Vivemos, já se sabe, a ditadura da opinião. A opinião do like, a opinião do indignado, a opinião do blogger, a opinião do fórum, a opinião da agência de rating. A opinião é o salvo-conduto, o livre-trânsito. Não importa donde se venha, não importa o que se saiba, não importa que objectivo se tenha, a opinião adquiriu estatuto de vaca sagrada. Nenhuma é melhor nem pior do que outra, isso nunca, oh, sacrilégio. Porque a opinião, que nada produz, recebeu a graça de não ter de ser submetida a comparações. As elites, a cultura, o conhecimento, são, decerto, ideias antigas que roçam o fascismo, de modo que a opinião dum ignorante é para ser tão levada a sério como a dum sábio. E, quando chega à hora em que se verifique estar errada, pode sempre refugiar-se na sua humilde condição: “Era só a minha opinião”.
Na vida de aristocracia arruinada que levamos, incensamos o direito à informação e o privilégio de ter algumas dezenas de canais especializados nela, mas, não havendo dinheiro para investigações, enchem-se páginas e tempo de antena com aquilo que foi, outrora, precisamente o contrário da informação: a opinião. Comentadores, colunistas, um de cada lado da barricada (como se houvesse apenas dois lados para cada guerra), para nos salvar das opiniões que nos acusem do supremo crime da parcialidade. Por cada notícia de dois minutos, um quarto de hora de opiniões.
Os opinantes são a prova acabada de que cada crise pode ser transformada numa oportunidade. E, hoje, na lenga-lenga do abismo, parecem ser a única carreira em franca expansão. Como ninguém sabe onde isto nos vai levar, tenta-se consolar os pobres de espírito ouvindo quem tem uma opinião para dar. E, então, entram os opinantes, com aquele ar seguro de quem já viveu muitas vidas ou viajou ao futuro e sabe, de fonte segura, como tudo isto se vai desenrolar.
Aquilo que é verdadeiramente extraordinário no opinante é que desenvolveu uma imunidade total à auto-crítica. O comum mortal censurar-se-ia de pronto logo que percebesse que: a) está a repetir o que já todos os outros disseram; b) está a repetir o que ele próprio já disse; c) não faz a menor ideia do que está a dizer.
Roça o artístico. Nenhum líder político, nenhuma grande instituição financeira, nenhum país sabe como resolver a crise global. Os opinantes também não, mas conseguem debitar lençóis de texto sem o mostrar.
Banda que toca enquanto vamos ao fundo, repetem os mesmos chavões dia após dia após dia: isto é o fim do império, estão a fazer-se cortes cegos, é preciso é cortar nas gorduras, o mal é o eixo franco-alemão, isto só se resolve com eurobonds, isto só se resolve com uns Estados Unidos da Europa, vivemos uma verdadeira tragédia grega, o sonho europeu acabou, faltam líderes com a estatura de antigamente, o que é preciso é pôr a economia a crescer.
Como é que isso se faz? Perguntem a quem é pago para isso. A eles só lhes pagam para dar opiniões. Mesmo que tenham falhado clamorosamente quando chamados a pôr em prática a sua fenomenal sabedoria de pacote.
Fui visitar o acampamento dos auto-proclamados “indignados” junto à Catedral de São Paulo que tem agitado as notícias britânicas. À medida que me vou aproximando da praça sinto alguma tensão: presença policial em várias esquinas, cartazes a informar que determinadas áreas são privadas, para ir beber um café ou entrar numa loja é necessário passar por barreiras de seguranças e inquéritos. Tudo isto acompanhado pelo barulho incessante de um helicóptero a sobrevoar a área.
Em plena City londrina, a azáfama da hora de ponta é interrompida por cerca de uma centena de tendas, decoradas com as palavras de ordem contra a ganância bancária. Nas paredes, os mais variados cartazes e jornais denunciam negócios corruptos. Alguém renomeou o espaço de “Tahrir Square”. Existe uma biblioteca, um centro de informações e uma tenda grande para debates e apresentação de filmes. Entre as tendas, vários jornalistas em directos para as televisões.
Ao contrário das autoridades eclesiásticas, envolvidas em discussões internas que já provocaram a demissão de três altos funcionários, o movimento responsável pela manifestação tem conseguido dominar a arte da comunicação. Conscientes de que serão facilmente categorizados como um bando de “preguiçosos anarquistas drogados sem hábitos de higiene que vivem à custa dos pais”, conseguiram manter o espaço bem organizado, com duches, casas de banho, cantina e equipas de limpeza da praça. Os porta-vozes foram escolhidos a dedo: profissionais que tiraram férias para apoiar a ideia, reformados ou estudantes eloquentes que conseguem passar a sua mensagem sem extremismos.
