É uma angústia que, volta e meia, me assalta: manter a salvo do caos doméstico um recanto de casa que dê bom cenário para entrevistas.
Soa mal, mas um tipo tem de estar preparado para tudo. Toda a espécie de gente dá entrevistas para a televisão. Um dia, vai ser a nossa vez. E, nesse dia, não queremos o estendal da roupa em fundo enquanto explicamos o imperativo categórico de Kant. A secretária cheia de papéis, incluindo facturas, talões do euromilhões e A Bola da semana passada a distrair a atenção do telespectador da nossa perspectiva acerca da falência do pós-modernismo. Os bonecos da infância de que o coração não nos deixa libertar, plantados na estante do ikea, em frente a uma colecção de livros saídos no Correio da Manhã e à foto das férias em Milfontes a perturbar a seriedade do nosso argumento segundo o qual se acaba rapidamente com as marchas de indignados plantando uma barraquinha de distribuição gratuita de ipads2 na praça do lado.
A gente vê. Não há sumidade que não tenha o seu canto das entrevistas. Há a sala, a marquise, o quarto da criançada e o canto das entrevistas. Só os livros mais obscuros, só as melhores lombadas, só a melhor estante, as fotos com as personalidades mais distintas (pode ser com a sogra, desde que tenha um ar presidenciável). E um tipo olha em redor e aflige-se. Para onde é que eu mando os senhores da televisão, no dia em que cá vierem?
Já aceitei a evidência de que os gatos passarão em frente ao plano. Que o Tomás virá a correr se, porventura, o dono discorrer sobre S. Tomás de Aquino e que a Mia se queixará, a qualquer momento, da falta de atenção, rebolando-se pelo chão, mordendo a canela ao entrevistador ou insistindo em descobir o que existe no fundo da lente da câmara. Tudo bem. Os gatos de Manuel António Pina não o impediram de ganhar o Prémio Camões.
Mas inquieto-me. Onde se farão as entrevistas no dia em que só tivermos livros electrónicos e mp3? Em que tudo for um grande ficheiro virtual? Até a roupa do estendal. Até os bonecos da infância. Até a infância.
Calma, penso depois. O ikea vai aparecer com os seus cantinhos de entrevistas pré-montados. Talvez os senhores da televisão os consigam simular com efeitos digitais. Talvez a Mia nunca saia da frente da lente e se torne o primeiro gato do mundo a teorizar sobre o imperativo categórico de Kant.
Ficaremos ricos, eu e ela. E estas coisas deixarão de nos apoquentar.
Manhã linda esta, cheínha de sol, um sol que não se impõe, que se insinua como um sábio que não se quer mostrar sábio. Ouço a minha rádio preferida - a Jango, agora sintonizada em Mozart e numa série de cúmplices, escolhidos pela própria rádio - e penso no que posso escrever. Lembro-me das crónicas de Rubem Braga que li há dias por causa de um texto para a "Ler" e penso: gostava de escrever um texto como o Rubem Braga (devo ter ido buscar o adjectivo "linda" por causa dele - não tinha medo de o usar). E o que é que isso? Não ter medo de escrever uma prosa límpida, não ter medo de parecer ingénuo, amante das coisinhas da vida (o amor, a amizade, os pássaros, a infância), não ter medo de celebrar a vida ora de uma forma luminosa ora de um modo melancólico, de quem sabe que viver começa por ser ganhar e depois é perder, ir perdendo aos poucos. E que não há que fazer tragédia disso.
Acordei cedo, às sete. Talvez tenha sido o meu gesto mais Rubem Braga do dia. Não que Rubem fosse um madrugador, não. Mas a sua prosa é manhã, possibilidade, mesmo quando se despede, como nas últimas crónicas de um volume que tenho na estante. No último texto desse livro, "Os Sons de Antigamente", escreveu: "Meu amigo Mario Cabral dizia que queria morrer ouvindo Jesus, Alegria dos Homens; nunca soube se lhe fizeram a vontade. A mim, um lento ranger de porteira e seu baque final, como na fazenda do Frade, já me bastam". Quem fala assim não é cínico, não se deixou converter em azedume, em mágoa, em ressentimento. Quem fala assim mantém um deslumbre de menino, aquele que melhor permite sorver isto tudo até ao fim.
