O seu nome é Fachada. B Fachada. Anda aí há uns tempos (desde “Viola Braguesa”, de 2008) e tem uma virtude que causa desespero, melancolia, ressentimento: trabalha muito e bem. Para usar o jargão crítico que convém sempre a estas circunstâncias, faz parte de uma novíssima vaga da música portuguesa, que é demasiado vaga para estar aqui a sistematizá-la em unidades e características. Fachada tem lata, descaramento. Lírico e irónico. Tanto cantarola cançonetas de amor como destila sarcasmo nas esquinas. É – passe o palavrão – um cantautor multifacetado nos temas e na instrumentação. Compõe, escreve, canta e tanto se safa bem com as guitarras clássicas como com os synths. E com os metalofones. E com as garrafas de água (é verdade). O que lhe interessa é passar musicalmente a sua visão do mundo – ele que, mestre na auto-paródia com sentido, sentenciou no temazinho de “Um Fim-de-Semana no Pónei Dourado”, primeiro longa duração: “Vou trabalhar que nem um cão para fazer cada canção/ vou ser bastante puritano para fazer dois discos por ano/ a ver se me torno de vez no Frank Zappa português”. E a verdade é que, Zappa ou não Zappa, Fachada não tem sido só fachada. Tem cumprido a promessa. Os discos vão saído – e depois do referido álbum, onde pontuam crónicas de costumes como “Zé!” (“Chamo-me Zé!/ Vim para aqui a pé e agora tenho um cadilac”) e valsas (aparentemente) púdicas como “O Ciúme e a Vergonha”, já saiu mais um mais ou menos do mesmo tamanho onde o apuro na produção não fez apagar a verve romântico-irónico-literário-qualquer-coisa das composições e respectivos verbos.
O álbum “B Fachada” traz, numa versão mais clean e apresentável ao sogro, temas orelhudos, de fazer bater o pé no chão, como “Estar à Espera ou Procurar”, e poemas sobre o hobby do divórcio como “Kit de Prestidigitação” (“Já só tenho um rim para te emprestar/ o coração tu já levaste na pensão alimentar”). Mas não faltam também supremos hinos amorosos como “Cantiga de Amigo” e a lindíssima “Velha Europa”, que traz um verso que é um programa de solidão e saudade: “Perguntei ao vento se trazia um cabelinho teu”. Sim, mais uma vez Fachada assegura quase tudo na epopeia – dos primeiros rascunhos às segundas e terceiras e quartas vozes. A sua obra já se amontoa cá em casa - e inclui um incorrecto álbum para crianças e o sonoramente sujo EP “Há Festa na Moradia” onde pontuam canções em que se sente a gratidão por alguns compositores de música popular portuguesa como Fausto e Sérgio Godinho. E uma refinada atitude de sardónica arrogância, algures entre o gesto zombeteiro em relação aos meios intelectuais-artísticos lisboetas e um terno interesse pela tradição rural lusitana, cada vez mais ignorada pelos ruídos, sonoros e humanos, das urbes.
