Sábado, 31 de Dezembro de 2011

Sinusite Indiscreta

 

O Sinusite Crónica foi o blogue do ano para o Janela Indiscreta, do Pedro Rolo Duarte. Obrigado e um brinde!

publicado por Nuno Costa Santos às 20:12
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Sexta-feira, 30 de Dezembro de 2011

Noticiário de bairro

Acabo de dar uma voltinha pelos sites noticiosos do costume e nada me salta à vista, nada me surpreende como a visita que a nossa vizinha de cima nos fez ontem à noite para partilhar o momento de glória televisiva que teve há uns anos no programa "Casa de Artistas", da RTP, em repetição ontem na RTP-Memória. Não foi bem uma visita, foi uma convocatória. Veio bater à porta para nos chamar ("Venham, venham, são só cinco minutos!") e fomos até à sua sala para a ver na televisão a cantar fado, de olhos fechados e com o seu melhor vestido, acompanhada do filho, músico que toca nos bares da cidade. Foi um gesto luminoso e raro, este o da Dona Bina (não a personagem do imaginário Bairro Melancómico mas a real, a do bairro lisboeta das Laranjeiras onde vivo há dois anos). Essa, sim, foi uma notícia, daquelas que os sites de informação não têm trazido: "Dona Bina Chama os Vizinhos para a Verem Cantar o Fado". Quero ter muitas destas no ano novo.

 

Temos já uma combinação para 2012: ir ao Estádio da Luz ver o seu - e o meu - Benfica jogar. É, acredito nisso, com a Dona Bina que vou voltar a gostar de futebol. É genuína e inteira no seu clubismo, nas letras que escreveu para o seu clube, nas sucessivas participações no Canal Benfica (Alexandre, para quando o documentário com a biografia da Dona Bina?). Quero ir com ela à bola como um menino atordoado com o tamanho do estádio e que ainda não sabe o nome dos jogadores. Ela vai-me ensinar um a um o nome dos gandulos e os seus melhores atributos nas artes da bola e à noite vou voltar a adormecer como adormecia quando era pequeno: imaginando jogadas dos meus jogadores favoritos, na altura com nomes como Chalana, Shéu, Strömberg, Nené, Magnusson, hoje com outros nomes, ainda mais sonantes na voz de fado da Dona Bina. Vai ser o meu glorioso momento na RTP-Memória com uma janela para estes dias futebolísticos.

 

Volto aos sites e a uma das notícias que encontrei nesta caminhada matinal: "Velocidade Furiosa 5 foi um o filme mais sacado na internet em 2011". Velocidade Furiosa 5, sim. Se calhar vão dizer que é um escândalo mas admito em público ter perdido os quatro primeiros da saga e confesso não me apetecer lá muito assistir àquele que surge, isolado, como se diz dos avançados, em mais uma aclamada lista de fim de ano. Qual foi o segundo? A Ressaca 2. Obrigado, meus senhores. Prefiro o meu noticiário de bairro.

publicado por Nuno Costa Santos às 08:42
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Quinta-feira, 29 de Dezembro de 2011

Uma história de brinquedos

Ninguém me disse que Toy Story 3 era um filme maravilhoso. Foi o 3D, como grande factor de diferenciação, que mediatizou a estreia do filme, o que não me pareceu interessante. Se eu fosse distribuidor do filme diria "atenção, eis um dos mais belos filmes sobre a condição humana". Bem, em rigor, todos os filmes são sobre a condição humana. No entanto Toy Story 3 leva-nos para outro lugar, uma espécie de Neverland de onde, um dia, saímos, forçosamente, e que deixámos esquecida num baú. Dentro desse baú um outro mundo que imaginámos, que criámos e construímos com as pegadas do crescimento, passo a passo.