Não tenho grande coisa para dizer. Não tenho um ponto de vista extraordinário para defender. Não me move um assunto. Talvez a coisa de estar para aqui, a teclar umas linhas e girando de vez em quando a cabeça para as árvores outonais do jardim zoológico, já me aproxime da respiração de Rubem. A de estar presente, como dizem na meditação. Sem antecipar o futuro, nem desenterrar o passado. Ouvir um a um os carros que passam na rua, as notas da música, escolhida pelo DJ da internet. Talvez o gesto de escrever uma crónica, como nós fazemos aqui no Sinusite, apenas uma crónica (não um ensaio, não um romance, não um poema), seja a melhor forma de me aproximar de Rubem - ele que durante uma vida toda, apesar das pressões para se empurrar para outros territórios, só escreveu crónicas. O que se percebe bem. Ele queria conversar e a crónica é sempre uma conversa.
Os ingleses gostam de dizer que a “cream always rises to the top.” Em Portugal, acontece o mesmo com a mediocridade. Para onde quer que olhemos, nos jornais, na rádio, na televisão, nos blogues, no balcão deste e daquele organismo público, nos centros de decisão e nas periferias de indecisão, no epicentro da burocracia ou nas réplicas da incompetência. Enfim, a cultura de mediocridade é hoje um traço característico do país. Isto torna-se óbvio quando percebemos que a maioria das pessoas com notoriedade, autoridade ou influência no espaço público são indivíduos que, ou não nos representam, ou não sabemos muito bem como ali chegaram. Mais cedo ou mais tarde, perguntaremos porque é que continuam ali.
Da opinião à comédia, passando pela política, pela cultura ou pelo folclore da fama, a mediocridade lusa continua a prevalecer sobre a meritocracia como se a sobrevivência da nação dependesse disso. É ao contrário, malta. Se o saber não ocupa lugar, a mediocridade portuguesa ocupa demasiados. Como costuma desabafar um amigo meu quando recebe cartas das Finanças: MORRAM. A sério. Desapareçam-me da vista. Desamparem a loja. Inexistam.
Eu tenho um sonho: que por cada holofote indevidamente apontado, possamos todos em breve contabilizar um cadáver mediático. A causa da morte, já perceberam, será a mediocridade. Imbuídos de boa vontade - demasiada - fizemos tudo o que podíamos para manter o paciente vivo: mudámos para o canal, votámos nele, subscrevemos a sua opinião, cantarolámos as suas músicas, e visitámos a sua exposição. Até que um dia, para bem dos nossos neurónios, deixámos de o fazer. E passámos a perguntar: quem é esta gente? No processo, tornámo-nos todos um bocadinho melhores. Sempre que alguém me fala da fuga dos cérebros, ou da retenção do talento, eu questiono-me: quantos talentos, ao invés de fugirem, não estarão simplesmente a evaporar-se, esvaziados por uma mediocridade reinante, orgulhosa e estacionada?
Pedem-me alegria de viver perante a adversidade; desafiam-me a ser empreendedor com a insistência do mais insuportável vendedor. Eu peço de volta: dêem-me um país com menos gente que ninguém quer ser quando for grande. Façam-me acreditar que vivo numa cidade com menos okupas: sim, porque a verdadeira ocupação clandestina vai muito para além do prédio devoluto. Encontramo-la na televisão, no parlamento, nas empresas, e onde mais vos ocorrer. É importante, senão vital, que o escrutínio público viva cada vez mais desta convicção. O inferno são os outros, mas parte do cancro somos nós.
Ouvi, esta semana, o maior e mais vil dos insultos. Calígula teria corado, como diz o grande Morrissey. Só Deus sabe como, ainda agora, me sinto agoniado com a desumanidade de tais palavras. Senti uma civilização cair; a cultura dos povos a ser cuspida nas sarjetas, a caminho da repugnante decadência onde Artaud encontrou o teatro. O meu corpo parece, ainda, não ter recuperado da repugnância e tenho mesmo acordado aterrorizado com o eventual regresso de uma era sombria, onde as palavras podem ser ditas com aquela frieza e crueldade.
