Domingo de chuva num décimo segundo andar e, lá fora, as decorações precoces de Natal ficam distorcidas por causa da água nas janelas. Dia espesso com luzinhas a piscar nostalgia. No outro lado da rua, o Shopping da Gávea emitia o mesmo burburinho que começa a sentir-se em cidades de todo o mundo por esta altura do ano. Também aqui se inaugura uma árvore gigante com direito a festa e romaria. É no meio da Lagoa e podia ser a nave espacial do Homem de Ferro. Já reparei nos supermercados com cartazes de duendes e renas. Já estranhei o bafo quente das noites enquanto pinheiros iluminados brilham nos apartamentos cariocas. Não há aqui memórias de cheiro a pinhas, frio nos dedos quando se vai fumar um cigarro após a ceia, ruas nubladas pelo fumo das lareiras.
É domingo de chuva e, como se fosse visitada pelo fantasma do Natal passado, ela volta a contar a história do Papai Noel – já o tinha feito em Lisboa, já o fez no Rio. No início da carreira, ela trabalhava numa agência de publicidade. Um dos clientes, uma marca de lingerie, apreciava o arrojo e a polémica. Decidiu que queria fotografar um Papai Noel rodeado de gostosonas em trajes menores. Ela tinha como missão encontrar o Papai Noel mais vagabundo, desdentado, bebum, que só existe nos filmes ou em certos lugares do Brasil.
Depois de pôr anúncios nos jornais e fazer entrevistas a candidatos, encontrou o seu Papai Noel desgraçado, fodido e com má sorte genética. Trabalhava num shopping lá na Casa da Desgraça e a perspectiva de passar um dia rodeado de mulheres jovens e bonitas, meio despidas, e ainda ser pago por isso, era suficiente para dizer que sim, assinar o contrato, e aparecer no estúdio.
Tudo corria bem. O cliente gostou, a campanha estava a ser um sucesso, o Papai Noel deu sorte e tinha guita no bolso para pintar a casa, comprar uma TV ou espatifar tudo no boteco.
Antes do Natal ela começou a receber telefonemas do Papai Noel: os outdoors estavam por todo o lado, o centro comercial despediu-o por razões de conduta moral, os vizinhos não paravam de fazer piadas, as mães não queriam os filhos no colo do Papai Noel tarado. Não tinha trabalho. Disse: “Você desgraçou a minha vida.”
Os fantasmas do passado andam sempre connosco, seja na praia de Ipanema ou na casa da família portuguesa, onde o Natal é frio que dói mas podemos aquecer-nos no colo daqueles que são nossos desde nascença.
No final da tarde, já de saída, reparei no presépio da portaria do prédio. Além do burro e da vaca, um elefante com a tromba ao alto velava o Menino Jesus.
Já aceitei que agora o Natal será outra coisa. Um Papai Noel one hit wonder ou um Menino Jesus versão safari serão tão normais como as rabanadas da tia Albertina ou as crianças da família a abrir os presentes antes da hora.
Ela agora também é a minha família. Pela segunda vez consecutiva passarei a ceia de Natal em sua casa. Vou pedir-lhe que volte a contar a história do Papai Noel: é muitas vezes na repetição que encontramos o melhor dos consolos, o regresso a casa quando estamos longe.
Jardinando este domingo compreendi que isto ainda não é o apocalipse.
As folhas caídas da estação, os rebentos novos das perenes, a relva caprichosa que nuns pontos viça como nunca e noutros hiberna, à espera do tempo do sol. Os cogumelos que brotam do excesso de chuva, as flores rebeldes de inverno, o jasmim e os coentros e a salsa e aquilo-que-julgamos-serem-orégãos e as outras plantas da horta aromatizando, como sempre. Para já não falar da caruma e das pinhas e dos pinhões do pinheiro, das agulhas que levanta ao céu, da sua força serena e hercúlea de sentinela a toda a casa. A nenhuma destas criaturas importam crashes nem defaults. Nada nelas mudou depois da adesão ao euro ou da morte anunciada dele (quem diria que moedas também morrem?). Os economistas todos do mundo podem dizer o que quiserem, falarem até se lhes falhar a voz, que os cedros pouco se importam.