E é justamente com ruralidade que começa o disco recém-editado de doutor Fachada. “Deus, Pátria, Família”, trilogia outorgada e defendida no seu bairro e no seu tempo por um personagem política de apelido Salazar e agora também o último fôlego de uma alma que ainda só vai (escândalo) na década dos 20. O galo que abre o novíssimo disco é um bicho provocador. B não veio aqui para jogar ao Farmville. Veio para partir a louça. Para comunicar ao mundo a sua visão desse mundo. E – é a vida - nem sempre tem adjectivos bonitos para dizer. O disco só tem uma música – que dura 20 minutos. E o que fica da sua audição é o supremo desabafo sobre o decadente estado da histórica Nação lusa, cada vez mais dependente de amadorismos, esmolinhas e jogadas de pseudo-charme vindos do estrangeiro. Há aqui ironia, mas, mais do que ironia, há sarcasmo. Topem a letra: “Portugal está para acabar/ É deixar o cabrão morrer/ Sem a pátria para cantar/ Sobra um mundo para viver/ Chegam flores do estrangeiro/ Já escolhemos o coveiro/ Por mim é para queimar/ Mas não quero exagerar”. Imagine-se uma alma sensível a ouvir isto. A conversa não é a do incitamento neorealista à luta nem ao malhanço nos “poderosos”. É a constatação conceptual (conceptualmente emocionante) de uma identidade que vai falindo e aquele tipo de atitude provocadora (e precisamos tanto dela!) de quem, habitando um prédio que se deixa cair melancolicamente em ruínas, diz que o melhor é mandá-lo abaixo. É, sim, é o mais patriótico dos gestos. Aquele que destrata a família porque a ama profundamente. Em termos formais está tudo bem trabalhado: quando Fachada grita as suas “brutalidades”, não o faz à maneira de um trash metal festivaleiro. Não. Há leveza e elegância na forma como diz - e na instrumentação de baile que acompanha as palavras. O que lhes dá mais força. O que lhes imprime o efeito de um “acordem!”. Mais uma provocação do bardo e cidadão fachadês. Que, em jeito de ambígua nota final, afirma encontrar no privado as águas onde as naus, agora transformadas em barquinhos para casais, podem em tranquilidade navegar: “Ninguém quer mais que ser um pai babado”.
(texto publicado na revista "Dicta & Contradicta")
Eh pá, morreu o Millôr Fernandes.
A nossa vida toda, passamos grande parte dela enfiados num fato, numa caixa, num carro, de um lado para o outro, aos círculos. Temos cartões para aceder a tudo: à ponte, ao estacionamento, ao trabalho, ao dinheiro, ao desconto. A nossa rotina está padronizada, registada e arrumadinha. Habituámo-nos à organização, às organizações, à coerência, tudo para evitar o embaraço, o deslize. Mudamos tudo à nossa volta. Tomamos decisões de ano novo. Somos especialista da especialização e mestres do disfarce. Falta-nos o tempo para sermos mais justos connosco próprios.
Aprendi com a cultura brasileira, que me foi chegando, a não deixar a gravata ser uma parte de mim. Aprendi com Vinicius, Celso, Machado de Assis, Chico e tantos outros a viver o grande tempo, a disponibilidade, a generosidade, a amizade, o céu e o mar. Aprendi mais sobre a vida numa frase do Millôr do quem em mil discursos de circunstância. Porque a vida não é uma circunstância; circunstância é estar-se vivo e com isso é difícil de se lidar.
A regra, a regra mais fundamental de todas as regras, é não nos levarmos demasiado a sério. É cultivar a bondade e o perdão, saber rir e gostar de fazer rir. Nunca podemos esquecer o riso - o pai de todos os equilíbrios. E que a palavra seja o nosso vício, a palavra livre que rasga o embaraço e inventa a liberdade, que mete a rotina no seu devido lugar e nos faz sair disparados pelo céu à procura de algo mais puro - o ar, que seja.
Adeus, Millôr. E muito obrigado.
Era um bar e isso dava-me algum conforto, uma vez que não sabia como tinha ido ali parar – as garrafas luziam atrás do balcão e a jukebox tocava Billie Holiday. O chão estava limpo embora eu soubesse – não sei como – que aquela era a hora de fecho e que muitos degenerados tinham passado por lá ao longo da noite.
Era um bar igual a tantos outros e foi isso que me descansou – o consolo de já ali ter estado, em muitas cidades diferentes. Um bar é um bar.
Ao fundo, na mesa perto das casas de banho, um homem seco como um pugilista peso-pluma demorava-se a beber, com estilo e deleite, um bourbon sem gelo. Disse:
“If it ain’t the dreamer himself.”
Resolvi aproximar-me. Era Frank Sinatra, jovem como quando fazia sucesso entre meninas adolescentes, rufia como o rapaz de Hoboken que largou a primeira mulher para dormir com uma stripper com doenças venéreas. Tentei falar inglês mas não sabia como. Disse:
“O senhor aqui?