Foi um homem que o disse. Não sei o seu nome. A este homem chamarei Vitor Bandarra. Não que seja Vitor Bandarra mas, parece-me sempre que os homens com um comportamento banal que, nos meandros obscuros do lugar comum e da aculturação, suportados pela mão da mesma empresa, banalizam o mal, num senso comum assustador, se chamam Vitor Bandarra. Também não sei quem é Vitor Bandarra. Mas o nome, o nome obriga-me a esta assumpção. É bom fazermos assumpções.
Pertence, este homem, então, ao canal de televisão TVI24 e tem, a seu cargo, um programa onde divulga uma espécie de agenda cultural. Cabe-lhe a virtuosa tarefa de mostrar aos outros homens aquilo que se está a passar na cultura do seu país e do mundo. Para esta semana, este vitor bandarra do canal de televisão TVI24, propôs-se apresentar - com alguma brevidade, é certo - a biografia de Luiz Pacheco "Puta que os pariu". Porém, por um qualquer conflito que eu desconheço, recusou-se a pronunciar o título da obra, porque, e passo a citar "a educação não o permite".
Não queira o leitor pensar que o estou a sujeitar a estas horríveis palavras por crueldade. Estou tão incomodado como aqueles que me lêem estarão, neste preciso momento. Estaremos, certamente, todos em pânico com a possibilidade de um novo obscurantismo moral invadir a nossa convivência, com o triunfo de um Iago que semeia cobardemente a dúvida sobre a força das palavras nas almas mais incautas. Este é o caminho que as hienas percorrem, o caminho dos que preferem a falsa moralidade, a dissimulação, o ressentimento escondido, o atentado polido à dignidade humana; daqueles que por 30 dinheiros beijam a cultura na face para, de seguida, a denunciarem ao demónio.
Ela decidiu ser escritora porque não sabia fazer mais nada e porque achou que seria uma carreira com benefícios – sem hora para acordar, sem hora para dormir, libertinagem em forma de pesquisa, viagens interiores, férias em cidades distantes, muitos groupies com livros para autografar, gente que despiria a roupa sob seu comando.
Mas ela só tinha escrito uns poemas e uns contos, coisa pouca, escritora bissexta e sacerdotisa da procrastinação. Publicou poemas na revista da faculdade, escreveu uma frase num muro de Santa Teresa, chupou o pau de um escritor que nunca lhe escreveu nada, nem um puto soneto ou um bilhete com o número de telefone.
Sexo para atingir a ascensão literária é uma merda, pensou ela, quando saiu do apartamento de um vate com prémios ganhos e traduções múltiplas. Antes tivesse fodido para receber um carro ou um vestido, pensou. Antes se deslumbrasse por alguém que pagasse as contas da luz e da internet mais o condomínio e jantares e um passeio que não acabasse sempre na cama, com ela recebendo a virilidade vaidosa de poetas, romancistas, letristas e editores.
Queria um senhor que tomasse conta de mim, pensou ela. Que se foda o feminismo e a literatura cocktail molotov. Eu quero colo e botox nas rugas na testa. Eu quero a geladeira cheia e uma casa na Ilha Grande.
Levava anos a escrever e nada. Os benefícios eram agora mais pragas que bênçãos. O seu fígado compadecia-se em certas manhãs, acordar tarde já lhe tinha custado alguns empregos, e nunca ninguém aparecera no seu quarto de hotel, durante um festival literário, pronto para adorá-la e para, mesmo antes de gozar, gritar bem alto: “A sua escrita mudou a minha vida.”
Putaquepariu para esses velhos da academia, comernocu romancistas preyboys, vãosefoder poetisas das colectâneas e roteiristas de merda nenhuma.
Ela decidiu que ia arranjar um emprego, um namorado com mastercard, visa e american express. Ia dar para ele todo a noite antes de deitar, ia dar ordens para a empregada, ia dar passeios enquanto as babás tomavam conta dos pequenos, ia dar o que fosse preciso para receber o que lhe fazia mais falta.
Literatura é coisa de veado e de putinha, pensou ela.
Literatura é coisa de teen gótica e de egomaníacos eloquentes, pensou ela.