Enquanto nos vendem o fim do mundo, a terra continua aí, tudo continua a crescer, o mar a marulhar ao fundo da rua, o choro do bebé da vizinha, o trote do cavalo do outro (nenhuma utopia saudosista; passa mesmo por aqui, todos os dias, um cavalo puxando uma carroça), as oliveiras e as laranjeiras a estremecer ao vento, pássaros, galos baralhados nas horas e os meus braços oferecidos em sacrifício a melgas retardatárias enquanto arrumo as ferramentas ao pôr-do-sol.
Nada disto cresce mais ou menos de acordo com o PSI-20.
Não creio que deixe de haver cafés da esquina, nem pescadores, nem benficas-sportings como o que vi de véspera, nem a família da mesa do lado de senhoras bem postas e crianças cheias de perguntas e sorrisos entre estranhos episodicamente unidos por uma simpatia clubística.
Não há-de deixar de haver arroz nem tomate e, portanto, haverá sempre arroz de tomate a acompanhar qualquer coisa. Nem as vinhas desaparecerão e, logo, teremos sempre um copo de vinho para o qual será depois fácil arranjar um motivo qualquer a que brindar. Não deixará de haver mulheres nem homens nem tudo o que vivem juntos e de que ninguém tem de saber. Não deixará de haver lenha e pão, não deixará de haver livros nem discos nem filmes, nem que tenhamos de reler e reouvir e rever continuamente aqueles que coleccionámos já na estante. Não deixará de haver paz, desde que saibamos onde a procurar.
Os economistas e os sindicalistas bem podem ir todos jardinar para o canto deles. Lá para Março, quando voltarem todas as folhas e flores, talvez as bolsas subam. Talvez o bebé da vizinha já articule uma palavra ou duas.
Agora que o frio começa a fazer-nos companhia, as árvores se despem e o Inverno se avizinha, deveria começar a sentir saudades de Lisboa. Ainda não, mas lá chegarei. Se calhar senti-las-ei quando voltar. Ou então no início do Verão, porque antes ainda há a neve londrina para descobrir e os parques da Primavera que engolem a cidade e os sons, as irritações com a chuva que ainda não apareceu, a luz dos dias que se evapora tão rapidamente e o calor das casas que nos acolhem. Nunca passei tanto frio como em Lisboa, cidade que durante uns meses lê, janta e vê televisão enrolada em cobertores e protegida por gordas camisolas de lãs.
Aqui, pelo contrário, vive-se o paraíso do aquecimento central. E, por alguma razão, os ingleses conseguem ter uma camada de protecção que lhes permite andar de t-shirt e minissaia na rua. Frio é uma palavra proibida nesta ilha. Se calhar também lá chegarei (à t-shirt, não à minissaia).
Nessa altura também sentirei, se calhar, saudades de Lisboa e passarei cada vez mais tempo nos cafés portugueses a discutir o estado do país e a comprar chouriços. Por exemplo no muito português café “Tino”, em Camden, onde a saudade do país é um eterno prato do dia, quer seja ao som do Manuel Luís Goucha ou do relato do Benfica-Sporting de hoje. Entra-se neste café e a rua londrina e o vendedor paquistanês desaparecem instantaneamente, para serem substituídos pelas Nova Gente, as Super Bock e as conversas dos reformados sobre a vida de cá e de lá. Estranha forma de vida de muitos destes portugueses, que passaram décadas a trabalhar e a poupar no estrangeiro e a sonhar com o regresso ao país. Quando se reformam, muitos deles mantêm-se por cá. Por hábito, saudades da vida de cá ou porque não querem sentir frio no Inverno?
Ser pai é uma coisa tramada. Agora e sempre. Tenho a impressão de que em nenhuma época histórica se considerou que os pais eram, em geral, bons pais – capazes de se superar nessa suprema tarefa. Os bons pais sempre foram uma excepção – um desvio à norma e à natureza. Ao contrário do que acontece com as mães, nunca foi natural ser “bom pai”. Natural era – e ainda é, um pouco – o pai transportar para a paternidade todos os vícios da sua condição masculina. A brutalidade. O egocentrismo. A insensibilidade. A barba.