No entanto, é muito fácil apontar o dedo a este tipo de manifestações, demasiado vagas nas soluções apontadas e idealistas nos seus objectivos. Para além disso, tendem a atrair os activistas profissionais, veteranos das mais variadas batalhas contra aquilo que chamam o “sistema” e as suas várias encarnações, e também apelam à congregação de todo o tipo de interesses minoritários, dispersando a mensagem principal do protesto contra as desigualdades sociais. A tendência para dar um toque demasiado alternativo ao movimento, com workshops espirituais e aulas de vegetarianismo, pode também afugentar potenciais apoiantes menos dogmáticos.
Não alinho, no entanto, nas críticas da inutilidade destas expressões de descontentamento, que descambam muitas vezes no paternalismo do “vai mas é trabalhar” (um argumento que parece validar tudo e mais alguma coisa) ou exigem acções e soluções rápidas e eficazes. Existe um excesso de idealismo, sim. Também há muita ingenuidade (podemos vê-la como um antídoto contra o cinismo excessivo?). Corre-se também o perigo de demonizar os bancários, a grande maioria dos quais não recebe as chorudas compensações que enchem os tablóides.
Mas a contestação alargou-se a vários países e tem conseguido reunir os mais variados apoios, sem os quais já se teria extinguido. Revela também, num período em que tanto se tem criticado a falta de intervenção e interesse políticos, uma enorme determinação e vontade em transmitir a sua posição (e também em aguentar os Invernos que se aproximam).
Conseguiu, sobretudo, fomentar a discussão sobre os perigos dos cortes desproporcionados nos serviços sociais e a necessidade de regulação dos sectores financeiros (tanto na comunicação social, como na praça junto à catedral, onde vários grupos de desconhecidos se reúnem em debates espontâneos) e também chamar a atenção dos políticos para o aumento do descontentamento. Conseguiu, mesmo, que o chefe do banco Barclays admitisse, durante uma conferência, que os bancos têm de voltar a conquistar a confiança da opinião pública e aceitar a responsabilidade por alguns erros cometidos. O que já é um enorme feito. Mesmo não resolvendo os problemas mundiais.
Dear Angela,
As i write this letter, the weather outside is an accurate reflexion of our lingering, yet tumultuous affair. Strong wind gusts, torrential rains and ironic flashes of sunny disposition are taking turns at me, eroding the remnants of hope throughout a chilly morning in the western tip of what once we called home.
Tell me: was it ever really home? Proverbial constraints should refrain myself from calling it that, since home, i now understand, was never where our heart was in the first place. How such a story of common feelings and ideals, how such a seemingly purposeful mission left me feeling so stranded, so deceived, is something i'm still coming to terms with.
Sure, life teaches you to learn from the wrongs. But it doesn't necessarily equips us to face the unforessen. Or maybe i chose to ignore the signs that preceded you, telling me not to be naive, subtle foretellings that, had i known better, would have made me ignore apparent emotional ties - for my own good. And maybe, just maybe, it's all on me, and this is but a foolish attempt at reconciling with myself.
I've seen selfishness many times before, but i'd never felt so wounded by it. For you, my dear, what now follows is an exciting path of discovery. I know my Angela: you're a strong woman. Karmic balances will leave you scratchless, your ideals untarnished, your longing a remote outtake of our story. And you sure as hell know me: my path will now become a painful descent into myself. Somehow, it's like you always felt prepared to live without me.
Without me pondering, for once, on the same thought.
I still remember what you told me in 2007, during our amorous summit in Lisbon. We jokingly called it summit, but it was so much more than that. You told me of reassurance, of unbreakable vows, you asserted a willingness to fight for us, no matter what. You told it like few others before, with the sheer intensity of things purported to be taken seriousy.
The long run proved me wrong. It could have been different, Angela. It could still be. You should have fought harder for us. Ironically enough, you're the one i always saw as unwilling to give up without a fight. Only this fight is breaking us loose.
Still, i wonder if, in this precise moment, you feel yourself hesitating back towards us. Even if such a sunny disposition soon shifts into wind gusts and torrential rains. You could have let me down easy. Much easier than this.
