aparentemente, são a garantia de qualquer coisa sem preço: estar longe. Num mundo onde cada vez mais parecemos legalmente obrigados a atender o telefone e responder a emails onde e quando quer que estejamos, “longe” significa a libertação instantânea e incondicional de tudo isso. A meio do mar, muitas vezes não há rede telefónica nem internet – e, quando há, ninguém precisa de o saber. Ao meio do mar, não chegam jornais e quem ligar a televisão fá-lo à sua responsabilidade. Ao meio do mar, não chegam notícias nem a parafernália da publicidade, de modo que o que vem à superfície são as pessoas – as pessoas e o agora.

 

Claro, dir-me-ão, também podemos desligar o fio do mundo num esconderijo remoto no interior do país. Esse seria, aliás, o meu conselho médico: exílios regulares em aldeias e casas de campo. Mas aí não há restaurantes de autor, bares de jazz, clubes de comédia, cinemas e teatros, piscinas e jacuzzis, ginásio e pista de jogging, spa e casino, lojas, salas de jogos, biblioteca e discotecas, paredes de escala e simuladores de surf, até um jardim em pleno mar com plantas exóticas e recantos de leitura (algo, porventura, ainda mais exótico) e, sobretudo, uma porta principal que, a cada manhã, se abre para um porto diferente. Não. O “Oasis” é o exílio com estilo. Não se pode fazer sempre, mas pode fazer-se uma vez na vida – para celebrar a vida inteira.

 

Mas, chegado ontem a casa (um dia antes da minha mala que, aparentemente, decidiu ficar mais 24 horas algures entre Miami e Madrid), o que a memória guarda são, acima de tudo, as pessoas. Mais do que os sete bairros do “Oasis”, mais do que as palmeiras e água cristalina das Caraíbas, são as histórias das pessoas que trazemos na bagagem e que nenhum controlo alfandegário pode retardar ou obstruir.

 

Theo, bahamiano que faz verdadeiro stand up comedy enquanto guia os turistas no ferry que liga Nassau a Paradise Island. O taxista que canta repetidamente “Twist & Shout” como a última novidade do mundo da música enquanto conduz a sua carrinha escolar adaptada ao turismo pelas colinas de St. Thomas. Nick Maley que, depois de dar vida ao master Yoda da “Guerra das Estrelas”, se retirou para as piña coladas das praias de St. Marteen. Morgan, o empregado de mesa que, no “Oasis”, continua a rondar a sua Jamaica natal, enquanto equilibra pratos de sobremesa na cabeça e sonha ser capitão. Ronny, o filipino que há nove anos trata dos quartos e questões burocráticas dos seus passageiros e que espera lá estar ainda, daqui a dez anos, para nos receber numa próxima viagem. Aquela pequena amostra do mundo em que vivemos que decidiu tirar a mesma semana de vida para celebrar a bordo do mesmo navio e cujos nomes nunca saberemos. Os noivos e convidados do interminável casamento branco. Os bebés nos seus carrinhos e os homens e mulheres com quem se cruzavam e que determinaram que as cadeiras de rodas não lhes roubariam o prazer de viver. Os loucos que faziam slide sobre o navio. O misterioso Robinson Crusoe que fumava ininterruptamente no antepenúltimo deck enquanto todos se banhavam na piscina e preparavam para as noites de gala. As mulheres de vestido de noite e salto alto que subiam nos mesmo elevadores com homens de roupão e chinelos a caminho do jacuzzi. Os viciados do casino, os heróis da pista de jogging, Bruce Gordon e o seu quarteto jazz, Simeon e as melhores piadas do Caribe. E por aí afora, até chegarmos aos oito mil habitantes daquele país temporário onde tudo quanto nos liga ao tempo é uma placa indicando o dia da semana nos elevadores, trocada manualmente a cada meia-noite dum fuso horário fictício.