 

Deixei de brincar muito tarde. Lembro-me que os meus amigos já iam ao café e eu ainda jogava às escondidas na rua. No meu quarto, duas prateleiras de carrinhos da Majorette e da Matchbox. Sempre preferi os primeiros, talvez por serem carros normais, que via na rua. Havia mais realidade nas brincadeiras dentro de portas do que fantasia. Numa mochila verde, ao lado da cama, o resto dos brinquedos diários: playmobil's e gi joe's. Centenas de bonecos. Os Joe's eram maravilhosos, cabiam bem na realidade Playmobil e tinham muito mais mobilidade. Se fosse preciso simular um jogo de futebol, então...

 

Os bonecos estavam separados por grupos, independentemente da espécie, numa lógica mais maniqueísta. O território dividia-se entre o tapete, a cama e o chão. O tapete era a cidade principal, a cama a montanha ocupada por rebeldes e o mar o sítio das piratarias e do contrabando. Via imensa televisão. A soberania existia, assim como um poder político para a sustentar. Havia polícia, serviços e até um advogado. Todos tinham nome. Esta foi uma brincadeira contínua, que durou anos e que se foi, naturalmente, aperfeiçoando na sua própria narrativa. Ela representava, sobretudo, o meu próprio crescimento e a forma como eu olhava o mundo.

 

Quando mudámos de casa, a mochila foi directamente para a cave, dentro de um baú com os carrinhos e outros brinquedos. Foi um dia pesado em que percebi que tinha de crescer. Ter de crescer, por obrigação, é quase um crime. Mas, ninguém quer ser um puto para sempre, pelo menos aos olhos dos outros. Era essa a maravilha do quarto fechado: um mundo só para nós, que podíamos explorar sem olhares reprovadores e ridicularizadores. Com os bonecos definimos perfeitamente quem é bom e quem é mau. Temos essa certeza e nunca nos desiludimos. Inventamos o amor e somos felizes com o pormenores da nossa imaginação.

 

Ao ver Toy Story 3 recuperei, entre muitas outras coisas, um miúdo que estava dentro de mim, escondido; um miúdo que resolveu chorar com saudades de si mesmo, da sua espontaneidade e da sua dedicação a uma coisa simples como um objecto de plástico. Há coisas que nunca deveríamos esquecer.

publicado por jorge c. às 12:32
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Quarta-feira, 28 de Dezembro de 2011

Frangos assados & galetos

Ia cortar a guedelha mas cheirou-me a frango assado e substitui a angústia de me sentar, uma vez mais, na cadeira de um barbeiro que não é meu patrício, pelo consolo da pelezinha tostada, as batatatas salteadas e o pão cortado em fatias que uso para limpar a molhanga do prato. Traumatizado por experiências capilares menos felizes nas mãos de russos, venezuelanas e italo-americanos, custa-me entrar num barbeiro e ter de começar tudo de novo. Devia haver uma ficha entre barbeiros, como há entre médicos, que explicasse a história do cliente: remoinho indomável na franja, entradas valentes, benfiquista que não se importa de falar de bola enquanto a tesoura faz o seu trabalho.

 

Há sempre uma desculpa para evitar cortar o cabelo – um frango assado na confeitaria Rio-Lisboa é mais que suficiente para interromper a minha busca e sentar-me na esplanada. Muitas vezes, quando saio de casa, não sei onde vou parar. Mas muitas vezes acabo na Rio-Lisboa, como a mesma gula com que uma criança obesa encara um Happy Meal. Frango assado, meia porção de batatas salteadas, pão, suco de melancia. O prazer prolonga-se por minutos tal como a combinação de sabores dentro da boca. Resta-me ficar, sem pensar em ler jornais, sem fazer o mapa de deveres, sem tirar apontamentos no bloquinho. Fico ali, como se numa cama de rede, observando e ouvindo. Não fazendo nada a não ser respirar.