Frank Sinatra passou a falar português. Era estranho, mais ainda porque falava com sotaque de Alfama.
“Vai buscar mais uma garrafa e senta-te aí.”
Foi isso que fiz – it’s Frank’s world, we just live in it. Estava a regressar com a garrafa quando Batman saiu da casa de banho e ordenou, com sotaque do norte: “Oube lá, ó trongamonga, traz aí um copo pró Batemã.”
Sentámo-nos os três e Sinatra disse: “Não sei como consegues mijar com essa merda”, e apontou para as partes baixas da armadura de Batman. “Nem imagino como será na intimidade, com senhoras e senhoritas.”
Bebemos a garrafa inteira enquanto as músicas iam tocando na jukebox. Eu disse:“Estamos à espera de quê?”
Sinatra respondeu: “Do super-homem.”
“Vá lá, a sério.”
Sinatra bateu palmas e, na juke box, começou a tocar a música do filme do super-homem. De seguida entraram no bar várias hospedeiras, de farda azul e cabelo loiro, que se sentaram à nossa mesa. Atrás vinha o super-homem e Sinatra segredou-me: “Não entendo aquela paneleirice de o gajo andar com cuecas vermelhas por cima de collants.”
“Eu quando era pequeno mascarei-me de super-homem”, confessei, estupidamente, e logo me arrependi.
Sinatra encheu o copo e cuspiu as palavras como se manobrasse uma navalha: “Tou fodido, isto hoje é noite para amadores.”
“Quem são elas?”, perguntei.
Super-homem respondeu enquanto acendia um Camel sem filtro: “São hospedeiras da Icelandic Air.”
“Eu vi isto num episódio dos Sopranos, havia uma cena em que o Tony estava numa suite, a fumar charuto, e havia várias hospedeiras da Icelandic Air.”
“Estavam vestidas?”, perguntou Sinatra enquanto Batman bajulava, com piropos chapa cinco, uma hospedeira parecida com a Bjork.
“É verdade”, respondeu uma voz familiar. “Eu posso validar o testemunho do rapaz”, disse Tony Soprano, no meio do bar, quando a música desapareceu. “E para lhe responder, mister Sinatra, as que se encontravam vestidas não ficaram assim muito tempo.” Todos se riram.
Perguntei: “Mas que raio se está a passar aqui.”
Fank respondeu: “It’s your fucking subconscious, kid, how the fuck should we know.”
Super-homem acrescentou: “E agora vai contar o sonho à tua terapeuta e arrotar cem pratas no final dos 50 minutos.”
Insisti: “Mas não vai rolar nada com as meninas?”
Uma delas disse: “Gostas de cordas?”
E claro que o despertador tocou no outro lado do espelho.
Tenho dormido numa casa que não é minha. É numa rua bonita, com muita luz. Durante os fins de semana, o barulho de gente que se diverte não me deixa dormir. Acordo estremunhado mas a algazarra não me irrita e muito menos me entristece. Os gritos, os risos, as correrias lembram-me dias mais felizes. Momentos, sensações que tive, tempos que não regressam mas que não me trazem melancolia, apenas a consciência de os ter vivido bem e a certeza de que aquela já não é a minha vida. Como uma truta que vai descendo o rio, até pode tentar lutar contra a corrente mas o esforço que fará apenas a vai levar mais depressa para a foz. A boa, a única maneira é deixar que o rio nos leve suavemente.
A rua é bonita mas não é minha. Nunca será. Não foi por aqui que passou o meu rio, não é este o meu leito. É um bocado de madeira que a corrente trouxe e me fez parar. Sei que não há ramo que pare a água e daqui a nada seguirei o meu rumo. A estrada, os passeios, as casas pouco importam. A minha rua é feita de sentimentos, de memórias, de bons e maus momentos, sobretudo de gente, da minha gente.