 

Regressado a Lisboa, estranho que o elevador do escritório não me informe do facto de ser segunda-feira e não haver mar do lado de lá da varanda. Os calções de banho voltam para a gaveta por mais um trimestre. Cá fora, fica estendida a certeza de que, uma vez por outra, todos merecemos celebrar a vida a bordo da lonjura.

publicado por Alexandre Borges às 17:38
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Sábado, 3 de Março de 2012

cortar o pio à crise

Quem assiste à crise portuguesa sentado num apartamento londrino não deixará de ficar com a impressão de um verdadeiro êxodo rumo a outras paragens. Num fórum de portugueses emigrados chegam quase diariamente novos membros. Na rede Couchsurfing também se repetem os pedidos de portugueses. Alguns querem simplesmente dicas e uma ou outra ajuda, outros querem um sítio onde ficar antes de se lançarem à aventura. Uma verdadeira aventura, porque saem sem nada definido e aproveitam os dias aqui para procurarem trabalho, irem a entrevistas, com a esperança de não terem de utilizar o bilhete de volta.

 

Mas há muitos bons exemplos ao virar da esquina portuguesa. E é nesses que me quero concentrar. Agarrar-me às hipóteses que vão sendo construídas. Porque tanta má notícia só pode paralisar. Gosto de ouvir falar dos projetos de amigos que não caíram na desesperança, que criaram empresas e desenvolveram ideias – a maioria por necessidade, é certo – e que estão a dar os primeiros frutos. Sentados em Portugal, apostam e conseguem competir no mercado internacional. E os bons exemplos continuam: apesar da moribunda produção cinematográfica independente, o João Salaviza saiu de Berlim com um Urso de Ouro e o filme “Tabu”, de Miguel Gomes, também venceu uma estatueta. Profissionalmente, somos muito bem vistos aqui no Reino Unido, se calhar porque estamos habituados a longas horas de trabalho. Leio também que muitas empresas de têxteis estão a abandonar a aposta na mão-de-obra barata chinesa e a voltar a investir na qualidade portuguesa.

 

E ainda poderia falar na coragem de muitos: aqueles que fazem ouvidos moucos às precauções e se despedem para concretizar ideias que há muito os habitavam. Abrem cafés e lojas, hostels e revistas. Há ainda quem diga agora ou nunca e ensaie novos estilos de vida, concretize projetos jornalísticos muito interessantes, viaje à volta do mundo com os filhos ou decide que está na altura de largar tudo e desenhar os próximos cinco anos nos cinco continentes. Apesar da época de incertezas, ou se calhar por causa dela, continua a haver pessoas decididas em seguir novos rumos. Não será certamente fácil para nenhum deles. Mas invejo-lhes a coragem. Não sei se faria o mesmo se tivesse um emprego certinho. Apesar de há muito não saber o que é ter um emprego certinho. O último que tinha acabou quando a editora faliu no início deste século. Na altura já se falava de uma crise na Europa. Tenho a impressão de que nos vamos ter de habituar a ela, pelo que se calhar valerá a pena deixá-la a falar sozinho (ou mais baixinho) quando estão em causa decisões pessoais. Ainda não encontrei a melhor maneira de o fazer, confesso. Mas lá chegarei, lá chegarei.

 

publicado por Ricardo Correia às 11:37
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Quinta-feira, 1 de Março de 2012

Atenção! Anda um homem à solta.

Deambular pela cidade não é uma acção absolutamente livre. Estamos sempre condicionados por alguma coisa: um percurso habitual, a familiaridade das ruas ou a simples preguiça. Assim o é, também, nas conversas. Sentimo-nos condicionados pela existência de uma narrativa, pela necessidade da coerência e por temas definidos e perfeitamente separados.

 

Pois eu sou a favor da anarquia dos passeios e das conversas. Porque para a contemplação e para o campo das ideias não deve haver limites. Há mundos a desbravar para além do aceitável, do acessível. Há que pular o muro como o João Sem Medo e não perder tempo com regras. Nunca se pode deixar uma ideia morrer, e ficar sem assunto é deixar as ideias fechadas num abismo e as possibilidades por descobrir.

 

É preciso falar e falar, cada vez mais, sem grande calculismo do que se está a dizer, sem pruridos com o que o outro diz e pensa. Ouvir e construir uma conversa sempre nova, sem necessidade de passar a vida a questionar, sem sugerir, sem pedir licença para atropelar, sem bocejar e fazer bocejar de tédio.

 

E que, entretanto, se beba. Beba-se muito. Porque, como diz o Esganarelo no D. Juan: "Diga o que diga Aristóteles e toda a sua filosofia, não há nada que se compare ao rapé. É a paixão dos nobres. Não exagero: quem não ama o rapé não é digno da vida".

publicado por jorge c. às 00:58
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