Ciúme: uma abordagem prática (4)
Tó, que nem sequer se poderia descrever como uma pessoa gregária ou simpática, ganhou a mania de se aproximar deles e nisso era muito bom. Se ainda não os conhecesse, tornava-se amigo; se já os conhecesse, passava a ser o melhor amigo. Quando lhe diziam que era uma forma de as castigar, o seu rosto ganhava surpresa e indignação. É certo que elas não gostavam de competir com ele pela atenção do namorado, mas nunca passou pela cabeça de Tó sabotar uma relação. Ele experimentava um tropismo incontrolável por eles, que era ainda maior quando percebia que tinha sido encornado. O que dizer? Há na mente mais mecanismos do que aqueles que a mente pode conhecer e se os suecos raptados que ganharam afeição pelos raptores chegaram aos manuais de psicologia (o complexo de Estocolmo), só a subtileza do seu comportamento, uma geografia periférica e nenhum grupo de pressão com vontade de associar Lisboa à imagem de cornudo frouxo negavam a Tó idêntica consagração.
Tó procurava colmatar o sentimento de orfandade. Mais do que trocado, ele sentia-se abandonado. Talvez por isso lhe fosse tão natural a aproximação a quem passara a ter as atenções da sua antiga namorada. A sua técnica foi-se apurando ao longo dos anos e se um murro no olho não o demoveu, também não seria uma porta fechada na cara, um telefonema desligado ou os repetidos insultos que o fariam desistir. Tó aprendeu a escolher o momento ideal, quando eles estavam fragilizados. Esperava uns meses, para que passasse o estado de graça dos novos namorados e fazia-o com a paciência de um abutre a pairar sobre a carcaça que o predador ainda escarafuncha, mas também uma bondade que é estranha aos necrófagos. Em poucos dias, Tó e qualquer um deles iam beber copos sozinhos e falar longamente sobre ela. Mas quem apenas ouvisse parte da conversa, mais depressa pensaria que falavam sobre um Buick do que sobre Bárbara, pois animava-os a cumplicidade de quem partilha um passatempo raro, como coleccionar carros antigos. E isso bastava a Tó, que assim namorava unilateralmente por interposta pessoa. Na verdade, ele foi descobrindo tantas vantagens nesta sua rotina, que seduzir e começar relações passou a ser sobretudo uma forma de semear um futuro namoro vicário.
Série que sucede a Infidelidade: uma abordagem prática.
Tenho a sensação - não sei se me acompanham - que hoje se estão a fazer coisas muitíssimo boas no território das artes e da criatividade. Nisto os pessimistas não têm razão. Todos os dias encontro pistas para filmes maiores, músicas memoráveis, séries televisivas do camandro, romances a rasgar. Nisto a conversa da crise não entra. Não há crise de ideias, de conceitos, de brainstorms, de gestos magnificamente insensatos. É como se a Primavera da criação artística não fosse afectada pelo Inverno do discurso dos números.
Nas artes não há nervosismo dos mercados - pelo menos no coração da artes que é o do puro gesto de criar, de arriscar. Percebo que haja muitas pessoas com razões de queixa nos orçamentos e nos financiamentos mas o que tenho visto é gente a fazer coisas. A escrever, a filmar, a pintar, a tocar, a organizar festivais, a encher salas - como aconteceu recentemente no Doc com um filme de Gonçalo Tocha sobre a pequena ilha açoriana do Corvo que, apesar das suas aparentemente demoradas três horas, encantou salas com 600 pessoas.
Permitam-me a ingenuidade da conversa mas é neste mundo que acredito. Um universo em que a imaginação não fica refém das aberturas dos telejornais e o economês de serviço. Vai, organiza, impõe-se. Às vezes com gestos de solidariedade como aconteceu recentemente com a malta da Cafetra and friends que se juntou para pagar o disco de estreia dos novíssimos Passos em Volta.
Mas há mais. Na música portuguesa há novos discos dos PAUS, dos Lacraus, dos Buraka, dos Dead Combo, dos Old Jerusalem - de figuras muito diferentes que não adiam o coração para outro século. Fazem. Aqui e agora. Quem tem razão é o André Tentugal e o seu confiante projecto que resumiram este espírito numa música perfeita para ouvir todas as manhãs entre o duche e a boa da torradinha. "Better Not Stop Moving". Better Not.
Gosto de casamentos. São eventos atípicos. Ao contrário do quotidiano, as pessoas vestem-se a rigor com convicção; os homens fazem a barba com prazer, as senhoras calçam o seu mais desconfortável salto-alto, o conservador exibe a sua gravata cor-de-rosa e os chapéus ganham o direito à existência, ainda que por breves momentos.