Vejo um gato daqui da janela. Está para ali, deitado na pedra quente, ao sol que o aquece. Sempre só. Estica de tempos a tempos um corpo gordo, afia as unhas de olhos fechados como se aquilo fosse fundamental para que se sinta vivo. Come e dorme por instinto. Olha duma forma opaca para quem lhe dá atenção como se não percebesse por que diabo alguém o fará.
Detesto gatos.
E de repente é tão estranho e tão bom regressar às palavras. Um tipo que as cultive precisa disso: desses arbustos grafados por onde espreitamos os outros, tão paternalistas como imbecis, uma espécie de BBC Vida Selvagem da natureza humana onde nos esforçamos por esquecermos que também nós somos feitos dessa parca natureza. Mas parece não haver nada a fazer, as palavras insistem em ser ditas mesmo que pouco valham.
Para mim a ausência desta casa foi imposta pela matéria-prima da escrita - a vida. No meu caso: a vidinha. Como diria o hippie talentoso enquanto tocava no seu piano branco em directo da sua mansão branca onde lá fora o esperava o seu Rolls Royce branco:"imagine no possessions". Desculpem, a citação era outra, da autoria do mesmo: a vida é o que nos acontece enquanto estamos ocupados a fazer outros planos. Certo. A vida, com sorte, é o que nos acontece quando não fazemos planos. E contra-ataco com o que dizia um tipo que era tudo menos hippie milionário (google it): a vida é o que acontece nesse acontecer. E nessa altura não há paciência para escrever porque pura e simplesmente não é verdade. A perda, a morte, a separação,as finanças, a raiva, a tristeza, a extrema alegria, o quotidiano - tanta coisa que impede qualquer crónica sincera. É preciso distância e tempo.
Mas passada a tormenta, a atenção e a vontade regressam. Estamos sentados num restaurante e ouvimos uma extraordinária conversa de um casal que se separa.E em francês (onde estavas, Rohmer?). Dizia ele, desesperado:«Eu tenho outras, sim. Mas não como tu». E ela , olhando o muito pouco existencialista bacalhau à braz que degustava:« Eu sei de mim. O problema são as outras». Frederic Forrest com o olhar triste em One From The Heart, a desculpar-se pateticamente perante uma Teri Garr resoluta:«It was nothing.It was just a little something». Só lhe valeu uma canção do Tom Waits.
Nessa altura o cronista percebe que está pronto a falar com alguém, que a sua vidinha é igual a tantos outros e diferente de todos. E chega a casa com esta urgência vulgar e inútil de contar o que nós somos. O que quem escreve é no momento em que escreve.
A crónica não é um diário nem deve ser. Explico-me: há dois dias fui assaltado. Nada de grave, telemóvel e pouco mais. Mas deu tempo para perguntar, quase evangelicamente.«Fazem isto para quê?». Resposta óbvia:«Porque precisamos». Talvez a crónica (ou escrever, ou criar), por vezes, seja este assalto a nós mesmos. Porque precisamos.
Lá estava eu, metido numa van para fazer cinco minutos de caminho, porque o lugar onde ia ficava a meio de uma subida, e, com o calor do princípio da tarde, não estava para transpirar a T-shirt.
Lá estava eu, transpirando a T-shirt dentro de uma van sem ar condicionado, em pé porque não havia lugares sentados, prensado entre corpos porque o cobrador não parava de enfiar gente na van, mas feliz por causa da minha capacidade de adaptação. Eu era o gringo que se diluía entre os locais, o bacano que entra na onda, o observador que não se importa de participar.
Estava contente com a minha habilidade de, sem preconceitos ou frescuras, apanhar (mais uma vez) um meio de transporte que alguns dos meus amigos cariocas – por comodismo, classismo ou desinteresse antropológico – recusam utilizar nas suas deslocações pela cidade. Olhei à minha volta (a van ia para a Rocinha), e era o único branco. Depois o cobrador perguntou:
“Alguém desce na PUC?”
E como ninguém respondesse, uma das senhoras – negra como uma pantera escovada e gorda como uma tia beijoqueira – disparou:
“Se ninguém desce, vamos diretos pra Rocinha.” Todos se riram, houve um momento de cumplicidade coletiva, tal e qual como nas longas viagens de carro com amigos, e até eu, nascido e criado a milhares de quilómetros da Rocinha, me senti parte dessa comunhão na van em alta velocidade.