Desde esse dia nunca mais frequentou saraus, recitais, lançamentos, entregas de prémios e camas com velhos romancistas – um deles disse-lhe que não tomava viagra porque a atenção dos jornais e das fãs, durante os dias do festival literário de Parati, garantiam dureza e desempenho de manhã à noite.
Literatura é coisa de velho tarado, pensou ela.
Literatura é coisa de mulher que fica para tia e não se masturba, pensou.
Havia uma milhão de razões para ela não ser feliz escrevendo.
Podem vê-la agora em bares de hotel e restaurantes sugeridos por uma qualquer revista, bebendo e jantando com homens de camisa social, relógio e perfume comprado no free shop. Podem vê-la também no calçadão, coberta de roupa e de protector solar para não ficar com a pele morena dos pobres. Nêguinha quer ar condicionado e vidros fumados e a ordem e o progresso que este país promete. Nêguinha já não é nêguinha. É princesa. Nêguinha ficou tão branquelas na alma como uma tarde de shopping no Leblon com valet parking e vinho argentino na esplanada de um bar.
Nêguinha já era. Agora tem de falar princesa. E princesas, como se sabe, não precisam de literatura para serem adoradas.
Acabo de ver uma beata. Não, não é uma daquelas senhoras de missa diária, muito devotas e castas. A beata a que me refiro também é poluente, não tanto como as ditas matronas que não contentes em estragar a paisagem com as suas fuças amarelecidas de incenso e os dedos cheios de artroses provocadas por tercinhos e novenas andam a ajudar a semear de atletas cor-de-rosa as varandas cá do burgo.
A beata era de cigarro, uma purisca (sei dizer mas não sei como se escreve) amarela, linda, satisfeitinha por ter visto o branco do cigarro dar tanto prazer ao saudável e belo cidadão que o fumou.
Também tenho sonhado com salas com gente bem disposta a fumar umas cigarradas valentes enquanto bebem uns copos. Cigarros fumados a dois depois de muito carinho. Cigarros molhados de tantas lágrimas. Cigarros raivosos. Cigarros nervosos. Cigarros fumados só por serem cigarros.
Hoje não há crónica, não há cigarros.
Convenhamos: seria fácil zurzir o gosto nacional. O naperon no televisor, o azulejo do lado de fora de casa, os cortejos carnavalescos seminus em pleno Inverno, a praia artifical de Mangualde com o horizonte pintado num cartaz, isso tudo. Não somos “junk”, como diz a Moody’s; somos kitsch. Autêntico, inofensivo, vaidoso kitsch.
O que há de lamentável no gosto português não é isso, mas alguns portugueses. Aqueles que se julgam bafejados por um sopro divino que os deixou acima da criação. Que sentenciam qualquer conversa com o fatal “só neste país”.
Esta espécie cretina não escolhe classes sociais. Encontra-se tão facilmente em táxis como vernissages. Distingue-se pelo discurso bilioso, descrente, incapaz de uma só ideia. Nunca sai derrotada porque nada defende e, como nada defende, não pode ser atacada.
Mal-amados, rancorosos, protagonistas da própria farsa, os portugueses-que-não-gostam-que-esse-facto-se-saiba citam um único português: o cosmopolita Eça. Pena o ego toldar-lhes tal modo a visão que jamais percebam quanto se divertiu Eça caricaturando-lhes os antepassados.
Condenados a viver entre os simplórios compatriotas, dão-lhes o que têm de melhor: a mesma azia que, um dia, os há-de levar. Nessa altura, o país que odiaram repetirá os elogios fúnebres do costume, concluindo, inevitavelmente, ter ficado mais pobre.
É que, debaixo dos adereços foleiros, conservámos as boas maneiras de velhos senhores e criados. Protegemos os nossos, sobretudo os fracos.
Publicado na The Printed Blog #1.
"Ninguém participa em pilhagens por questões materialistas, ninguém o faz porque precisa de uma televisão. Participam porque estão insatisfeitos com a sociedade. Conseguimos destruir uma esquadra da polícia e nunca esquecerei esse dia. Detesto a polícia.”