Os nossos avós eram os pais que era suposto serem: distantes e disciplinadores, no escritório, no mar, no campo ou na fábrica. Podiam ser chamados “bons pais de família” pelos regimes mas, no íntimo dos corações, não eram considerados “bons pais” – apenas cumpriam o papel Clint Eastwoodiano que vinha no guião. Depois vieram os pais hippie-freak: aqueles que permitiam tudo, sobretudo tudo o questionasse o papel tradicional de pai. Não, não eram “bons pais”. Fumar ganzas em frente à filharada não era garantia de qualidade acima da média na arte. Ninguém, no seu perfeito juízo, lhe reconhecia esse mérito. Apenas cumpriam com competência o papel de ser do contra, também ele rigorosamente consagrado no argumento das vidinhas.
Agora aqui estamos nós: os pais da geração parva. Ou aparvalhada. Com isto tudo, sobretudo. Possivelmente destinados pelos escribas de serviço, aqueles que desenham as cenas da História, a ser a síntese impossível de dois extremos: o autoritarismo de chicote e o libertarianismo de colar de flores. Somos fruto de uma era pós-moderna – ou pós-moderninha, como muitos preferem chamá-la - que nos garante, pelo menos, a diversidade. Sim, há muitos tipos de pais neste tempo ruidoso. Façamos uma tentativa de catalogar alguns dos bichos da Arca de Noé da Paternidade, usando, de uma forma livre, critérios bem diversos.
O pai assim moderno. O que não se basta em ser amigo do filho no Facebook – quer ter conversas sérias sobre “a vida” com o filho no chat do Facebook. Quer ser amigo dos amigos e das amigas do filho no Facebook. Porque isso é moderno e porque está convicto de que falar os códigos do filho é a melhor maneira de estar perto dele. O pai moderno por vezes acha estranho que o rapaz não queira ser amigo dele no Facebook. Ou prefira não sê-lo. Para não ter de levar com um like do pai na foto da primeira bebedeira.
O pai reaça. Aquele que, por feitio e vocação, acha que “isto é tudo modernices”. O seu modelo de paternidade é o do seu trisavô. Os lugares comuns todos: nessa altura é que se aprendia bem e cada um sabia o seu papel, não é como agora em que já não há respeito. O pai reaça tem duas conversas por ano com os filhos. Uma para lhe dizer que o brinco não lhe fica bem, outra para dizer que a mudança de sexo está fora de questão. Só os outros pais reaças é que o compreendem. Merece, pois, merece a compaixão de um mundo que já não o aceita.
O pai galinha. Existe cada vez mais. Enquanto que grande parte das mãe galinha ainda tem alguns objectivos razoáveis (“ó Zé Ricardo, agasalha-te que nas notícias disseram que vem um frio da Lituânia”), o pai galinha, demasiadas vezes com um sentido prático pior que nulo, é capaz de aconselhar os filhos a irem tomar banho oito vezes por dia porque veio num estudo que faz bem e fazerem um curso de “uma língua obscura muito útil para o futuro deles”. É a mãe galinha em versão masculina - a pior de todas. Irracional e insensata.
O pai associativista. Não é necessariamente pai galinha mas gosta de participar em todas direcções e associações dos organismos, escolares e outros, em que o filho esteja inscrito. É ao mesmo tempo uma vocação e uma panca. O pai associativista caracteriza-se por um aspecto algo irritante: tem muitas opiniões. Que exprime, com grande empenho e bastante ego, nas reuniões com outros pais, onde nunca ninguém se entende, para desespero do melancólico professorado.
O pai wikipédia. É aquele que está sempre pronto para distribuir informação pelos seus filhos. Cada momento do dia-a-dia é um instante oportuno para fazer um link, oportuno ou inoportuno, com uma área do conhecimento. Essa é uma das modalidades possíveis para exercer a sua mania. A outra é interromper momentos de lazer da criançada para “uma hora” de estudo sério e aprofundado sobre o mundo, os astros, os reis, o plâncton, o sentido da vida, etc.
O pai culpado. Dedica muito do seu esforço ao gesto de compensar o tempo que não dedica, por impossibilidade ou negligência, aos filhos. A história das ofertas a despropósito é um must mas há outras formas, igualmente bizarras, de ir à procura do tempo perdido. O pai culpado é daqueles que tentam recuperar todo o tempo em que não esteve com os filhos nos quinze dias de férias. O que não costuma dar grandes resultados. É que esse desejo legítimo tem de ser confrontado com a pulsão dos filhos para estarem com os amigos e com as namoradas e os namorados. O pai culpado transforma-se várias vezes no pai “isto não é um hotel”. De quatro estrelas - com pensão completa.