Se a tradição se cumprir, o pai da noiva abrirá os cordões à bolsa e seremos todos contemplados com um banquete que esmagará a contenção a que os corpos de Botero se sacrificaram, em vão, desde a última Páscoa. E depois... ah, depois, o baile, a danceteria antológica, do Elvis ao Mambo #5. Pezinhos de dança, pesados e descompassados, gin tónicos e uísques que se vão entornando pela noite dentro, até à mesa dos queijos. Há uma loucura temporária que apanha, até, os mais precavidos.
Acontece que os casamentos não são só fantasia. Uma pena. A realidade dos casamentos é muito mais crua. Há todo um pensamento mercantilista nesta formalização da conjugalidade. Há uma tradição de interesses economicistas, uma espécie de hidden agenda. Os noivos iniciam aqui a sua relação pragmática com o mundo. O casamento é o seu primeiro negócio comum. Nada contra. Porém, não sou um bom cliente.
Entrei numa fase difícil da vida. O meu tempo das vacas gordas também conheceu, agora, o seu fim. Daí que não me seja fácil aceitar convites de casamento. A minha solução passa por não dar prendas, na esperança que, como amigos que são, os noivos queiram apenas a minha doce presença e estejam solidários com a minha conjuntura. É claro que não me recuso, simplesmente, a dar algo. Deixo, por norma, a promessa de, noutra altura, oferecer um objecto que marque a diferença. O dinheiro é impessoal e as listas utilitárias. Digo-o com convicção. Fico em dívida.
A verdade é que a notícia espalha-se depressa e começo a sentir alguma hesitação de futuros noivos em me convidarem para aquele que juram ser o dia mais importante da sua vida. Eles sabem! E como bons credores que querem ser, tenho a certeza que já baixaram o meu rating. Só vais ao casamento se garantires o pagamento da tua dívida. Contudo, já acumulei alguns sem dar prenda, pelo que, com a crise e assim, este não é o melhor momento para abater as dívidas que fui contraíndo com esta minha política obstinada.
Este não é ainda o meu pedido de ajuda externa. Mas, é um desabafo. Sou, com certeza, o único cidadão que leu o Ezra Pound que ainda gosta de casamentos. É a dignidade e o futuro desta cerimónia que está em causa. A ameaça do mercantilismo matrimonial - esse grave problema sistémico - não pode prevalecer.
Há cerca de um ano subi a favela do Cantagalo e dei por mim fora de pé, num planeta distante, tão perdido e sem referências que, ingenuamente ou porque não sabia o que dizer, perguntei ao antigo armeiro dos traficantes se o seu ofício de arranjar e limpar armas de bandidos era uma actividade perigosa. Ele olhou para mim como se eu fosse uma criança atrasada mental incapaz de entender o seu mundo e disse: “Moço, eu trabalhava para traficantes e era procurado pela polícia.” O meu interlocutor, de cognome ACME, é hoje um artista plástico que descobriu Jesus, casou, teve filhos e se livrou do vício do crack e de ser fuzilado por um dos maus da fita – contou-me como um traficante não quis acreditar que uma das armas mais caras, que lhe entregara para limpar, já estava escangalhada quando chegou ao seu barraco/oficina. ACME explicou-me ainda que foi preciso sorte e perseverança para convencer o chefe dos bandidos a tirar o dedo do gatilho, convencendo-o de que não era responsável pelo defeito do fuzil. Safou-se mas não foi a única vez que teve uma arma apontada.
Quando visitei o Cantagalo, experimentei cheiros inéditos e um calor opressivo, que escorria das paredes de tijolo como suor numa cela solitária. Tudo era tão novo como estranho e desconfortável e fascinante. Muitas vezes fiquei calado, sem que a minha expressão facial soubesse reagir a histórias como: “Se um moleque rouba roupa do varal leva um tiro na mão dos traficantes.”
Comigo (e com a amiga que me acompanhou nesta viagem) seguiu durante algum tempo um bêbedo que me avisava da merda de cachorro no chão e que me disse: “Isso aqui é ruim de mais, mas isso aqui é bom de mais.” Há pouco tempo, um amigo português, que também vive no Rio, contou-me o que dizia Tom Jobim: “Viver em Nova Iorque é bom, mas é uma merda. Viver no Rio é uma merda, mas é muito bom.”