 

É bom esvaziar a cuca dos apitinhos do telemóvel, jogar tempo fora, cagar no mundo da alta velocidade e perceber a importância das esplanadas nas esquinas das cidades. Saboreio o frango. Molho o pão, remato com um gole de suco de melancia. É como ver a canarinha de 82, tudo feito com suavidade e beleza, um gosto por gostar, diversão antes de eficácia.

 

Meia hora assim, somente respirando como o peito de Sócrates quando recebia a bola e levantava a cabeça para o império diante de si. Meia hora: este é o meu tempo para pensar nas coisas que não têm tempo para ser pensadas. Coisas como: isto não é um frango, isto é um galeto – assim chama esta galera aos frangos assados. Mas frango assado é outra coisa, é esperar no automóvel da família enquanto o meu pai ia ao Galego ou ao Jardim dos Frangos ou ao Manolo. Frango assado é os jantares de adolescentes que preferiam gastar a massa em vodka, dividindo as aves e empanturrando-se em batatas fritas e pão saloio. Frago assado é a rua das Portas de Santo Antão, em semana de santos, com turistas lambendo os dedos e indianos vendendo cães de peluche a pilhas.

 

Galeto é outra coisa. Galeto é este ritualzinho que começo a praticar todas as semanas. Sair de casa, dar um passeio, querer jogar minutos fora e seguir o cheiro da gordura queimada. Galeto será agora esta memória de sabores na boca e bulício de esquina carioca.

 

Quando se joga tempo fora comendo galeto é isto que nos vem à memória: uma alemã disse-me, em Nova Iorque, que dizer “orange” nunca seria o mesmo que dizer “laranja”. Perguntou: “Em que pensas se dizes laranja?” E eu pensei no Algarve, na casa dos meus avós, qualquer coisa com muito verão. Podia ter feito um anúncio para tv com tanta imagem solarenga.

 

Coisas que se descobrem quando há tempo para jogar fora: frango assado é uma coisa, galeto será outra coisa. Tudo isto usando a mesmo língua. Hoje, mordendo uma coxinha suculenta e vendo o tráfico de pessoas na calçada, percebi o privilégio de poder usar duas versões do mesmo idioma e o impacto que isso terá em todos os portugueses que vivem aqui e aí. Assustem-se os puristas, mas se há tantos milhares de jovens tugas no Brasil como se supõe, com o passar dos anos, com as viagens de vai-e-vem, com os filhos dessa gente crescendo aqui, a língua começará a ser outra coisa. Isso, confesso, não me assusta. E se por ventura esta miscigenação linguística acontecer, enquanto indivíduo que se diverte com este ofício, vejo o futuro como algo entusiasmante.  

 

Ou talvez tudo isto seja apenas o delírio de quem tem tempo para jogar fora e procura epifanias no estado de transe provocado pelo galeto da Rio-Lisboa. Há quem reze, faça meditação, jogue búzios. Eu vou comer galetos para encontrar paz e clarividência e perspectiva.  God bless the chicken. Ou como dizia o outro: “It beats working.”

publicado por Hugo Gonçalves às 16:05
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Sexta-feira, 23 de Dezembro de 2011

Carta de Natal de um emigrante para o primeiro-ministro

 

O meu avô emigrou. O meu pai também. Eu também. Três gerações, gente nascida em 1910, em 1944, em 1976. Três gerações que cruzaram fronteiras para dar razão ao lugar-comum: uma vida melhor. O senhor sabe a história do nosso país, esta coisa que parece inevitável, a nossa gente espalhada pelo globo, uma mistura de orgulho nacional e aflição permanente. Olhe, ainda no outro dia conheci o senhor Américo num boteco aqui do Rio de Janeiro, o seu sorriso de empregado de balcão abriu-se assim que lhe topei o sotaque e lhe estendi a mão: “Estou aqui desde 1963, mas todos os anos vou lá.”