Mas eu não sei o que é ir e vir da maior favela do Brasil (ou viver lá), não sei o que é perder horas no trânsito (dentro de uma van, ônibus ou trem sobrelotados) ou levar os filhos à escola (dentro de uma van, ônibus ou trem sobrelotados) antes das oito da matina para, de seguida, vestir a farda e teclar numa caixa de supermercado ou tratar das crianças dos outros ou trabalhar de ascensorista num prédio do Centro.
Não houve, em mim, culpa burguesa, nem senti que tivesse de abandonar as viagens de van por não pertencer ao grupo. Mas percebi, apesar do meu genuíno interesse em misturar-me, que padecia de um orgulho indefinido, algo que resultava do simples facto de utilizar, nas minhas viagens, sem hesitações ou pruridos, os serviços de uma van.
É um prazer egoísta, é sentirmo-nos bem porque julgamos ser (em pensamento) boas pessoas – melhor do que realmente somos na prática. Lembrei-me do comediante Louis CK, que conta como, em várias viagens de avião para o Iraque e o Afeganistão, onde ia atuar para as tropas americanas, pensou em oferecer o seu lugar, em primeira classe, a algum dos militares que viajavam em económica. Nunca o fez, confessa, mas a fantasia do gesto, o desenrolar do filme na sua cabeça, o militar grato, os outros magalas dizendo uns aos outros como o Louis CK era um gajo porreiro, todo esse sonho altruísta lhe deu tanto ou mais prazer que o gesto em si – gesto que, confessa, nunca realizou.
Foi exactamente isso que senti na van – um sentimento de bondade, “olhem como sou um cara legal”, tudo isso apenas por viajar numa carrinha que ia a caminho da favela.
Rosie Parks had it pretty worst.
Essa emoção – sentirmo-nos bem sem ter feito realmente nada de assinalável –, tão sabiamente definido e explicado por Louis CK, é um dos atributos da inteligência humana e da sua capacidade fantasista. Uns criam narrativas em que ganham a lotaria e dão (quase) tudo para instituições de caridade. Outros sonharão em salvar vidas após um acidente de avião, em adoptar duas crianças – uma africana, outra chinesa –, em fazer voluntariado num país fodido por humanos e esmagado pela Natureza. Há em nós esta capacidade para sermos os heróis da nossa própria odisseia sem mexer uma palha. É tão auto-satisfatório como a masturbação, um admirável truque da mente, substituto de psicólogos, drogas e reconhecimento de terceiros.
Há uma canção, de Ryan Adams, chamada “The fools we are as man”, foi nesse título que pensei ao saltar da van, muito antes da Rocinha, a meio de uma subida que não me apeteceu escalar por causa do calor. Os patetas que somos enquanto homens…
Senti, primeiro, uma certa vergonha. Depois veio o enternecimento com as criaturas carentes e falhadas que somos. E se, pelo menos em fantasias, julgamos ser melhores pessoas, talvez um dia o abstrato se torne material, e haverá pelo menos um soldado, num avião, a caminho de uma guerra, que poderá esticar as pernas em Primeira Classe.
Quando não tens nada a perder já não tens nada para ganhar. Não ter nada é apenas nada ter, não há ponto de partida nem meta para atingir. É apenas vazio. O vazio é um imenso nada, um deserto sem oásis, uma jornada sem caminho. Palavras sem sentido, textos sem mensagem. Casas vazias, ruínas sem passado nem futuro.
Vazio, apenas vazio. O vazio não tem futuro porque nada cresce nele. É um grito sem som, um pontapé numa bola que não existe, uma cana de pesca lançada a um rio seco. Nada para viver que não seja uma espera, uma espera sem esperança. Nada para perder porque nada para que viver.