“A tentação cresce assim que vês todos à tua volta a partirem lojas e acabas por desligar e entras e tiras o que podes… Ficávamos a olhar para as coisas que as pessoas retiravam das lojas… e havia, tipo, uns ténis que eu queria comprar, uns brancos… por isso entrei na loja e tirei-os. Assim que o fazes e nada te acontece ficas, tipo, “Oh meu Deus!” e pensas: “isto só acontece uma vez na vida” e vais conseguir ter tudo o que queres de borla.”
“Tínhamos um motivo, que era conseguir o máximo de coisas e depois revendê-las… Entrava em lojas de telemóveis, roubava o máximo de telemóveis que conseguia e depois vendia-os a uma loja na Internet. Não condeno as pilhagens, pois ajudaram-me financeiramente… mas sei que não deveria estar a sentir isto”.
“Se tivesse um emprego… sinceramente não teria roubado nada… Quando as pessoas têm alguma coisa na vida ou quando sentem que têm algum valor nunca iriam colocar isso em risco”.
“Nós controlávamos a situação, e era uma excelente sensação. Podíamos fazer tudo o que quiséssemos. Podíamos partir e roubar, e ninguém nos impediria. Geralmente é a polícia a controlar-nos. Mas agora era a lei que nos estava a obedecer.”
Sentimentos de discriminação, injustiça e impotência, instintos criminais, ódio contra a polícia, vingança contra a sociedade, desemprego, frustração, falta de valores, redução dos apoios sociais, mero oportunismo, consumismo, ganância… – muitas foram as causas apontadas para os motins que abalaram a Inglaterra durante este Verão, cada uma terá a sua razão de ser, em conjunto poderão explicar algo. Para pensar e repensar melhor o assunto, vale a pena ler o estudo elaborado pelo Guardian e a London School of Economics (“Reading the Riots”), que se esforça por analisar as mais variadas questões relacionadas com os distúrbios, tendo entrevistado 270 participantes e vítimas e tentado aproximar-se das eternas questões do “porquê” e do “como”.
Não há respostas óbvias, mas uma das conclusões que parece mais evidente é o facto de não terem sido questões raciais a provocar os distúrbios. Ao contrário da análise precoce do primeiro-ministro David Cameron, também os gangs não terão desempenhado um papel decisivo nas pilhagens e batalhas com a polícia, que se desenvolveram de forma relativamente espontânea (com a ajuda dos Blackberries).
Sobressaem histórias de uma frieza extrema (“as pilhagens não eram nada de pessoal, tratave-se apenas de negócio”), mas também de remorsos posteriores (“olhando agora para trás, apenas parece estúpido. Não parece que tenhamos beneficiado muito com isto.”). Há também vozes a justificar determinadas acções com algo parecido com uma moral: um dos desordeiros alega que apenas pilhou “lojas que sabia pertencerem às grandes marcas. Toda a gente sabe que a Nike comete crimes mundiais contra as pessoas que trabalham nas suas fábricas, por isso estão a receber o castigo merecido. Não atingi quaisquer pequenos negócios para não afectar a economia local… estava a tirar àqueles que não irão ficar afectados.”
Frases que soam a desculpas pós-fabricadas quando se sabe que, segundo o estudo, foram pilhados 213 pequenos negócios, personificados por histórias como a de Siva Kandiah, que reclama ter perdido cerca de 85 mil libras, ou o pânico de Margaret Asare, obrigada a abandonar a sua loja, posteriormente vandalizada.
Analisando racional e distanciadamente os acontecimentos, é evidente que existe uma grande contradição no acto de destruir e pilhar lojas e casas do próprio bairro para lutar contra o “sistema” e a polícia que o encarna. Também não se percebe como alguém pode justificar, de forma tão confusa, os seus actos com a desculpa de que "apenas está a tirar aquilo que paga em impostos". Não sabemos como reagir a este tipo de actos de destruição cega. Assusta-nos a falta de reivindicações específicas, o descrédito das formas legítimas de protesto, a irracionalidade como único meio. Assusta-nos também perceber como as regras que nos permitem viver em sociedade podem rapidamente ser esquecidas e cair nas ruas. E no final fica um sabor de impotência mútua, porque a vida continuou e não parece que algo tenha mudado.