E este fim-de-semana, lendo um artigo sobre a falta de civismo no trânsito numa rua do chique bairro do Leblon – carros em terceira fila, atropelamentos, flanelinhas (arrumadores) – um taxista entrevistado dizia: “Todos têm razão e ninguém tem razão.”
É o maior lugar-comum sobre o Brasil mas é a verdade: os contrastes aqui são tão intensos como o calor num dia de verão com a humidade a bater no vermelho. Um dia passo-me da cabeça com a burocracia medieval e no outro dia espanto-me com a qualidade de alguns serviços. Um dia oiço na rádio que o estado do Mato Grosso anda a ceifar a floresta sem pejo ou consciência e, no mesmo dia, leio que o estado do Rio de Janeiro vai plantar milhões de árvores até 2016. Uma dia vejo um grupo de crianças miseráveis e meio nuas a pedir na calçada e no mesmo dia estou numa festa com gente que fala francês e que bebe gin Hendrick’s com pepino.
Há aqui uma constante sensação de choque e deslumbramento. De manhã espanto-me com a notícia que na última década foram desviados 720 mil milhões de reais de dinheiro público e de tarde espanto-me com o trabalho comunitário na favela do Cantagalo – workshops de música, a construção de um museu, a solidariedade entre os habitantes desse espaço onde me senti um extraterrestre.
Uma das tendências inevitáveis de quem vive no estrangeiro é comparar o lugar onde está com o lugar de onde veio – fiz isso quando vivi em Nova Iorque ou em Madrid. Faz parte da condição humana. Já ouvi aqui portugueses a queixar-se do Brasil e brasileiros a queixar-se de Portugal. Disse a um amigo que tinha sido mal tratado numa repartição pública e ele, carioca, disse-me que fora enxovalhado no aeroporto da Portela. É muito fácil ceder a esse impulso de comparação, mas começo a perceber que é um exercício ingrato e desgastante.
Um amigo português que vive em Madrid há quase dez anos, mas que está a pensar mudar a sua empresa para São Paulo, disse-me em tempos: “Não é importante ser o mais forte mas o que melhor se adapta.” É isso que tento fazer aqui. Se assim não for, mais vale a pena fazer as malas e voltar para casa dos papás onde tudo é confortável e conhecido.
Ninguém disse que ia ser fácil. Ninguém disse que ia ser apenas sol e meninas bonitas na praia e caipirinhas de tangerina a meio da tarde.
Hoje, um deputado responsável pela investigação das milícias (polícias mafiosos que controlam os serviços ilegais de fornecimento de luz, tv cabo e protecção em algumas favelas), está a caminho da Europa, com a família, a convite da Amnistia Internacional, porque corre risco de vida. Hoje, ouvi a nova música de Marisa Monte e vi cajus frescos numa feira e li um poema de Drummond de Andrade e beijei uma mulher bonita.
Ninguém disse que ia ser fácil, mas já me disseram que, no final, vai valer a pena. E essa é a eterna e a maior esperança do Brasil.
Morreu-me um amigo. Rapaz da minha idade. Daqueles de que não se guarda uma única memória menos agradável, um ressentimento por pequeno que seja. Um tipo duma bondade desarmante, sempre pronto a descobrir algo de bom no mais refinado sacana. Morreu como viveu: sem um pingo de revolta contra a vida que tantas vezes o maltratou, nem contra o cancro que o devorou em meia dúzia de meses.
Deu o último suspiro nos braços da mãe. Quem o aqueceu quando nasceu, amortalhou-o. Não pode haver maior sofrimento. Toda a revolta, toda a tristeza, todo o desespero de quem o amou e tão cedo o perdeu é quase nada quando nós choramos por quem nos devia chorar.
Lembro-me sempre do meu avô, junto do meu tio morto, a gemer: “e agora, quem me leva?”
O único, o radical, o momento que muda definitivamente a nossa vida é o nascimento dum filho. E não, não é só por deixarmos de podermos ou não estar sós, de as consequências dos nossos actos deixarem de ser apenas nossas, mais que tudo é a consciência do tempo certo da nossa morte. Deixamos de fazer a contagem não em anos ou décadas, pedimos só que os nossos filhos nos sobrevivam. É provável que um filho traga a ilusão da eternidade, de alguma coisa nossa permanecer depois da nossa ida, mas a nossa racionalidade ou o nosso coração, eu sei lá, não nos deixa ir tão longe. Queremos apenas normalidade. Que no nosso leito de morte nos reste uma pequena e definitiva alegria: o meu filho fica.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.