O pai palhaço. O pai entertainer. Tem ensinamentos vários para os filhos mas só dentro da categoria “como rebolar no chão da sala, partindo, uma a uma, as louças da Tia Dolores”. O pai palhaço apresenta uma grande limitação: não consegue ser outra coisa. Está viciado em ser palhaço. Ganhar o riso dos seus filhos é o seu prazer supremo (e quem somos nós para censurar isso). Consiste basicamente na ancestral instituição palhaço da turma, sendo que a turma dele é a família.
O pai que julga que é avô. Tem alguma coisa de pai culpado mas não precisa de sentir culpa para fazer aos netos aquilo que os avós normalmente fazem – porque é esse o seu direito e é essa a sua missão: sabotar todos os ensinamentos dos progenitores. No fundo funciona com as mães das crianças nos mesmos moldes. Se ela diz para o filho ir estudar ele põe-no a ver o programa dos Gormittis. Se a mãe ordena que o filho faça a cama, o pai organiza com o filho uma batalha de almofadas. Tal como acontece com muitos avós, quando a criança começa a berrar em demasiada, deixa-a com quem cuida verdadeiramente dele, com o argumento: “Já passou a minha altura de aturar isto!”.
O pai incógnito - dentro da própria casa. Esqueçam as violinadas melancólicas. Não estamos a falar de dramas de programa da tarde. O pai aqui está incógnito mas ninguém vai à procura dele em jornadas épicas comentadas pelo dr. Quintino Aires. O pai encontra-se em parte incerta – mas sempre dentro de casa. Nunca se sabe onde está e às vezes já nem se sabe quem é. Tanto pode ser encontrado no escritório a ler um relatório e contas como na marquise a assistir, pelo computador, ao Rio Ave – Leixões. No fundo ele ainda está sempre num exílio interior qualquer do qual ninguém o consegue tirar. A família precisa dele mas é ele que precisa, urgentemente, de ajuda.
Além destas categorias todas (às quais se podem juntar muitas e muitas mais, conforme os traumas de cada um), há a do pai não convencional, classificação na qual me reconheço, como pai de dois moçoilos que sou, mistura imoderada e desequilibrada destes tipos todos de pais – e de outros que ainda estão por magicar. Não é encaixável numa só categoria – o que confunde “a sociedade” e o empurra rapidamente para a categoria pai maluco. Que, diga-se, é uma maneira relativamente simpática de dizer pai que não nasceu para ser pai, designação muito citada nas repartições e casas de chá, como se houvesse alguém a nascer para ser pai. Mais facilmente se nasce para se ser árbitro de futebol do que para se ser pai.
O pai não convencional tanto pode ser escandalosamente progressista como surpreendentemente conservador. Tanto pode asneirar e trocadilhar com a filharada a partir dos nomes das figuras mais respeitáveis da família e da religião como, no minuto a seguir, dizer que se devem portar bem à mesa. Fura as convenções de um lado e do outro. É, acima de tudo, pouco normativo como pessoa – não faz tudo mas faz bastante o que lhe dá na cabeça, tornando-o, digamos, relativamente imprevisível e sujeitando bastas vezes a inevitáveis pedidos de divórcio na hora.
Tem dias temáticos. Ou horas. Ou segundos. Como pai não convencional que é, assume, para escândalo dos outros adultos, os seus humores. Ou por outra: reage à ditadura dos especialistas que defende que os pais não devem mostrar sentimentos menos positivos à criançada. Se está mais irritado com as facilidades pós-modernas é o pai reaça. Se está mais bem-disposto é o pai palhaço. O facto de não ser convencional permite-lhe mais tarde arrepender-se de tudo isto - e de manifestá-lo de forma aberta à descendência. Pai que é pai não pede desculpas. Este pede e, topando os riscos da sua conduta, prefere a autenticidade à coerência.