 

Lá: o senhor vive nesse “lá”, nessa terra, nesse país agora atormentado, e acredito que se esforça para que “lá” seja algo mais limpo e habitável e próspero. Tenho a certeza que preferia que o senhor Américo tivesse ficado junto da família, trabalhando e pagando impostos, celebrando o Natal com frio e pinheiros em vez de 35 graus e coqueiros. Essa é a sua missão, não é? Confesso que não lhe levo a mal o conselho – emigrem -, imagino que talvez o seu desespero seja igual ao desespero dos nossos compatriotas. Mas queria dizer-lhe uma coisa – sem amargura, sem raiva, com os olhos postos na janela que dá para o Rio de Janeiro, porto de chegada onde os portugueses vêm parar, há séculos, em momentos como este. Queria dizer-lhe que nem sempre é tão fácil partir como quanto o senhor fez parecer no seu discurso.

 

Não vou aborrecê-lo com a vida dos emigrantes. Nem sequer lhe vou dizer que somos vítimas chorosas, entregues ao infortúnio, lançadas num pranto porque saímos do nosso país. Não, claro que não somos. Mas posso dizer-lhe que, neste Natal, pode ter muito orgulho dos emigrantes portugueses. Olho para os milhares de jovens que chegam ao Rio, com quem me cruzo na rua, com quem troco ideias e conversa fiada, e fico orgulhoso, gente engenhosa e temerária, com uma capacidade de adaptação que faria inveja ao extra terrestre do “Predador”. Gente que fuça, que busca, que está disposta a trabalhar e a viver ilegalmente num país estrangeiro – são muitos. E olhe que não lhe falo dos portugueses que viviam na miséria das bidonville em Paris. Falo de agora, de rapazes e raparigas que abandonaram o privilégio da cidadania europeia, as maravilhas do Estado Providência, o passado da fartura e dos subsídios, que imaginámos que nos garantiria um futuro na terra onde nascemos.

Nada disso interessa agora para os que estão longe. Podemos ter os dentes todos, cursos universitários, conhecimento de outras línguas mas, tal como as gerações dos nossos pais e avós, tivemos de sair. E mesmo que nenhum de nós sofra de fatalismo crónico lusitano, tivemos de sair, percebe? 

 

Por isso, quando lhe disserem que Angola ou o Brasil são lugares fantásticos onde os portugueses levam vidas muito mais felizes que em Portugal, onde enriquecem e fazem praia todos os dias, por favor tenha cautela.

 

Aqui, como aí, já se sabe, temos de fazer pela vida. Não estou zangado consigo. E desculpe a intimidade, mas sou emigrante e estou longe e é

Natal. Imagino que o senhor vá passar a consoada com a família. Eu não. E muitos outros portugueses que conheço aqui também não, impossibilitados de pagar dois mil euros ou mais para apanhar um avião e comer rabanadas junto da tal tia que oferece meias.

Quero desejar-lhe um bom Natal e sublinhar o orgulho que deve ter em nós, naqueles que estão aí e nos que estão longe. Temos saudades e sabemos que, nem que seja como o senhor Américo do boteco, voltaremos pelo menos uma vez por ano. Peço-lhe, por favor, que acredite no que lhe digo: por mais excitante que seja a luz ao fundo do túnel da emigração, há aqui muitos – mesmo muitos – portugueses que trocariam o Natal tropical pelo Natal das lareiras.  

publicado por Hugo Gonçalves às 18:29
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Quinta-feira, 22 de Dezembro de 2011

Uma zona de conforto à beira mar plantada

Acho que foi Ary dos Santos quem um dia disse que a palavra é uma arma, o que faz do actual governo um pelotão de fuzilamento. Segundo a Wikipedia, “um pelotão de fuzilamento é composto por um grupo de pessoas (geralmente soldados) que recebem ordens para disparar em simultâneo contra a pessoa condenada.” Quem diz soldados, diz ministros, secretários de estado ou deputados.