Faz-nos pensar no enorme desconhecimento das realidades envolvidas, o que dificulta muito a apresentação de teorias milagrosas em jantares intelectualizados. Um dos artigos apresentados centra-se mesmo na diversidade de mundos em Londres, em que para uns atravessar o rio e passear na City equivale à entrada num país estrangeiro. Um fenómeno que não se restringe apenas a Londres… encontramo-lo em Paris, em Berlim e também nas Lisboas de Chelas e afins. O que levanta a questão: algo de semelhante poderia acontecer no Porto ou em Lisboa?
(queridos leitores e colegas sinusiticos, as desculpas devidas pela ausência desta casa. A vida tem sido cruel e resistir à tentação de fazer deste lugar um muro de lamentações confessionais - o que não é nada o meu estilo - significa não escrever nem ter cabeça para isso. A recuperação vem a caminho. Para já uma reedição de um texto publicado originalmente no suplemento Nós do jornal 'i'. A quase normalidade é já a seguir)
Talvez seja da idade ou da sabedoria ou da precedência de uma sobre outra, mas a verdade é que quando oiço o slogan estafado do «direito à preguiça» já não consigo sorrir. Primeiro porque alguém teve o trabalho de dizer semelhante coisa; depois porque pura e simplesmente não faz sentido. A preguiça está longe de ser um «direito» que necessita ser conquistado pelo simples facto de ser uma característica inata a qualquer ser humano. Ou se usa ou não se usa, ponto. Pelo ócio sim, vale a pena lutar. Mas lutar pelo ócio – algo nobre e como dizia Oscar Wilde, a coisa «mais difícil e a mais intelectual» - dá trabalho e nisso não vão os preguiçosos. O ócio é a ausência de actividade prática (ou a ausência da vida pública, tal como é entendido no 0tium de Séneca) que se pode transformar noutra contemplativa ou egoísta e simples, como provar um bom vinho, ler em silêncio ou olhar o mar. A preguiça é uma pura recusa da actividade. É uma solução fácil, como fáceis são todas as soluções niilistas. Mas não tem graça nem compensa. Eu sei. Já fui preguiçoso.
É fácil ser preguiçoso em Portugal. O país está feito para isso. Na verdade, o diagnóstico correcto não será preguiça - nós, os especialistas, preferimos «procrastinação»: o deixar para o dia seguinte, adiar, demorar, delongar. António Variações, com a sabedoria de Nova Iorque misturada com a legitimidade de Braga topou tudo: «É para amanhã/deixa lá não faças hoje». Podia ser o hino nacional. Como minha defesa – a defesa de um ex-preguiçoso – tenho uma inteira cultura, um inteiro país. Durante anos e anos adiei decisões, assinaturas, vocações, amores, respostas, prazos. Enlouqueci colegas e superiores por achar que amanhã é outro dia. Errei: nunca compensou ser preguiçoso, como estou convencido que a diligência exagerada também não interessa a ninguém.
Mas como combater esta doce doença, que nos corre no sangue há séculos? De Vieira a Pessoa, ela foi diagnosticada: o messianismo à portuguesa pode ser belo, mas é a mais bela e literária forma de preguiça. Alguém há-de chegar, seja o Messias ou o Império do Espírito Santo, que irá colocar tudo na ordem. Entretanto, trabalhar para merecer isso é que não.
Ainda há pouco tempo ouvi este extraordinário diálogo, que de tão real parece fictício: na fila do supermercado, uma mulher perguntava a outra se já sabia de cor o número do telemóvel novo. Resposta pronta: «Vou sabendo». Vou sabendo: Portugal é este gerúndio contínuo, lânguido, doce e resignado. É o tempo verbal dos nossos políticos porque é o tempo verbal dos nossos eleitores. Ninguém se queixa, ninguém discute – vai-se sabendo, vai-se vivendo. É também a nossa maior exportação, como é prova o Brasil ou os países africanos lusófonos.
Apesar de estar em franca recuperação sei que este atavismo nacional nunca se irá separar de mim completamente. Todos os dias luto com a tentação de fintar prioridades só porque sim. Mesmo ao escrever esta crónica, o primeiro estado de espírito foi : «Vou escrever, mas agora não me apetece». Ainda vivo um pouco no limbo bem definido pelo filósofo Reininho quando escreveu «Faz-me impressão o trabalho/a inércia faz-me mal. É um combate longo, sem tréguas, e particularmente relevante para um conservador céptico como eu, que acredita que o dia de hoje é que conta. O preguiçoso puro é, de certa forma, um optimista inútil (passe a redundância), que crê sem dificuldades no amanhã que tudo resolve.