Dentro da categoria pai não convencional existe a subcategoria pai artista (concedo que alguns teóricos possam defender que todo o pai não convencional é um pai artista). O pai artista é, aos olhos do senso comum, o pai doidivanas, incapaz de cumprir o rendimento mínimo das regras de uma paternidade como deve ser. Apareceu, por exemplo, muito, de forma condenatória, nas resenhas ao filme do “Vão Buscar Alecrim”, feitas por gente com a cabeça arejada (ganhou o Indie o ano passado), sobre a relação entre um pai e os dois filhos em ambiente nova-iorquino dos 80’s, e deve surgir agora de forma mais light a propósito “Somewhere”, o filme de Sofia Coppola, sobre as histórias de um pai famoso e da sua filha. Digamos que ser filho do vocalista dos Kiss não é para qualquer um mas isso não quer dizer que se vá consumir cereais com coca ao pequeno-almoço.
O pai não convencional é rapidamente encurralado na categoria pai criança. Ou no vulgar “criança grande”. Como se um adulto não pudesse ter o seu lado de bebé. Permitam-me o desabafo a dois parágrafos do fim: que injustiça esta de nos quererem adultos ultra-responsáveis por tudo o que fazemos quando ainda ontem estávamos a ser mimados ao lanche por anafadas tias! Um pai pode e deve ter birras – até mesmo por não lhe permitirem ter birras. E não existe escândalo algum se, uma vez por outra, for o filho a pô-lo no lugar.
É importante preparar os filhos para o facto provável de o pai não convencional ser muitas vezes motivo de zombeteira conversa nos pátios da escola - instigada, normalmente, pelos pais convencionais, inimigos de tudo o que tenha cor e lhes cheire a extravagância. Uma conversinha basta, daquelas que servem para todo o tipo de gozações infanto-juvenis - e nem sempre é preciso tê-la de uma forma solene e expressa. Quando a relação é boa, cresce desde cedo nos filhos dos pais não convencionais um cúmplice lado não convencional, exercido logo nos primeiros anos e mais tarde, pela vida. Mesmo que se tornem nuns direitinhos funcionários dos Seguros, serão sempre mais tolerantes em relação àquilo que foge das catalogações de salão. E, o que não é para todos, dificilmente esquecerão o pai que tiveram.
(Publicado na 'Notícias Sábado')
Nada é mais ineficaz do que um plano amoroso. É raro que tenha resultados objectivos. Por norma, é a sorte que dita o resultado. Em séculos e séculos de literatura sobre o amor, nunca se arranjou uma solução. É tudo muito bonito, o amor e tal, mas know how não se vê muito. Apenas a sagrada instituição do casamento conseguiu delinear um objectivo que forçasse os homens - nem todos - a definir um plano mais consistente de apresentação de benefícios e captação do interesse da coisa amada. O dote, por exemplo. Ainda assim, trata-se de um fenómeno demasiado materialista e que terá, certamente, os dias contados.
É altura, então, de aplicar conceitos básicos da organização empresarial e da gestão ao amor. Sejamos ambiciosos, tracemos objectivos e determinemos um plano de acção adequado às nossas necessidades, às exigências do nosso stakeholder e às nossas potencialidades. Primeiro que tudo, temos de compreender que é preciso acabar com a ideia do altruísmo e da dedicação sem limites. Os nossos interesses são fundamentais para a conservação da nossa dignidade. O passo seguinte é fazer uma análise swot. Não podemos chegar a um resultado sem conhecermos bem a conjuntura.
Assim, como qualquer boa swot, verifiquemos os pontos fortes, os pontos fracos, as ameaças e as oportunidades. Nos pontos fortes teremos de ser realistas. Do que é que a casa gasta? Somos feios, baixos, gordos, lingrinhas, carecas, peludos, marrecos? Podemos ter um orçamento limitado, não ter grandes atributos artísticos ou, até, pouco carisma. Devemos, também, admitir a dificuldade de estabelecer uma linguagem cúmplice. Nos pontos fortes, a necessidade é ignorar a modéstia sem perder o realismo: não somos estúpidos, temos algum sentido de humor, somos informados, admiramos a humanidade. Essas merdas. Para as ameaças e oportunidades, a análise deverá ser exterior: os perigos de um concorrente, a situação do país, a agenda cultural, a família do stakeholder, os horários do universo e por aí fora. Não façamos de uma falha de percepção nossa uma ameaça e aproveitem-se as oportunidades.