 

A estratégia motivacional deste governo iniciou-se há algumas semanas atrás quando Alexandre Mestre, secretário de estado do Desporto, sugeriu aos concidadãos desempregados que abandonassem  a sua zona de conforto e emigrassem. Não foi por acaso que o primeiro repto lançado aos portugueses para se pôrem na alheta veio de uma pessoa cuja principal função no governo é ocupar lugares reservados em estádios de futebol e ir buscar atletas medalhados ao aeroporto. Se atentarmos no valor da sua declaração, e a isso juntarmos as funções que desempenha, verificamos que Alexandre Mestre está para o trabalho governamental um pouco como Jorge Máximo está para o terminal de chegadas em Lisboa ou para o Estádio da Luz.

 

O abandono da zona de conforto evocado por Alexandre Mestre esbarra num detalhe tão pequeno que até parece picuinhas da minha parte mencioná-lo, mas cá vai: para boa parte dos portugueses, não existe. Portanto, quando alguém sugere a 700 mil desempregados que abandonem a sua zona de conforto, é importante verificar alguns pressupostos. Primeiro, convém certificar-se de que os destinatários da mensagem residem nesse código postal onde tudo é seguro e adquirido. Como isso não será possível, terá que induzir todas estas pessoas num transe qualquer e convencê-las a abandonar o sítio imaginário onde vivem. Em seguida, deverá ligar para todos os aeroportos e estações de comboios e pedir um reforço de pessoal. Como em todos os processos de escoamento de stock, há uma importante dimensão logística que é preciso ter em conta.  

 

Poderia parecer que estou a dar demasiada importância às palavras de Alexandre Mestre, não tivessem estas ganho alguns seguidores ilustres. O Primeiro Ministro, já esta semana, mostrou afinal de contas porque é o candidato mais africano de todos e recomendou os PALOPs como futuro destino de dezenas de milhares de professores - isto se os ditos professores não quiserem mudar de área. Todos os que estiverem dispostos a enveredar por outra carreira - e imediatamente perceberem que tal só será possível na secção de frescos do Pingo Doce – poderão seguir o conselho sábio de Alexandre Mestre, que tem a vantagem de alargar as possibilidades para além dos PALOPs. O mundo é uma ostra, amigos, e os nossos antepassados foram grandes descobridores, como oportunamente referiu o historiador Miguel Relvas.

 

Mas não se pense que isto são só umas bocas mandadas para o ar sem qualquer tipo de consideração pelos portugueses. Não senhor. O eurodeputado Paulo Rangel já veio a público para transformar a sugestão em visão estratégica, sugerindo a criação de uma agência de apoio à emigração. Parece-me uma ideia interessante, especialmente se fizer pelos portugueses aquilo que o PSD fez por Paulo Rangel, obrigando o advogado nortenho a abandonar a sua zona de conforto para viver em Bruxelas e representar os nossos interesses (vá lá, não se riam). Moral da história: portugueses e portuguesas, amigos e amigas, malta, sócio, já percebeste: eras o maior se nos fizesses o favor de abandonar a zona de conforto. Ou desconforto. Epá, o que te soar melhor. Desde que te ponhas a andar, até lhe podes chamar Portugal.

publicado por Vasco Mendonça às 13:34
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Tu ainda és o meu cantor de intervenção

Corríamos as ruas da vila todas as noites. Pintámos as paredes com palavras. Punk is not dead. Pareceu-nos necessário. Punk is in the head. Manifesto qualquer coisa: uma insatisfação, um desgosto, uma inquietação, uma alegria, o Elvis. Manifesto sub-16. Depois vieram os livros, outras interrogações, o reforço das preocupações e da vontade de mudar o mundo todo com as palavras que ainda rasgavam as paredes da vila. Punk is not dead. Não te esqueças, rapaz! Ajuda lá a cantar esta canção. É uma canção sobre liberdade. Ainda vais para o inferno.