Esta crónica estava para começar assim: “Este fim-de-semana, uma raridade: tempo.” Tenho o projecto pessoal de elimar todas as palavras desnecessárias, mas ocorreu-me, depois, que estaria a pisar terreno de Paulo Bento, aclamado autor das frases sem verbo.
Em todo o caso, está passada a ideia: este fim-de-semana, ao contrário do habitual, aconteceu algum tempo livre. E assim usei-o para cumprir uma daquelas velhas tarefas sempre adiadas: arrumar papéis. Papéis que se acumulavam aqui perto da secretária à espera de arquivamento condigno em caixa própria no sótão.
Papéis pessoais à parte, boa parte da tarefa consistia em tratar jornais e revistas, na forma completa ou em artigos arrancados aos agrafos e proceder a uma selecção adequada ao exíguo espaço livre da caixa em questão.
Passei as primeiras páginas dos jornais de 12 de Setembro de 2001, cheias de fumo; o 11 de Março de Madrid; o 7 de Julho de Londres; a captura de Saddam Hussein; a morte de Saddam Hussein; muitas mortes, na verdade: Antonioni, Bergman, Kadafi, Steve Jobs. Os dossiers com a vida completa de João Paulo II; as campanhas futebolísticas do Euro 2004 e do Mundial 2006. Depois, artigos, de uma forma ou de outra, sobre a escrita: Robert Mckee, Jon Favreau, 16 histórias de 10 palavras encomendadas a 15 autores. Suplementos defuntos: Ícon e Preguiça do igualmente defunto Indie (também por lá andava a última edição, bem como a última d’ A Capital, e a última Grande Reportagem, e uma Grande Reportagem com reportagem sobre a FLA na capa, obra do Nuno Costa Santos), e o último “Olho Vivo” do Eduardo Cintra Torres, e o 6ª, anexo tão recente do DN que pareceu de repente tão longínquo, a Atlântico, o Já (sim, do ponto de vista cronológico, esta enumeração é o caos), revistas com garotas na capa, revistas de cinema (algumas com garotas na capa). Muitas notícias de ciência: o verdadeiro rosto de Cristo; os milhões de europeus que descendem todos, afinal, de apenas dez pais; a sequenciação do genoma humano. Críticas a livros de amigos, artigos sobre lançamentos de livros de amigos (incluindo foto do Francisco José Viegas sem barba – um artigo de colecção), incontáveis jornais desportivos de muitos domingos consecutivos, subitamente interrompidos quando o Benfica perdia qualquer aspiração ao respectivo campeonato. Muitos treinadores, muitas promessas, chegadas de vedetas e despedidas de outras. Diferentes edições acerca do fim do velho Estádio da Luz e da inauguração do novo. Algumas revistas estrangeiras. Muitos suplementos de balanço com o melhor e o pior de cada ano. Uns quantos DNA, incluindo um onde José Eduardo Moniz, na capa, pré-Big-Brother, diz que também ele quer sorrir.
Estão ali uns bons dez anos. E, no fim, a pergunta é: para quê? Para quê guardar ainda papel? Que informação daquelas não estará hoje alojada nos sótãos da web, disponível à distância de alguns segundos ou, na pior das hipóteses, muita paciência?
A razão, concluí, enquanto tentava comprimir papel que encheria uma pequena sala da Torre do Tombo numa caixa onde não caberia um computador dos antigos, nada tem a ver com a memória. A memória é atoleimada e visceral, teimosa e sanguínea. Não vai em tecnologias futuristas como não vai em nostalgias organizadas. Administra o seu próprio território, com as suas leis e respectivas penas. Um dia – ela sabe-o, contra todas as evidências – viverá um serão grandioso entre pó e aranhas, chás ou aguardentes, onde abrirá a caixa e revelará a uma qualquer prole do futuro os heróis, as mulheres, os amigos, os crimes, as obras, as proezas e os extraordinários fracassos do seu tempo.
Mesmo que isto nunca aconteça, é a sua missão. Contar à sua maneira a história do tempo que viveu. Para o caso de nunca aparecer quem lho saiba explicar.