Com efeito, deve aproveitar-se a swot para traçar um plano com objectivos bem definidos e quantificados: um encontro num espaço de um mês, um jantar a dois, 4 encontros culturais, 2 sms's voluntárias a um Domingo de manhã e uma referência no Facebook, também ela voluntária. A partir daqui, há que estabelecer um plano de acção. Teremos de fazer uma recolha da linguagem utilizada pelo stakeholder, fazer um inventário de interesses e do calendário, fazer um levantamento de espaços originais e adoptar um conjunto de condutas genuínas. Criar valor é preciso.
Se os objectivos não forem atingidos, então, talvez tenhamos falhado o nosso target. Não é preciso fazer um grande drama. Procure-se novo target, noutros meios mais propícios. O nosso core business é o amor. And it takes two for tango.
"A gente não faz amigos, reconhece-os"
Vinicius de Moraes
Se me perguntam: “Qual é seu time?” Respondo: “Benfica.” Se me perguntam: “Qual é o seu time no Brasil?” Respondo: “Vasco da Gama.” Mas há uma grande diferença. Tal como não escolhi apaixonar-me por Sónia na primeira classe, também não decidi que seria do Benfica. Não me lembro do momento em que passei a ser benfiquista. Sou, fui e serei.
Ninguém aqui me pergunta porque sou do Benfica – quem gosta de bola sabe que essa questão não tem uma resposta objectiva, que a escolha do primeiro clube do coração, bem como aquilo que nos faz ser mais trogloditas, drama kings ou uma pilha de nervos no tempo extra do jogo, não pode ser apurado com precisão histórica e distância científica. No entanto, quando respondo “Vasco da Gama” – eles sabem que foi uma escolha –, as sobrancelhas levantam-se, os flamenguistas indignam-se, os vascaínos abraçam-me, os tricolores dizem que sou cliché – o Vasco é o clube dos portugueses, tem no emblema a cruz de Cristo em tempos propagandeada pelas caravelas lusitanas, os primeiros acordes do hino são os mesmos da “Portuguesa”.
É verdade, na busca racional que fiz para escolher um clube no Brasil, apoiar uma instituição fundada por portugueses parecia fazer algum sentido. Além disso, o Vasco foi o primeiro clube com negros no plantel, quando o Fluminense pintava os seus jogadores negros com maquilhagem branca, uma patética tentativa de burla, que levou o clube a ganhar o cognome de “Pó de arroz.”
Um dos meus músicos favoritos, Paulinho da Viola, é vascaíno. Um dos meus escritores brasileiros preferidos, Rubem Fonseca, e uma das suas personagens, Mandrake, mulherengo, advogado criminalista e Lone Ranger da Zona Sul, são vascaínos.
Mas mais que tudo, foi um amigo, antigo emigra portuga no Brasil, com quem estive no Rio em Dezembro passado, que me falou do Vasco da Gama com tanto entusiasmo e boas memórias, que me pareceu evidente que me tornaria vascaíno. Sei que talvez tenha havido também um impulso infantil na escolha de clube feita pelo meu amigo quando chegou ao Rio (ele chama-se Vasco; mas entende-se e perdoa-se, na pós-adolescência admito que usei um perfume Hugo Boss porque me chamo Hugo). Mas o que é o futebol se não a recuperação semanal da infância, como escreveu o madridista Javier Marías?
Não há nada de mal nesse impulso infantil, isso foi e será sempre uma parte das nossas conversas em botecos, em varandas com vista para a Xácara do Céu, nas sessões de parvoíce, na camaradagem, na amizade e na compreensão. Com o meu amigo, fui várias vezes ao estádio da Luz. Espero agora o dia em que entremos em São Januário para ver o Trem Bala da Colina, aka, Vasco da Gama. Sei que jamais agitarei a alma ou cansarei as cordas vocais, como aconteceu com o golo de Vata, o penálti de Veloso ou o 6-3 em Alvalade. Mas o meu coração, tal como o coração do meu amigo Vasco, é suficientemente grande para albergar a cruz de malta.
A viagem começa com uma pergunta perversa: que sentido tomar? Dos Prazeres à Graça ou da Graça aos Prazeres? O tempo fez-nos cínicos. Vamos do céu ao pecado.
Eleita pelo Rough Guide uma das mil experiências de viagem mais importantes do mundo, a carreira do 28 é uma montanha russa entre prédios e cicatrizes, carrossel de adultos, carícia de 40 minutos pela face de Lisboa, sem que a cheguemos a beijar.