 

Na caixa da guitarra, as mesmas palavras. Punk is in the head. Na vila, pelas ruas, "mas tu não és de direita?"; está tudo na cabeça, ainda vais para o inferno por ajudares a questionar, a perguntar porquê e a dizer que não e a dizer que sim. O mundo estava ali, à porta, com o desafio nas mãos e tu como é que ias enfrentá-lo? Com o gatilho, claro. Sempre com o gatilho. Não desistas, rapaz. Nunca desistas das canções de liberdade, das que te libertam para sempre e para o bem. O bem não tem cor. O bem é o bem.

 

Porque quando és um puto é tudo mais fácil de resolver e só podes aproveitar essa oportunidade para ser melhor. Porque as palavras rasgam bem mais do que as paredes de uma pequena vila. Porque é o outro extremo que te ajuda a pensar. Tantas coisas que se podem trazer na mala, quando és obrigado a crescer e a deixar de escrever nas paredes. Punk is not dead. Éramos muitos. Era muito. Só se pode agradecer e nunca esquecer. É impossível esquecer o que nos fica na pele.

 

Já não se faz música de intervenção, dir-se-ia; que essas coisas têm o seu tempo. Pois o inconformismo não tem tempo. Punk is in the head. Há sempre qualquer coisa que te inquieta e por isso tens de cantar as canções que te libertam. Eu tinha 14 anos quando ouvi o London Calling. Nunca te esqueças. 14 anos. O sangue ainda corre nas mesmas veias. Nunca te esqueças, rapaz.

 

Passam hoje 9 anos que morreu o Joe Strummer. Ajudem lá a cantar.

 


publicado por jorge c. às 12:06
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Natal sem ti (ii) e sem revisão de texto

Sento-me como se obedecesse a uma ordem, teclo como se fosse a única maneira de ainda chegar a ti, custa-me tanto escrever-te como me custa a tua ausência. Faz agora um ano que, nesta mesma cidade, manipulado pela saudade, me pus a escrever uma carta de Natal em formato de crónica – não era uma crónica, era a minha vida inteira sem ti, era a inevitabilidade de nunca mais voltar a ver-te. Eu sei que um homem da minha idade já não devia chorar, muito menos em público, muito menos usando o ofício que nunca pudeste conhecer.

 

Mas são agora 27 anos, 27 natais, tanto tempo sem ti.

 

Pensei que, tal como no ano passado, a fuga para um Natal tropical me salvasse desta saudade. Não dá. Desculpa mas não dá.

Por isso escrevo, escrevo para tocar-te e para receber os teus presentes e para que me digas para acabar o prato de comida na mesa. Fazes-me tanta falta quando estou assim longe e voluntariamente sozinho e sem saber onde me agarrar se não na escrita.

Olha, olha como escrevo bem, olha como escrevo para ti, para que tenhas orgulho e gostes de mim, para que passeies de mão dada comigo na rua e vás falar de mim às tuas amigas nas sessões de cabeleireiro.

 

Juro que ainda sou menino, podes ver como patino com o meu irmão – o teu primeiro filho – no terraço da casa, como me vestes t-shirts do Super-Homem ou tiras as natas do leite com chocolate – sabes que tenho pânico de natas, ainda hoje, se bebo leite, uso os incisivos como filtro. Sou tão pequeno quando te escrevo. Por isso talvez não possas saber como escrevo agora, achando que falo de coisas importante do mundo, guerras, favelas, senhores da política e tudo o que flutua como purpurina na actualidade mediática do globo.

 

Pudeste ver-me menino, mas não podes ver-me adulto. Não estás aqui, no Rio do Natal com duendes suando 34 graus, não estás na nossa casa com o cheiro de lenha na rua e frio nos pés – tu vinhas, calçavas-me as meias, puxavas o edredon para cima.  