Perdoem-me este quadro a preto e branco, mas entre o cinismo e a ingenuidade, escolho a segunda. Prefiro escolhas ingénuas a grandes análises problematizantes. Já me embrenhei no campeonato das problematizações, sim, já gastei muita saliva e muito teclado de computador a pôr entraves a tentativas de tornar isto um lugar mais aceitável, habitável e transmissível para os novos. Mas deixei-me um pouco disso e espero não voltar à condição. Não me peçam por exemplo para não acreditar em qualquer gesto de solidariedade pessoal e social. Não me enredem em problematizações sobre "o dinheiro todo e os interesses que estão por detrás das organizações humanitárias". Não. Por favor. Não me digam que pedir melhores condições para os pobres é "um desporto da burguesia bem pensante". Deixem-me ser crédulo e estar do lado de quem faz. Quero morrer criança, como a Agustina. Acreditando que aquilo dos contos de fadas pode existir um pouquinho na vida de todos os dias.
Sim, prefiro enganar-me a aderir ao cinismo, essa prisão cada vez mais perpétua para tanta e tanta gente generosa mas bloqueada. Acredito na prudência, que é outra coisa. Mas numa prudência que quer construir, não aquela que paralisa. Não a que passa a vida a colocar entraves. Não a que azeda a mais genuína das intenções. É um pouco como dizia o Ferreira Fernandes no outro dia, a propósito daquela iniciativa de um conhecido festival sobre os sem-abrigo que "davam" acesso à internet, muito criticada pelos fóruns: "Entre os chiliques dos apóstolos do dever ser e os dadores de soluções, mesmo que transitórias e pueris, estou com estes". Eu também estou com quem tenta uma solução, mesmo que contingente, mesmo que com fragilidades e flancos abertos. Com quem faz vídeos sobre os senhores da guerra, mesmo que estes já tenham desaparecido do mapa, com quem denuncia crimes contra gente indefesa, mesmo que depois se venha a saber que recebeu fundos de organizações inacreditáveis. Estou com aqueles que atravessam a rua para ajudar um cego, mesmo que depois o cego seja um falso cego e acabe a rir-se na cara deles. Como tantas vezes acontece.
Dizem que Deus é que sabe quando chega a nossa hora. A ciência, hoje, prevê a hora do nosso nascimento e a da nossa morte. O testamento vital e a eutanásia são, praticamente, uma inevitabilidade das sociedades modernas. Toda a gente quer saber quando é que damos lugar a outro. O tempo urge.
Mas, numa pequena aldeia perto de Nápoles, um homem chamado Giulio Ceesare Fava decidiu proibir aquilo que muitos acreditam ser o destino dos homens. E, muito embora Agostinho da Silva garantisse que não tinha a certeza da morte, pois nunca tinha morrido, a verdade é que a tendência é essa. Por tradição, morre-se. Agora, em Falciano del Massico a lei determina que ninguém poderá morrer. Se calhar era disto que precisávamos, uma imposição legal.
Parece um pouco inconsequente, como as apostas de morte: "o último a sobreviver ganha". Proibir o aparente fim pode não ter consequências para o indivíduo que viola a lei, a não ser que haja trânsito em julgado no Além. Tem, contudo, consequências maravilhosas para quem cá fica. O desígnio de um povo pode passar a ser não morrer. E aqui a lei retorna ao seu espírito humanista. É para o nosso bem. Vivamos, então, o mais possível, combatendo o tédio da morte, transportando a vida todos os dias como uma taça conquistada sem grande esforço. Que nunca mais se fechem as janelas. Parem, em nome da lei.
Não quero que o meu entusiasmo por esta lei fundamental ignore um facto importantíssimo. É que quando chegamos a um determinado ponto da vida, estamos cansados. E há uma altura em que ninguém tem o direito de nos mandar continuar. Temos anos de vida suficientes para poder descansar. Proibir a morte pode ser, também, impedir-nos de entrar numa nova jornada. Não é uma questão de fé, é pura imaginação.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.