Quando o atleta olímpico Marco Fortes, depois de ter confessado um truísmo («De manhã está-se bem é na caminha»), foi acusado de ser preguiçoso ninguém compreendeu a injustiça. A preguiça não é uma situação, é um estilo de vida. É uma rendição lenta ao tempo, às horas, a nós próprios que só pode dar mau resultado. Vê-se a vida devagar a passar ao lado, com um aceno e um sorriso, para nunca mais voltar. Vemos amigos, amantes, instantes que nunca mais irão voltar por nossa exclusiva culpa. E depois, como Portugueses que somos, dedicamo-nos com afinco à única coisa em que colocamos empenho – a saudade.
A preguiça não é um direito, é uma praga. Já nem falo daquela que é considerada pecado mortal, para mim muito mais séria, e que se traduz por uma indiferença a Deus e ao caminho do Bem. São Tomás de Aquino chamava-a de ‘acedia’, uma espécie de tristeza espiritual em relação à crença e à prática e opunha-lhe a Caridade. Dante colocou os pecadores por preguiça no Purgatório, onde a sua penitência consistia em andarem eternamente atarefados de um lado para o outro sem o direito a uma oração sequer. Esta sim, aterroriza-me, mas sei que para isso é preciso ter Fé. A outra, aquela com que nós lidamos no quotidiano pode ser atenuada. Podemos agir. Podemos conjugar, com felicidade e propriedade, o Presente do indicativo. Porque a alternativa, descobri eu, é triste: é acordar um dia e descobrir que a nossa vida já chegou tarde.
Sou pelo tráfico cultural proporcionado pela amizade. Não há melhor forma de se chegar a um disco, a um livro ou a um filme do que a opinião de um amigo. As estrelinhas dos amigos até podem ser enganosas mas são inteiramente confiáveis – porque nos conhecem, porque topam as nossas manias e aversões, as nossas apetências e apegos. Quando um amigo diz “tens de ir ver isto porque isto é a tua cara!” torna-se no instante mais importante do que os mais significativos críticos e do que o melhor suplemento cultural da Nação. Traz, para usar o termo, um suplemento de afectividade que merece a maior das considerações. Mesmo que esteja a atirar completamente ao lado.
Não quero menorizar a comunicação social escrita – até escrevo, muito confortavelmente, crónicas sobre livros e restaurantes para jornais e revistas. Quero é tirar aos recenseadores o peso da responsabilidade de, em exclusivo, nos mostrarem “a cultura”. Alguma da aversão que existe em relação a alguns críticos e suplementos tem a ver com a excessiva responsabilidade que lhes é atribuída. Se as pessoas chegassem aos “objectos culturais” por si, sem mediações de maior, ninguém iria culpar ninguém por ter ido ver um filme multi-estrelado por uma publicação de referência que “afinal é uma grandessíssima merda”.
Ninguém vai levar a mal um amigo que nos levou a ler um livro que é uma seca. Mais dificilmente isso acontece com “o crítico”. Que é alguém a quem atribuímos uma autoridade que, coitado, nem sempre tem – está muitas vezes tão preso a deslumbres e a aversões e animosidades, até pessoais, como nós. Sim, nisto da cultura é importante ser-se mais pela iniciativa e responsabilidade pessoais. Hoje em dia é muito fácil fazer-se a escuta de um disco – na net e nas lojas. Chegar a uma livraria e espreitar um parágrafo. E é muito fácil entrar num cinema e num teatro (há tantos), sem que levar na mala uma data de conselhos que podem ser ruído para escolhas que se desejam o mais livres possível.
Demasiado público tem com os jornais, as televisões, as rádios e agora a rede a mesma relação que muitos cidadãos têm com o Estado: culpam-nos de tudo o que de mal - e ocasionalmente de bom - tem acontecido culturalmente nas suas vidas. Tá mal, tá. Se petiscassem mais cultura por sua conta e risco talvez a coisa fosse diferente.
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