 

Queria dizer-te tantas coisas e no entanto é um soluço de palavras que me sai de algum lugar que ainda não cicatrizou, um lanho que se abre uma ou outra vez por ano e que me obriga a escrever-te. Mas como posso falar contigo de outra maneira, se não sou místico nem crente?

Por isso te escrevo, escrevo-te porque por vezes acho que é isto o que me salva – não é – e porque não te sei falar de outra maneira, porque não estás, porque não te posso ligar e muito menos abraçar.

 

Gostava de dizer-te: “Onde quer que estejas, espero que me estejas a ver.”

 

Mas não sei onde estás, deixaste de estar – 27 natais, 27 anos, tanto tempo sem ti.

 

Talvez para o ano, nesta ou noutra cidade, volte a tentar tocar-te, volte a olhar para a tua fotografia que trouxe na bagagem e me ponha a escrever, a escrever, a escrever tanto que vais saber que o menino cresceu e que sonha cativar-te com a escrita (onde estão os abraços, os mimos, o teu colo?)

 

É Natal, a família está a 10 horas de avião e tu estás ainda mais longe.

 

Gostava de dizer que um dia isto passa, que vou deixar de te aborrecer com as minhas cartas sazonais. É mentira. Poderei ter filhos e netos, irei sempre escrever-te.

 

Esta saudade não se cura. Por isso, se me vires a chorar, se os outros meninos me chamarem de mariquinhas ou, neste Natal tropical, souberes que me vou enfrascar como um marinheiro no primeiro dia em terra, sê meiga comigo.

 

Tantas letras para quê? Tanta coisa para quê? Apenas para isto: fazes-me tanta falta, mãe.      

 

publicado por Hugo Gonçalves às 11:47
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Quarta-feira, 21 de Dezembro de 2011

Apologia dos anjos

           À Rita Dias, por exemplo.

 

Há alguns anos os hipermercados e áreas de serviço deste país sofreram uma celestial invasão: por todo o lado apareceram anjos. Ou melhor, livros sobre anjos.

Esses extraordinários manuais davam-nos certezas e garantias sobre a existência destes seres divinos. Estabeleciam complexas hierarquias e funções para cada um, baseados numa «ciência» a que chamaram «anjologia» ou coisa que o valha. Não por acaso, os vários volumes sobre estas matérias encontravam-se invariavelmente colocados nas prateleiras que albergavam os escritos desse anjo expulso do Paraíso da Boa Literatura e que o mundo conhece como Paulo Coelho.

O povo, sequioso de algo que sustente os momentos difíceis da vidinha, esgotou estes livrinhos até à náusea. Mais tarde estas mesmas pessoas fizeram de uma aldrabice chamada O Segredo um best-seller planetário. Mas o verdadeiro segredo talvez seja este: essas pessoas somos nós todos – incluindo os que têm mais do que fazer do que gastar dinheiro em livros que salvam vidas.

 

A evocação desses dias em que se podia convidar para almoçar o nosso anjo da guarda pessoal graças a estas inefáveis obras não me chegou por acaso. O que eu queria dizer é que acredito em anjos (lido assim parece um verso retirado de uma canção dos Abba). Mais: tenho a certeza que existem e estão onde menos esperávamos: na terra, ao nosso lado. Fáceis de encontrar, de tocar. Cheios de vícios e virtudes, choros e sorrisos. Não têm asas e muitas vezes dizem palavrões. Os anjos existem, leitores, e todos os temos. Conhecemo-los como «amigos».

 

É gente estranha e excêntrica, que gosta de nós sem limites ou segundos pensamentos. Não pede nada em troca que não seja a nossa companhia e a nosso bem-estar. Alimentam-se dessa tão misteriosa como desejada poção chamada Amizade e por mais que falhemos ou nos escondamos eles descobrem-nos e ajudam-nos. Amam-nos de outra maneira, um modo livre mas intenso, vedado ao amor romântico. Intervalo para uma palavra de um dos patrocinadores da minha vida, D. Francisco de Portugal: «Digamos porque não se chama ao amor amizade. Entre as duas coisas há esta diferença: o amor é uma paixão que tem mais de desejo que de prazer; e a amizade é uma afeição reverente ou um amor envergonhado, que tem mais de prazer que de desejo. O amigo pretende para o que sempre ama, e o amante para o que pode deixar de amar. Um cuida de si, outro descuida-se de si». Podemos ter poucos (é até recomendável) mas estimemo-los porque são os anjos que podemos tocar. 