O embarque acontece na Graça, onde Lisboa paira sobre si mesma. Depois, começa a queda. Entre pátios, escadinhas e becos, descemos S. Vicente, ao lado dos túmulos de reis e artistas. Chegamos às Portas do Sol onde a vista se abre ao Tejo, a Cerca Moura vive paredes-meias com esplanadas da moda e o motorista anuncia: “Castelo! Castel! Castillo!”. Saem turistas, entram velhinhos do bairro e a descida prossegue, assinalada com a buzina-trinado de pássaro eléctrico. Ergue-se o Centro de Estudos Judiciários porque a justiça nacional também é “very typical”, ali onde outrora foi a prisão do Limoeiro e Bocage apodreceu. Duas igrejas escoltam a Sé até à Baixa, entre retrosarias, drogarias e lojas de souvenirs geridas por indianos.
Ao lado dos ministérios do Terreiro do Paço, tocamos o fundo. Depois, voltamos a subir, serpenteando pela Calçada de S. Francisco até aos teatros S. Luiz e S. Carlos, às estátuas e ruas dos poetas Chiado, Pessoa, Camões, e Garrett (de que falarão à noite, quando todos partem?). O 28 despede-se do Bairro Alto e acelera. Espanhóis, alemães, americanos, estranhos de toda a parte seguram-se como podem. Subimos para a parte rica. São Bento, Lapa e os cafés de bifes caros, a Assembleia que rouba todas as fotografias, as embaixadas, as escolas chiques. Diante da Basílica da Estrela, tempo para uma última oração. Dali a pouco, a estação final. Não nos aguardam letreiros de néon nem odaliscas; antes, as portas do cemitério.
Nada de ressentimentos. Aqui repousa Cesário Verde, máximo poeta da cidade. Enquanto esperamos o eléctrico de volta, relemos, em silêncio, “O Sentimento Dum Ocidental”.
Esta carreira não deveria terminar aqui. Estendessem carris pelo mundo e veriam do que seria capaz.
Publicado na Azorean Spirit #46
Não vivas no Reino Unido! Foi este o título de uma notícia (com alguns meses, é certo) que me acordou hoje. Voltei instantaneamente a ser infeliz.
Afinal descobri que vivo num país em que as famílias apenas auferem, em média, um rendimento líquido anual de cerca de 43 mil € por ano e os trabalhadores apenas têm direito a 28 dias de férias anuais – o que, comparado com os 36 dias dos franceses, deixa efectivamente muito a desejar. Também se referem os elevados preços da comida, da bebida, da gasolina e dos cigarros (o que é verdade), bem como o facto de os gastos em matéria de saúde e educação serem menores que a média europeia (o que é triste). E, claro, há o sol. Ou a falta dele. Pois parece que tudo acaba e começa no sol.
Já quando vivia na Alemanha perguntavam-me muitas vezes o que me terá passado pela cabeça para virar as costas ao sol português e passar a construir bonecos de neve. Cada vez que vestem os gorros e as luvas, metade dos alemães lembram-se das duas semanas no Sul da Europa e chamam nomes ao São Pedro ou ao seu homólogo. A seguir, sonham com uma vida num país tropical. Em que se ganha um ordenado norte-europeu, claro, e há um sistema burocrático que é nosso amigo.
Tentei explicar que o sol apenas não me permitia ter um estilo de vida tão descontraído. Descontraído não apenas por ter um ordenado justo, mas porque se tem de lutar bastante menos no dia-a-dia. Porque em geral as instituições funcionam. Porque se dá valor à iniciativa e ao pensamento autónomo e há um espírito de comunidade que se sobrepõe aos interesses individuais. Acho que nunca consegui convencer ninguém.
Mas gostei muito de voltar para Portugal, onde há tanto potencial ao virar de muitas esquinas. Já na altura, em 2006, se viviam sintomas de crise no país e fui cumprimentado com alguma incredulidade e muitas queixas sobre a situação. “É melhor saíres enquanto vais a tempo”. Não saí e gostei de não sair, apesar do “isto está mau” que se ouvia em todos os cantos. E não foi só por causa do sol. Mas voltei a reparar que também aqui se queria viver noutro país. Há sempre um outro lugar onde podemos ser mais felizes, o "lá fora" torna-se uma quimera. O círculo voltava a fechar-se.