 

Este Dezembro está a ser difícil para mim como para muitos. Sem trabalho, sem dinheiro, com problemas do quotidiano feio para resolver todos os dias e a perspectiva de passar o Natal longe dos que mais amo, é fácil cair na auto-comiseração ou desejar a solidão. Mas é exactamente este ano, em que pela primeira vez na vida as dificuldades são reais e parecem inultrapassáveis – é exactamente este ano que pela primeira vez, e graças aos anjos, o Natal é o que sempre deverá ser.

 

 

publicado por Nuno Miguel Guedes às 12:47
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Terça-feira, 20 de Dezembro de 2011

É sempre a mesma história, filho

O meu filho Sebastião gosta de histórias. Gosta de as ler e gosta de as contar. Diverte-se a escrevê-las como só se divertem aqueles que não têm obrigação de as escrever.

Outro dia, o meu rapaz entrou-me pela minha sala adentro com aquele ar só dele, como quem pede desculpa por estar a incomodar mas não pode deixar de o fazer. O método é sempre o mesmo: entra devagarinho, estica o pescoço por cima da minha cabeça, finge que se interessa pelo que estou a fazer, faz um comentário qualquer acerca da música que estou a ouvir, conta um episódio da escola mais para cumprir o que julga fazer parte do seu papel de filho e, inconscientemente, abana a cabeça.

Os olhos e aquele abanar de cabeça chegam para dizer quase tudo acerca dele. Aqueles olhos pequenos, rasgados, muito afastados, parecem ímanes. Curiosos, ávidos, mas sempre focados. Marca os objectos, as pessoas, as situações como se naquele momento o mundo parasse e nada mais existisse senão o seu alvo de atenção.

O abanar de cabeça é o seu gesto de passagem. É como quem diz, vamos ao que interessa.  Uma coisa do género “Eu sei que há umas tretas que é suposto eu dizer ou fazer, e até não me incomoda nada fazê-lo, mas agora já chega”.  

Confessou-me andar um bocadinho angustiado. Disse-me que andou a passar os olhos pelas coisas que já escreveu e está sem assunto. Pior, pensando que só tem quinze anos, como diabo irá cumprir o seu sonho (do momento, claro está) de ser contador de histórias se a partir de agora, segundo ele, se vai repetir vezes sem conta.

São tão poucos os momentos em que nós como pais nos sentimos úteis que quase fiquei feliz com a angústia do meu rapaz. Só quem nunca ouviu um pedido dum filho, quem nunca se confrontou com a obrigação de indicar este ou aquele caminho, quem nunca ralhou, quem nunca contrariou ou consentiu, pode avaliar o alivio que se sente quando se sabe exactamente o que dizer, quando não se tem um pingo de dúvida acerca do conselho certo.

A vida dum pai é feita de angústias, dúvidas, medos. As mais pequenas decisões, os mais pequenos gestos fazem-nos perder noites: será que dei o conselho certo? Fui justo quando lhe berrei? Será a melhor escola para ele? Estou a dar um bom exemplo? Servirei para alguma coisa? Estou a condicioná-lo?  

Só me apetecia agarrá-lo e cobri-lo de beijos. Agradecer-lhe a pura felicidade que me estava a dar naquele instante. Eu sei a resposta, sei mesmo. Eu e toda a gente que gosta de histórias. 

 

 

publicado por Pedro Marques Lopes às 00:01
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