Agora os estudos dizem-me que vivo num país infeliz. Ponto. Apesar de eu achar que há muitos outros factores a influenciar a felicidade num determinado local, a começar pelo pequeno pormenor da satisfação pessoal e profissional. Se calhar deveria emigrar. Ou deixar de acreditar em estudos sobre a felicidade.
Tudo isto me soa, como diz o outro, a bode respiratório. Quando se está à rasca é preciso encontrar um homem a quem atirar pedras. Alguém que possa ser "o culpado da situação em que vivemos". Que simbolize "os poderosos" e sobre o qual se possa derramar o líquido da raiva e do ressentimento. Não são só os media - embora hoje se assista a indignidades jornalísticas cada vez mais bizarras, contras a quais convém sempre ir dizendo coisas. Também tem responsabilidades quem nas esquinas se alimenta de nomes sonantes para satisfazer o desejo terrorista de celebrar a podridão do mundo e dos seus personagens.
Hoje é um homem da política, amanhã é um do futebol e depois um dos concursos. O importante é concentrar o mal em figuras. Como se o mal fosse só delas. Como se a maldade só fosse possível do outro lado da barricada, não no nosso apartamento. Como se de um lado, o dos espectadores, estivessem os bons sentimentos e do outro gente monstruosa que é urgente dizimar. Aos pinguinhos, em notícias gota a gota, que é para a tortura ser maior.
Aos poucos, sim, aos poucos Duarte Lima tornou-se o Kadafi do espaço público português: também ele está a ser assassinado à paulada e à cacetada com as televisões a filmar. Eu, digo, preferia não ver, tal como preferia não ter visto o assassinato do ditador líbio quando estava muito descansadamente a assistir ao telejornal das oito. Preferia não assistir à detenção televisionada do ex-deputado do PSD. Que seja julgado, tudo bem, se para tal houver motivos. Não quero é ter de ouvir o seu nome todos os dias a abrir noticiários ou ter de apanhar com ele no título da primeira notícia do Google News. Tirem, por favor, o senhor dos meus ecrãs. Não me interessa vê-lo morrer em público.
Acabo de ouvir António Barreto dizer que a pátria é como um velho casaco agarrado ao corpo, em que conhecemos cada pormenor seu, cada bolso, cada buraco, cada costura. Quando regressamos a casa a memória reflecte-se num instinto de reconhecimento.
Sempre que regresso ao Porto, regresso a casa. O carro desvia-se intuitivamente dos mesmos buracos, os pés avançam sozinhos por cada viela. Não perco um segundo a pensar para onde vou. À noite, o cheiro do rock'n'roll leva-me aos mesmos lugares, onde bebo a mesma cerveja. O meu corpo e a minha memória são conservadores.
Há um conforto divino nesta ideia de casa. Vá para onde for, quero sempre regressar e lembrar-me fisicamente de mim mesmo e de como a cidade faz parte de mim. Vejo-a com a memória do primeiro beijo, do primeiro disco, do primeiro cigarro, dos amigos, da felicidade inconformada da adolescência. Mas, vejo-a, também, com a memória dos dias normais, do quotidiano, das suas incríveis imperfeições.
Depois, vem a linguagem: descomprometida, livre e leal. É nela que me entendo. Não preciso de fazer qualquer esforço para encerrar mal-entendidos e desentendimentos. Conheço todos os gestos, porque são, também, os meus gestos.
Num texto que o meu amigo RPS teve a gentileza de transcrever em 2009, o Eça questiona - e bem - a finalidade das viagens. Que sentido faz, então, conhecer sem conhecer? Há um mundo à nossa porta que insistimos em ignorar. E se há coisa que não consigo suportar é esta ideia aberrante do "ter mundo". Vale mais uma rua do Porto c'a Gaia toda, dir-se-ia. Conheço a América dos discos, dos livros e dos filmes. Porém, dificilmente compreenderia um pouco melhor os homens se não fossem as conversas de café de todos os dias, os passeios lânguidos pelas vielas e os fragmentos de emoções que coleccionei das relações de uma vida - coisas que nunca alcançaria numa visita de duas semanas.
Não há provincianismo no Porto. Há, sim, um culto da cidade que nasce da sua imensidão. Não gosto que falem mal do Porto. Tão só porque o Porto também sou eu.
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